Por Maria Rita Kehl, na Folha de São Paulo , 13/11/2005
“Malandragem de verdade é viver.”
(Mano Brown)
Se “Cidade Baixa” fosse apenas uma história de amor, já seria um belo filme. O amor restou como única forma de transcendência à disposição de nossas vidas privatizadas: quanto mais se amesquinha a vida pública, no Brasil, mais inflado nosso imaginário amoroso. Se “Cidade Baixa” se limitasse a corresponder à nossa carência insaciável de histórias de amor, temperado com cenas de bom erotismo, já estaria melhor que a encomenda. Mas penso que o filme de Sérgio Machado vai além.
Mais do que um triângulo amoroso convincente, vejo em “Cidade Baixa” um épico passado entre vidas infames. O que faz a tonalidade épica do filme, apesar da insignificância dos personagens -uma prostituta estreante na vida e dois amigos que sobrevivem de transportar cargas lícitas ou ilícitas em um barco, no Recôncavo baiano-, é o esforço permanente deles para resistir à violência a que suas vidas parecem predestinadas.
Esforço que surpreende o espectador. O enredo parece nos conduzir a um final previsível, ao fatal desfecho à moda brasileira para todos os conflitos, passionais ou não, sobretudo entre os habitantes miseráveis das cidades “baixas”. Esperamos a carnificina, esperamos gozar de aflição ante a imagem terrível que é, sempre, a de um homem morrendo pela mão do semelhante. Esperamos sair de “Cidade Baixa” com o clichê na ponta da língua: que o filme seja “um soco no estômago”.
Eu me pergunto por que essa expressão se tornou um elogio ao cinema: por que nós, espectadores, gostamos tanto de levar socos no estômago? Será preciso que um bom filme nos arrase moralmente, que nos force a pagar pelo conformismo com que aceitamos, fora do cinema, as conseqüências violentas da desigualdade social brasileira?
Neste caso, a expectativa masoquista do espectador é frustrada no final. Verdade que, desde as primeiras cenas do filme, o gozo cobra seu preço em sangue. A excitação dos homens em torno da briga de galos é prenúncio de morte. Não sabemos se Deco (Lázaro Ramos) matou ou não o bêbado que esfaqueou Naldinho (Wagner Moura). O próprio Deco parece não saber. Mas sabemos que o sangue e a rivalidade alimentam o erotismo.
Só que Karina (Alice Braga) foge ao estereótipo da mulher fatal empolgada com a violência que provoca nos homens. Karina não quer ser disputada em termos de vida ou morte. Arrisco propor que a personagem se apaixona não por um (ou outro) dos amigos, mas pelo forte laço que os une. Por isso é incapaz de escolher entre eles, por isso se angustia ante a perspectiva de ser o agente destruidor da amizade.
A mudança de posição da personagem feminina -de profissional a amante- ocorre na cena em que ela observa Deco, comovido e aliviado, pousar a mão sobre o peito do amigo que já não corre perigo de morte. Apesar de já ter transado profissionalmente com os dois protagonistas, é nesse momento que Karina se entrega a Deco, com urgente paixão.
O “ménage à trois” segue por essa seara, em que o estímulo sexual é sempre temperado de angústia, de medo, de raiva, de aflição mas também de alegria. O erotismo se transforma em amor em conseqüência das experiências-limite que o trio compartilha. É como se o amor se apresentasse a eles como superação da miséria, como proteção, sentido, abrigo. Para tanto, é necessário que inclua os três.
Pacto fraterno
O trio de amigos/amantes/rivais leva o desejo às últimas conseqüências. Mas quem disse que a última das conseqüências tem que ser, forçosamente, o assassinato? Estamos tão habituados a nosso próprio fatalismo, no cinema e na vida, que não nos parece verossímil que os amigos recuem alguns minutos (ou alguns fotogramas) antes de se destruírem.
“Cidade Baixa” aposta, muito delicadamente (é possível, sim, falar em delicadeza em meio ao sexo e à fúria), que uma ética da amizade ainda sustente o que restou de civilização, entre nós. A cena final sugere um pacto fraterno selado com sangue, enquanto os olhares pouco a pouco se desarmam, se encontram, se amparam. Deco, Naldinho e Karina são heróis porque resistem contra o que parece ser, no Brasil, um destino, uma predestinação destrutiva.
Deco e Naldinho não se matam porque não querem, da mesma forma como Naldinho recua ante a possibilidade de matar o vendedor da farmácia, em um assalto. Karina, a pivô, pequena puta apaixonada pelos dois amigos, tenta evitar que o ciúme termine em tragédia.
Nenhum dos três deseja a morte: o filme é comandado pelas pulsões de vida. É de Eros, não de Tânatos, que se trata; Eros em toda a sua fúria e esplendor.
Vale apontar uma diferença entre este e os filmes recentes do eixo Rio-São Paulo: a cidade de Salvador ainda não desterrou todos os seus pobres. A cidade baixa (ao contrário do Pelourinho pós-restauração) ainda pertence ao povo que sempre viveu lá. A referência à amizade entre os protagonistas, companheiros de infância, revela que parte da população de Salvador ainda foi preservada da desterritorialização aparentemente inexorável que afeta os vínculos sociais, de pertinência e amparo, entre os pobres das capitais brasileiras. A cidade “baixa” é dos negros, é dos pobres, é dos baianos. Daí a sociabilidade menos violenta, mesmo quando fora da lei
.
O filme termina com cenas documentais da vida cotidiana nas vielas estreitas de Salvador, por onde os moradores passeiam distraídos, contemplam a Bahia pelas janelas, conversam com vizinhos, levam filhos pelas mãos. São cenas anônimas de rua, embaladas por toada consoladora, à maneira de um lamento de escravos, na voz negra de Carlinhos Brown.