O filme relata o início dos anos 1970, em pleno governo Médici. Leonardo Medeiros faz um belo trabalho interpretando Tiago, um dos milhares de militantes de esquerda que acreditavam na luta armada como caminho para derrotar a ditadura militar. Ferido durante uma ação da repressão, ele é salvo por um membro de sua organização.

Tiago é obrigado a ficar escondido num apartamento. Evita se aproximar das janelas. Assusta-se com cada som da campainha, do telefone, do movimento dos vizinhos de cima, dos lados, abaixo. Cerca-se de armas e está pronto para tudo. Mas se for encontrado, tem poucas saídas. É um verdadeiro símbolo da esquerda armada contra a ditadura. Apartada de tudo e de todos. Pequena, armada e condenada.

O apartamento para onde Tiago é levado é de Pedro (Michel Bercovitch). Um jovem de classe média, simpatizante da causa. Rosa (Débora Duboc) é uma companheira de organização. É também a enfermeira e arrumadeira de Tiago. Seu comportamento é de quem assume o papel que se espera de uma mulher tradicional, apesar de pertencer a uma organização que quer desafiar toda a sociedade atual, incluindo o machismo. O responsável pelo salvamento de Tiago é Mateus (Jonas Bloch). Um antigo combatente que enfrentou a ditadura de Getúlio Vargas e, por isso, foi preso e torturado.

Pois bem, Pedro cede seu apartamento, mesmo arriscando sua confortável vida de classe média. Tiago desconfia da firmeza ideológica dessa generosidade. Bri Fioca interpreta a idosa e solitária vizinha do apartamento da frente que insiste em lhe procurar. Dá sinais de que apenas quer aliviar sua solidão. Tiago vê nisso uma ameaça à segurança e ponto final. À sensibilidade poética de Rosa, Tiago responde com as fórmulas vazias que aprendeu no partido. Até em relação, a Mateus tem reservas. O veterano lutador defende o recuo diante dos ataques da ditadura. Tiago entende a postura como vacilação. Uma traição à causa revolucionária.

Lutando contra loucura usando a paixão revolucionária

Tudo isso começa a pintar um personagem antipático. Ele foi ferido e injustiçado pelos vilões da ditadura, é verdade. Mas também é injusto ou rude em relação a quem lhe dá apoio. É paranóico, insensível, grosseiro. O retrato da esquerda isolada e antipática parece estar pronto. Mas, ainda não está.

Tiago finalmente cede aos insistentes convites da idosa vizinha. Janta com ela e descobre que é espanhola e teve um filho morto na luta contra a ditadura de Franco. Ela vê nele uma reencarnação da coragem do filho assassinado. Ele respeita e aceita ser parte importante na homenagem que a mãe presta ao filho morto.

Ao mesmo tempo, Tiago se deixa seduzir pela simplicidade sábia de Rosa. Dão-se ao luxo de fazer um piquenique na cobertura do prédio. Fazem amor, mesmo que abafem os gemidos menos por recato do que por medo de que acabem chamando a atenção dos vizinhos e da repressão dos militares. Tiago sente que é preciso fazer contato com pessoas normais. Ao mesmo tempo, luta contra a loucura de suas condições apelando para sua paixão revolucionária. Mas isso dura pouco.

Convencido de que viu evidências de que Pedro vai entregar todos eles à repressão, Tiago marca um encontro com Mateus. Quer denunciar o delator. O encontro não acontece. Perto do local marcado, Tiago observa a movimentação da polícia. Vê o corpo de Mateus, abatido pelas forças da repressão. Reconhece no combatente morto alguém que não hesitou em arriscar a vida apesar de estar convencido de que o caminho era outro.

Em tempos de ditadura é preciso recuar

Perturbado, Tiago volta ao apartamento certo de que Pedro fora o responsável pela morte de Mateus. Captura Pedro e o teria executado não fosse a intervenção de Rosa. “Não vamos agir como eles”, ela diz. 

É o tempo para que a repressão chegue ao prédio. Escondidos, eles vêm aquele que realmente entregara o grupo. Um jovem recém-recrutado que foi preso e acabou confessando o que sabia após ter sido torturado. Tiago reconhece o erro que cometeria se matasse Pedro. 

Estão cercados. Não há como fugir das forças da repressão. Os três se armam e partem para a batalha final. Destinada ao fracasso imediato, mas parte da corajosa e longa guerra contra a escuridão da ditadura.

É de escuridão de que fala o filme de Venturi. Como alguém vendado, a esquerda armada tateou, buscou apoios e alvos para fazer sua revolução. Em vão.

Foi isolada, massacrada, torturada, reduzida quase a zero. Não entendeu o que disse o veterano Mateus no filme. Ou seja, em tempos de ditadura é preciso recuar. Algo que a melhor tradição marxista sempre afirmou. As lutas sob ditaduras serão quase sempre de resistência. Muito dificilmente, serão de ataque e vitória sobre o inimigo. Não se trata de coragem ou determinação. Trata-se de condições de falar com a maioria da população e dos trabalhadores. De mobilizar esses setores para o combate. Sob ditadura, esse diálogo está fechado. Nenhuma atitude isolada ou minoritária consegue convencer a classe trabalhadora a agir abertamente contra seu inimigo de classe. Ela sabe que as condições são muito adversas. Só a mais ampla democracia pode melhorar suas chances.

Contra a onda de suavização dos crimes da ditadura

Apesar disso, o filme de Venturi presta justa homenagem aos que, heroicamente, insistiram nesse camin

ho. Cabra-cega é o jogo em que a vítima solitária e privada da visão tenta reagir contra sua situação desvantajosa. 

O papel de cabra-cega foi o que coube à esquerda em sua luta contra a ditadura militar. Mas a desvantagem era muito maior. A ditadura não apenas colocou vendas nos olhos da resistência. Ela também a amarrou, amordaçou e despiu. Depois disso, em meio a toda essa escuridão e desorientação, espancou e torturou. Ao mesmo tempo, escondeu tudo isso usando, principalmente, o apoio da grande mídia. TV Globo, à frente. Não é à toa que Venturi esconde com uma tevê ligada parte da cena em que Dora (Odara Carvalho), a companheira de Tiago, é torturada.

Foi isso que aconteceu com aqueles que resistiram ao golpe de 64. Principalmente, quando vinham das oposições de esquerda. Enfrentar essa máquina de morte com armas estava destinado ao fracasso. Era fazer o jogo das trevas. Foi um erro. Mas os que o fizeram, lutaram uma luta justa. Como na cena final do filme, eles desafiaram suas próprias limitações visuais e saltaram em direção à luz. E muito dessa luz ainda nos ajuda a ver algo do que temos a fazer no presente e no futuro. E faz do filme de Venturi uma bela exceção na atual onda que procura aliviar os crimes da ditadura e jogar a culpa naqueles que foram suas vítimas.

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Sério Domingues integra a equipe do NPC e escreve para as páginas Mídia Vigiada e Revolutas