Por Dorrit Harazim

CAMBRIDGE – No próximo dia 1.º de julho, a Califórnia, que já contava com um ícone da transformação demográfica americana na figura do governador Arnold Schwarzenegger, nascido na Áustria, dará posse a um filho de imigrantes mexicanos na prefeitura de Los Angeles. É a América assumindo os seus sotaques.
Antonio Villaraigosa (pronuncia-se VEE-yah-ray-GO-suh, ensinam os jornais americanos) vai assumir não apenas a prefeitura da segunda maior cidade dos Estados Unidos.

Ele desponta, desde já, como a maior conquista política para os 40 milhões de hispânicos que vivem na América. Em termos numéricos, essa nação latina é um colosso equivale a uma Argentina inteira. Mas um colosso adormecido e politicamente atrofiado. A eleição de Villaraigosa parece ter acelerado o seu despertar.

Até agora, os hispânicos já tinham conseguido eleger dois senadores, um governador e 22 prefeitos em cidades americanas com mais de 100 mil habitantes, mas faltava-lhes um rosto de projeção nacional.

Surgiu Antonio Villar (que, ao casar, decidiu acrescentar o sobrenome da esposa, “Raigosa”, ao seu). Estampa de latino bonitão aos 52 anos, Villaraigosa, de uma hora para outra, está em todas as capas de revista – até então lugar cativo de Schwarzenegger, que há dois anos desempenha o papel de celebridade maior da vida pública californiana.

A musculatura política de Villaraigosa não se construiu com anabolizantes. Fez-se nos guetos latinos da Los Angeles mais dura.

Nascido em ambiente familiar de violência doméstica, Antonio tatuou-se quando jovem com a frase-ícone Born to Raise Hell (algo como Nascido para a Violência) e parecia destinado a se somar ao rebotalho social da América ao abandonar os estudos no ginasial. Acabou sendo resgatado por um professor dedicado que o catapultou para a faculdade. Formou-se, teve sólida iniciação na vida pública como líder sindical, elegeu-se deputado estadual e presidiu a Assembléia Legislativa da Califórnia durante dois anos. Três semanas atrás, ao derrotar o prefeito em exercício James Hahn, americano de puro sangue, o chicano Villaraigosa pôde olhar para trás e vislumbrar o futuro.

“Caramba, eu prefeito dessa cidade?”, deixou escapar na presença de um repórter da revista Time.

Em seu discurso de vitória, agradeceu o arrastão de votos recebidos (derrotou Hahn por 59% a 41% dos votos) sem infiltrar uma única palavra em espanhol. No seu caso, não foi preciso pois o eleitorado latino de Los Angeles (47% da população da cidade) sabe que Antonio é um deles.

Este recurso, celebrizado pelo Hasta La Vista, Baby do ator Schwarzenegger, e readaptado pelo Schwarzenegger-governador, está se tornando obrigatório para políticos americanos de Estados com forte presença latina.

O prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, por exemplo, tem aulas regulares de espanhol para tentar a reeleição em 2006 contra um adversário porto-riquenho.

No caso de Antonio Villaraigosa, seu trunfo maior é justamente conseguir falar para todas as minorias – negros, hispânicos, asiáticos – e isto se faz em inglês.

Até agora, nenhum político local tinha conseguido armar uma coalizão eleitoral que passasse por cima das divisões geográfica, cultural, étnica e racial da vida urbana americana. Ele foi o primeiro. Sabendo que o eleitorado cativo não lhe garantiria a vitória – embora somando quase metade da população de Los Angeles, os latinos tem o mais baixo índice de participação eleitoral – Villaraigosa foi à luta. Sempre em inglês.

“Sou americano de origem mexicana e me orgulho disso. Mas pretendo ser o prefeito de Los Angeles inteira. É a única forma de ser prefeito da cidade que tem a maior diversidade populacional do mundo”, repetia para brancos (30% da população de Los Angeles), negros (11%) e asiáticos (10%).

Poucos dias antes da votação, uma declaração catastrófica dada na Cidade do México pelo presidente Vicente Fox quase põe a pique a coalizão buscada por Villaraigosa. Discursando em defesa da imigração mexicana para os Estados Unidos, Fox qualificou seus conterrâneos como “repletos de dignidade, determinação e capacidade para o trabalho, ocupando empregos que nem os negros aceitam mais fazer nos Estados Unidos”.

