Por Denise Assis
Para alguns, parece que foi ontem. Para o senso geral, parece ir longe o tempo em que a minha gente andava “falando de lado e olhando para o chão”. Fato é que, do conjunto dos regimes autoritários que sufocaram a América Latina na década de sessenta, o Brasil foi um dos poucos países a não passar a limpo os fatos que marcaram o período. Os motivos são muitos. E, de perto, olhando com lupa, pode-se pegar vários aspectos deste caleidoscópio.
De dimensões continental, mergulhado por força da censura e do interesse do próprio autoritarismo (saber é poder) em um índice de analfabetismo muito além dos vizinhos, na época, a população brasileira nunca teve, de fato, subsídios, informações e evidências para tomar contato com o que acontecia nos porões da ditadura. E, os que tinham alguma informação sobre os fatos, ou estavam pendurados no pau-de-arara, ou em casa, “guardados com Deus, contando vis metais…”.
Sem informação, não há indignação. E sem indignação, não há reação da sociedade a ponto de pressionar os governos a se explicarem sobre coisa alguma. As versões são aceitas e pronto. Manda quem pode e obedece quem tem juízo.
Chile, Argentina, África do Sul, são países que não perderam de vista as suas histórias e se esforçaram para acompanhar as atrocidades cometidas durante seus regimes autoritários, ansiando pelo dia em que pudessem cair de boca em papéis, testemunhos e partícipes. Não por vingança ou revanchismo, mas para entender o que houve e seguir em frente, com a alma lavada.
Politizados, menores em sua dimensão geográfica, e maiores em nível de escolaridade e informação, esses países puderam propiciar aos argentinos, chilenos e africanos do Sul condições para se encher de indignação e coragem e reagir ao tacão dos regimes que mataram, torturaram e sumiram com os cadáveres dos que se opunham ao arbítrio. Tão logo tiveram a abertura, já se debruçaram sobre seus arquivos para entender, historiar e buscar justiça e conciliação. Ou a “Consertação”, como fizeram os chilenos.
Aqui, no Brasil, criou-se em torno do tema da história recente, alguns dogmas. Um deles, o de que a nossa (nem ditadura o brasileiro sabe fazer direito!), não vale a pena ser lembrada, pois sumiu e matou com apenas uma meia dúzia de 300, ou 500, se isto. E aí a sociedade se porta como se o fato de ter existido uma ditadura não fosse motivo suficiente para criar em todos nós um sentimento de repulsa à repressão, e a todo o aparato que se criou para mantê-la.
Nunca é demais lembrar que ditadura é violência, e violência não se adjetiva. É violência e ponto. Fosse apenas um torturado ou desaparecido, e já teríamos motivo de sobra para nos indignarmos por termos passado pela exceção “em tão nobre país”.
Junte-se a isto, o fato de termos tido uma transição “negociada”, que resultou na Lei da Anistia posta em vigor em 1979.
Era isto, ou seja, aceitar a “anistia” oferecida pelo “regime”, ou aturar, conforme cogitaram o general Golbery e o ex-presidente João Figueiredo (através da Medida nº 100, que chegaram a enviar ao Congresso), uma permanência de mais 12 anos de jugo. O projeto compreendia a prorrogação do mandato do general, e mais um sucessor eleito em colégio eleitoral. Era a tal abertura “lenta, gradual e segura”. Não houve clima para a Medida nº 100 – retirada da pauta do Congresso, por força da voz das ruas – mas, com isto, o que graduaram mesmo foi o nosso poder de reagir, pesquisar e punir. Fomos esfriando…
Hoje, passados 47 anos do golpe, e 31 anos da concessão da Anistia, em um país cuja população mal consegue se lembrar em quem votou para deputado na eleição anterior, é muito tempo. Principalmente para que a sociedade realmente se mobilize em torno de fatos dolorosos, mas sobre os quais a maioria passou ao largo.
Todos nós sentimos os efeitos da repressão, sofremos a dor do silêncio imposto pela censura, das limitações, passamos pelo medo. Porém, com a abertura agimos como criança que leva um tombo, limpa a mão na roupa e volta a correr sob o alerta da mãe: “não foi nada…”. Fomos tocando a vidinha, sem resfolegar, sem exigir reparação.
