Por Beto Almeida, jornalista, janeiro de 2005
 

“O sul é o norte dos povos”, declarou o presidente da Venezuela, Hugo Chavez, quando propôs a criação da TV  Sul com o objetivo de ser uma espécie de “CNN dos humildes!”, para recuperar uma definição de Fidel Castro, feita ao calor dos debates num congresso de jornalistas latino-americanos, em 2001, em Havana. De fato, pensar a tão reclamada integração latino-americana sem propor simultaneamente uma integração informativo-cultural pode deixar margens aos que imaginam a integração apenas como instrumento de desafogo comercial para economias controladas por empresas transnacionais.

Na história da América Latina, vários foram os personagens, de vários países, a levantar a bandeira da “Pátria Grande”, de uma nação continental, de uma união dos povos. Podemos citar Bolívar, San Martin, Sucre, Miranda, José Marti e o próprio general pernambucano Abreu e Lima, companheiro de armas de Bolívar. Mas, nesta época, os meios de comunicação de massa eram ainda limitados à imprensa, e numa fase rudimentar de implantação e difusão. Se analisarmos exclusivamente a imprensa, ainda hoje, o acesso das massas latino-americanas a esta tecnologia do século XVI permanece muito restrito, são povos sem acesso à leitura.

Depois da onda histórica que levou ao movimento da libertação, das independências, segue-se um período de desenvolvimento de novos mecanismos de dependência colonial, incluindo a troca das metrópoles, com os centros decisórios deixando as esferas ibéricas e passando para a Inglaterra e depois os EUA.

Várias tentativas históricas de nova independência foram realizadas a partir da Revolução Mexicana, com Pancho Villa e Zapata, mais tarde com o nacionalismo de Lázaro Cárdenas, que estatizou o petróleo, apoiou a Revolução Espanhola e deu asilo a Leon Trotsky; posteriormente com a Revolução Boliviana em 1952, estatizando as minas e decretando a reforma agrária, sustentada em milícias mineiras e campesinas armadas.

A Revolução Cubana, em 1959, cumpre o programa da independência nacional através da transformação socialista das estruturas do país, numa confirmação das teses da revolução permanente do bolchevique Leon Trotsky, assassinado 19 anos antes no México, segundo as quais os países atrasados não devem atravessar mecanicamente as etapas históricas de desenvolvimento do capitalismo nacional, já que na época do imperialismo, as tarefas que corresponderiam à burguesia nacional de cada só podem ser cumpridas pela própria revolução socialista.

Poucos anos antes da Revolução em Cuba,  Perón lançou uma primeira idéia de integração latino-americana pela via da comunicação, dando assim forma à sua resistência ao domínio do capital imperialista sobre seu país e a região. Era a Agência de Notícias Latina. Derrubado Perón por uma articulação imperialista na década de 50, tudo aquilo naufragou.

Surge então em Cuba, por iniciativa de Che Guevara, uma nova ferramenta para tentar consolidar o sonho de uma integração latino-americana: a Agência Prensa Latina. Mas, à parte as enormes simpatias que a Revolução Cubana desperta em todas as massas latino-americanas, o bloqueio dos EUA, o período da chamada Guerra Fria, o surgimento de vários governos militares pró-imperialistas na região, e o anti-comunismo que tomou conta da grande mídia, praticamente impediu que o trabalho de Prensa Latina pudesse desenvolver de fato um campo de influência mais expansivo, com efeitos positivos mais substanciais sobre a integração informativa a que se propunha Che no início, apesar do qualificado trabalho jornalísticos levado a cabo pela agência.

É dentro deste terreno histórico que deve ser medida a importância da proposta de fundação da TV Sul, lançada pelo presidente Hugo Chávez na reunião do Grupo dos 77, em fevereiro de 2004, e com fases de implantação do projeto já tendo sido cumpridas. Como diz o próprio líder venezuelano, trata-se de uma tevê para mostrar a cultura, as lutas, as visões dos povos do sul, numa maneira de dizer que é preciso questionar a hegemonia audiovisual dos valores do norte, isto é, do imperialismo norte-americano, cujas empresas de comunicação controlam hoje no mundo todo 85 por cento dos fluxos informativos (notícias, tv, rádio, foto, filme, disco etc).

Tal proposta é indispensável e inadiável. Basta dizer que para informar-se sobre os levantes mineiros que ocorreram em outubro de 2003 na Bolívia, a chamada Guerra do Gás, os telespectadores deviam sintonizar a CNN, quando, por suas ligações de mercado com seus anunciantes, a própria empresa televisiva norte-americana era parte interessada na derrota dos legítimos pleitos levantados com garra e determinação pelas massas empobrecidas bolivianas, que querem – nada mais justo – cessar a rapina de suas reservas energéticas por capitais externos (incluindo a Petrobrás), e sustentar que tamanha riqueza mineral destine-se a elevar as condições de vida de milhões de indígenas famintos e embrutecidos pela miséria.

