[Via Opera Mundi] Há 41 anos, em 14 de agosto de 1983, uma multidão de oito mil flagelados da seca invadia o armazém da Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal), em Canindé, Ceará, em busca de comida. A ação evidenciava o ponto crítico de uma grave crise humanitária no Nordeste do Brasil. Entre 1979 e 1984, a região foi atingida pela pior seca do século 20. Conivente com os interesses das oligarquias regionais, a ditadura militar (1964-1985) nada fez para auxiliar os mais de 10 milhões de flagelados.
Estima-se que a seca tenha matado centenas de milhares de pessoas — a maioria das quais crianças. Embora seja uma das crises famélicas mais letais do século 20, o episódio foi apagado da memória histórica do país.
O flagelo da fome acompanha a história do Brasil desde a era colonial. O modelo econômico agroexportador, baseado em grandes latifúndios monocultores e na exploração de mão de obra escrava, serviu de alicerce a um país constituído sob o marco da concentração fundiária e da desigualdade social. No Nordeste, a seca cumpriu o papel de consolidar de forma ainda mais evidente a lógica social moldada pelo latifúndio — e a divisão da sociedade em “casa grande” e “senzala”. E a fome, associada à seca, adquiriu o status de característica ingênita, de fenômeno natural e inevitável — como se fosse um elemento da paisagem que sempre esteve lá.
Estima-se que 28 milhões de nordestinos foram atingidos, em maior ou menor medida, pela seca de 1979-1984. Desses, 16,2 milhões estiveram no chamado “limiar da sobrevivência” — em estado de pobreza extrema, submetidos à fome e privações. Não há uma estatística oficial do regime militar sobre a quantidade de pessoas que morreram de fome durante a seca. Em 1986, o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) fez um levantamento das mortes por fome em sete comunidades de três estados do Nordeste. A pesquisa revelou uma taxa de letalidade de 2,5% da população nos municípios analisados.