Pressionamos
pela volta do estado de direito, pedindo que os generais nos dessem de volta o “poder”. No entanto, desde que afrouxaram as cordas e nos deixaram “ir vivendo”, a sociedade brasileira (salvo honrosas exceções), ficou apenas na platéia, enquanto grupos isolados de familiares dos desaparecidos faziam barulho e peregrinavam em busca de informações, para conseguir enterrar seus mortos. No máximo, a sociedade brasileira se espantou ao ler aqui e ali os livros e reportagens dos que cismaram de trazer a público os fatos tenebrosos da época.
Enquanto isto, a cada “novidade” publicada, a reação irada dos generais de pijama, ou de seus defensores, tenta impor, (ainda hoje), a versão de que houve uma “guerra” e na “guerra” vale tudo. O “vale tudo”, no entanto, vigorou mesmo, foi na época em que a repressão dizimou nos porões os que se atreveram a contrariar o “sistema”.
Transpondo para o universo do futebol, o que se queria mesmo é que esse jogo terminasse empatado. Só que numa conta de chegar, não custa lembrar que todos os que reagiram contra o poder absoluto dos militares, pagaram com longas penas na prisão, na tortura, ou com a própria vida. Soa absurdo, portanto, ouvir hoje os verdugos de outrora clamarem por “punição para os dois lados”.
Para que ambos os lados cheguem ao “zero a zero”, como quer a turma do pijama, será preciso, antes, perguntar: quantas vezes seria necessário que morresse o capitão Carlos Lamarca? Quantos tiros deveria levar novamente o guerrilheiro Carlos Marighela? Quanto tempo, além da pena de 8 anos que cumpriu, deveria permanecer na cadeia Inês Etienne Romeu e tantos outros que chegaram até mesmo a serem condenados à pena de morte?
E, claro, questionar, quantos arranhões – além dos que maculam de forma justa, a sua biografia –, levou o comandante da OBAM, Carlos Alberto Brilhante Ustra, e todos os seus pares, que atuaram na implementação da tecnologia da bordoada? É preciso separar os Carlos e a trajetória desses Carlos.
Para isto, há que haver interesse de estudiosos, historiadores e quem mais concorde em formar, sim, um grupo empenhado em estudar esses fatos, e trazê-los à luz. Com distanciamento suficiente para vê-los como história a clarear o nosso futuro. Lamentavelmente, não há hoje mais mobilização para exigir punições. Há processos tramitando no Judiciário, e devem ser resolvidos no Judiciário. Sim, é triste, mas ficou para as famílias buscarem a reparação e o resgate moral dos seus entes queridos. Ao estado, cabe permitir a abertura dos documentos que revelam o que aconteceu, permitir que escrevam sobre esses fatos e colocá-los nos livros didáticos.
Prender o coronel Ustra, hoje, será apenas uma imagem na TV, ou nos jornais, esses veículos do efêmero, que no dia seguinte embrulham peixe na feira. Será apenas um episódio engolido por uma avalanche de novas informações. E ainda é o caso de se perguntar, se alguém da geração atual vai parar a garfada do jantar no ar, para olhar para a TV e prestar atenção a esta notícia.
É punição, e das grandes, ver as histórias desses “senhores”, dissecadas para os estudantes, repetidas futuro afora. Seus netos, bisnetos, e tataranetos serão obrigados a estudar no colégio que houve um tempo em que homens duros e cruéis, em nome de um regime mais duro e cruel ainda, torturaram, mataram e humilharam compatriotas, em nome de um modelo de país que só estava na cabeça deles, os do poder.
E é de se admirar que ainda hoje, nas três forças, existam interessados em associar a atuação dos militares amigos de tais práticas, à dos que engrossam as fileiras das armas nacionais com honradez, modernidade e espírito democrático. Os comandos atuais deveriam ser os primeiros interessados em demonstrar que são diferentes. A hora é de passar a limpo a história e fazer um up grade na imagem que duas ou três gerações guardaram das forças armadas brasileiras. A de bicho-papão.