Aliás, como finalmente está sendo feito na Venezuela, com a receita do petróleo sendo utilizada para construir infra-estruturas, pagar missões sociais de alfabetização e de saúde, nas quais atuam profissionais cubanos, provando na prática o que é realmente uma integração. É indecifrável para os indígenas bolivianos escutar certos discursos de integração regional quando seu gás está sendo garfado pela empresa estatal brasileira.

O caráter imprescindível da TV Sul também ficou demonstrado ao mundo quando do golpe direitista de abril de 2002 contra o próprio governo Chávez, golpe organizado a partir de uma orquestração de toda a mídia privada, que veiculou a mentira de que o presidente da república havia renunciado, quando estava seqüestrado pelos golpistas apoiados pelos EUA e toda a mídia capitalista.

A difusão regular e sistemática de mentiras pela mídia oligopolizada impediu que o mundo pudesse entender que na Venezuela há uma revolução social em marcha, com seus critérios, com seus ritmos, suas metas, entre elas a da integração latino-americana e dos povos do sul. Não por acaso, tendo sofrido em tão pouco tempo a fúria dos magnatas da mídia – apesar da plena liberdade de ação que estas empresas de mídia dispõe – a proposta de criação de uma TV Sul surge exatamente da Venezuela, mas não para mostrar a Venezuela ao mundo e sim para mostrar aos povos do sul e de todo o mundo, como são suas lutas, aprender de suas vitórias ou derrotas, o que pretendem os povos do sul, com sua visão de mundo, suas músicas, sua cultura mil vezes desrespeitada pelo imperialismo cultural arrogante, incapaz de conceber a televisão como um instrumento de integração solidária dos povos e de transformação social de uma realidade infame por tanto sofrimento e miséria.

Uma tevê para ser emancipadora necessita estar vinculada aos jornalistas, produtores e lutadores vinculados aos movimentos sociais, deve recuperar toda uma produção audiovisual independente e progressista que jamais encontrou chances de exibição, deve criar

mecanismos de entrelaçamento com as diversas formas de comunicação comunitária, alternativa, sindical, universitária, para que sejam construídas redes e mais redes com um fluxo de notícias, debates, documentários, programas científico-culturais que reflitam um programa sustentável para o desenvolmento justo dos povos da região, confrontando com inteligência e talento os projetos de rapina das riquezas naturais sempre veiculados pela mídia comercial instalada em todo o continente, editorialmente controlada pelo sistema financeiro internacional, e nas mãos das oligarquias nativas.

Não deve haver dúvidas sobre o efeito revolucionário que uma mídia sintonizada com os processos de luta transformadora pode ter. Basta lembrar alguns exemplos da história. Em 1961, quando uma articulação direitista queria impedir a posse do presidente João Goulart, Brizola, então governador do Rio Grande do Sul formou a Cadeia da Legalidade, composta por 104 emissoras de rádio que, espalhadas pelo país, convocaram o povo a resistir ao golpe já engatado, e organizando o povo, com a distribuição de armas, para mudar os rumos do país. O golpe foi derrotado, dada a enorme mobilização social a partir da mensagem revolucionária que o povo ouviu pelas rádios.

O presidente do Peru em 1968, Velasco Alvarado, também percebendo a importância estratégica de um sistema de comunicação integrado a um processo de transformação social, interveio na mídia comercial peruana, entregando seu controle aos sindicatos, neutralizando a oposição direitista que inevitavelmente se localiza neste setor, como veio a ocorrer mais tarde no apoio da mídia chilena ao golpe de Pinochet contra Allende.

A proposta de Chávez parece refletir um amadurecimento sobre todas estas experiências passadas, pelo menos em relação à ação do imperialismo via meios de comunicação, constituindo-se numa iniciativa que quer dar aos povos um instrumental superior para comunicar suas lutas, homogenizar suas experiências naquilo que for possível e adequado, permitindo que os processos revolucionários mais avançados sejam apreendidos pelos outros povos que ainda encontram-se em fase inferior de organização político-social, muito embora sejam vítimas da mesma estrutura de espoliação imperialista.

O que na época de Bolívar poderia levar anos para ser conhecido por outro povo, hoje, com as novas tecnologias, com o alcance da televisão por satélite, pode representar um imediato amadurecimento político-organizativo, concentrando fases de desenvolvimento das lutas, permitindo a comunicação generalizada de experiências, mostrando que o analfabetismo, as doenças de massa, o latifúndio improdutivo, e outras mazelas sociais são problemas  que podem ser resolvidos, como prova a experiência de Cuba e como sinaliza a Revolução em curso na Venezuela.

Assim, a TV Sul, prevista para ser anunciada oficialmente no Fórum de Porto Alegre, poderá transformar-se na grande novidade dos movimentos sociais em luta contra o capitalismo e o neoliberalismo, pois a partir dela a revolução será transmitida e os povos do sul terão um instrumento para comunicar ao mundo, e entre si, que estão em luta pelas transformações sociais, sem que o silêncio e a censura da mídia comercial imperialista possa mais esconder a força e a riqueza desta luta.
 

Beto Almeida, jornalista