Em matéria de estereotópico preconceituoso do negro americano, que já nutre ressentimentos palpáveis em relação aos chicanos, Fox não poderia ter sido mais desastroso. Mexeu num vespeiro. Mas o vespeiro não se deixou mexer e deu 48% de seus votos para o chicano Villaraigosa.

“Isto é apenas o começo”, diz Fernando Guerra, diretor do Centro de Estudos de Los Angeles da Loyola Marymount University, que compara a arrancada hispânica atual à eleição de prefeitos negros em cidades como Atlanta, Detroit, Cleveland e Newark nas décadas de 60 e 70. Vale lembrar que também Harold Washington e David Dinkins, nos anos 80, só se tornaram os primeiros prefeitos negros de Chicago e Nova York graças ao apoio do voto hispânico.

Antonio Villaraigosa vai herdar uma cidade cujo sistema educacional está falido – apenas 45% dos jovens de Los Angeles concluem o ensino fundamental -, e que mantém índices crônicos de violência entre gangues.

Os adversários alertam para sua escassez de idéias e de substância, comparando-o a um terno bem cortado sem nada dentro. Há, também, o punhado de esqueletos que traz na bagagem, como um pedido de perdão para um traficante de cocaína encaminhado ao então presidente Bill Clinton e a devolução de US$ 47 mil dólares de contribuições de campanha suspeitas.

Mas nada disso terá relevância se o seu desempenho no cargo ficar à altura das expectativas. Caso contrário, basta olhar para a empoeirada Sacramento, capital da Califórnia, e observar a erosão política de Arnold Schwarzenegger.

Montado na sua filmografia de ação, o governador-celebridade prometeu revolucionar o funcionamento do Estado de ponta a ponta. Apresentou uma agenda audaciosamente ambiciosa, que incluía, entre outros, remunerar professores com base em mérito e não mais por tempo de serviço, privatizar parcialmente o INSS do funcionalismo público, eliminar quase cem agências e conselhos estaduais, revolucionar o sistema penitenciário. Caso o Legislativo não aprovasse a cavalgada, passaria por cima, convocando novas eleições.

No espaço de 18 meses, seu índice de popularidade despencou para 40%, tendo sofrido uma queda de 20 pontos junto a eleitores registrados. Mais preocupante para sua carreira e mais saudável para a vida política californiana, Schwarzenegger deixou de ser visto como o invencível exterminador de problemas. No auge do fascínio americano com a sua irrupção no cenário político nacional, não foram poucos que o imaginaram capaz, até, de provocar uma mudança na Constituição americana para poder se candidatar à Casa Branca.

Convém lembrar que ao longo de toda a história dos Estados Unidos, das mais de 10 mil emendas à Constituição propostas até hoje, apenas 27 foram aprovadas. Sem falar que é no Con

gresso que está o ninho mais empedernido de eternos candidatos à presidência, e que para passar, uma emenda constitucional precisa ser aprovada por dois terços dos senadores e congressistas, além de ser ratificada por pelo menos 38 Estados.

Reduzido a dimensões mais humanas, o governador da Califórnia está aprendendo a recuar. Tem mais um ano e meio de mandato pela frente para decidir se tenta a reeleição. A estrondosa vitória do hispano-americano Villaraigosa em Los Angeles, contudo, finca um espinho no seu calcanhar, sobretudo na nevrálgica questão de como lidar com o fluxo de imigração ilegal pelo México.

“Não precisamos de um Minuteman austríaco”, declarou o presidente do Partido Democrata da Califórnia, Art Torres, referindo-se ao apoio explícito do governador ao grupo de vigilantes armados que rondam a fronteira.

Assim como seus personagens de cinema, Arnold Schwarzenegger sempre venceu sozinho. Sua ascensão meteórica na vida americana lhe pertence por inteiro. Se descarrilar na política, o estrago também será essencialmente pessoal, sem maior conseqüência para o tecido social do país que o acolheu.

No caso de Antonio Villaraigosa, são 40 milhões de hispânicos precisando que ele dê certo.