Gustavo Barreto, 12 de outubro, 2004
É mais do que curioso o que ocorreu nesta semana com Rosimere dos Santos Franches, de 40 anos, e Rogério Lima de Menezes, de 33. Presa por policiais neste domingo (10), no Rio, depois de tentar se passar pela governadora Rosinha, Rosimere estava acompanhada do marido. Rogério, o primeiro a ser desmascarado, tentou por sua vez se passar por um coronel do Corpo de Bombeiros e arrumar uma internação para o filho no hospital da corporação, no Rio Comprido.
Rosimere cometeu o ato de falsidade ideológica para tentar salvar o marido. Ligou para o celular do delegado da 6ªDP (Cidade Nova) e, passando-se por uma assessora do gabinete da governadora, pediu que Rogério não fosse preso, pois era uma pessoa “amiga do Palácio”.
Diz o jornal: “Percebendo que a sua história não foi aceita, ligou novamente para o policial e desta vez, tentando imitar a voz de Rosinha Garotinho, determinou ao delegado Ricardo que não registrasse a ocorrência e libertasse Rogério”. O ato foi mais desespero do que desrespeito à lei: o filho de Rogério estava com traumatismo craniano.
Se fosse de fato Rosinha Garotinho ao telefone, o que teriam feito os médicos e o delegado? Seria justo Rosimere e Rogério passarem à frente da fila? É justo que Ronaldo, tendo um filho com traumatismo craniano ou em qualquer situação de emergência, precise apelar para tais atos de desespero?
O exemplo, nesse caso, vem de cima e de baixo.
De cima porque tanto Rosinha quanto a maior parte dos políticos brasileiros em cargos de destaque nem sequer freqüentam tais locais. Na última vez que Rosinha teve problemas de saúde, foi se tratar no Copa D Or — o hospital mais caro do Estado. Ela sabe que não é muito saudável freqüentar hospitais que ela mesmo tem a tarefa de cuidar.
E igualmente o exemplo vem de baixo, pois a maior parte da população ainda carrega a cultura de que “o importante é levar vantagem em tudo”, custe o que custar, herança de um país que cultivou por séculos o clientelismo e a corrupção — esta última oficializada na forma de “comissão”.
Em 1995, o sociólogo e deputado da Constituinte Florestan Fernandes sofreu um grave problema de saúde em São Paulo e se dirigiu ao hospital público mais próximo, enfrentando uma fila enorme. Ao chegar ao local, seu filho lhe perguntou: “Pai, você está querendo se matar? Porque você não vai para o Albert Einstein ou outro hospital sem fila”. Florestan respondeu pacientemente que estava no hospital público porque era um servidor público e que, se tinha fila, era porque tinha gente na frente.
Homens como Florestan, que denunciam com atos — e não somente palavras vazias — a hipocrisia instalada no dia-a-dia dos cidadãos, estão desaparecendo. Dá-se lugar à “naturalização” do cinismo, que antes costumava se chamar “brasileiro é assim mesmo”.
Esse cinismo enraizado historicamente não deixa de ser, de certa forma, um traumatismo craniano coletivo, com cada vez mais gente na fila e — pior — cada vez menos médicos. Mais importante talvez seja perguntar: Estaremos interessados em nos tratar?
Gustavo Barreto é editor da revista Consciência.Net (www.consciencia.net), colaborador do Núcleo Piratininga de Comunicação (www.piratininga.org.br), estudante de Comunicação Social da UFRJ e bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Inciação Científica (PIBIC) pela ECO/UFRJ