Por Ubirajara Farias, abril de 2005
 

No último dia 13 de abril, quando completaram-se 3 anos do levante popular-militar que recolocou o presidente Hugo Chávez novamente no Palácio de Miraflores – ele que havia sido derrubado dois antes por um golpe de direita apoiado pelos EUA – foi realizado no Pátio das Forças Armadas, em Caracas,  o ato de constituição das Reservas Militares e da Mobilização Nacional e empossado como Comandante das Reservas Militares o general Julio Quintero Vitória.

No ato, o presidente Chávez conclamou o povo venezuelano a ingressar nas Reservas Militares, formadas por civil, homens e mulheres até 50 anos de idade, que, como voluntários, receberão treinamento militar-político nos quartéis de todo o país, para defender a Venezuela de agressões externas. “No mesmo momento em que a Venezuela for invadida, terá início a guerra de guerrilhas para defender nossa soberania e expulsar o invasor”, declarou o presidente Chávez em seu programa dominical pela televisão.

Na mesma semana, o chefe do estado-maior das Forças Armadas dos EUA, General Jeff Meyer, visitou o insurreto Equador e a ocupada Colômbia, onde fez declarações enigmáticas e ambíguas. Ao mesmo tempo em que dizia que os EUA não querem invadir a Venezuela, afirmou que se países “perturbadores da ordem” atuarem na região o governo norte-americano poderá ser obrigado a intervir, sem especificar qual exatamente seria esta intervenção. Basta recorrer à história para se ter uma idéia, pois a história da política externa dos EUA é uma história de intervenções militares em vários cantos do planeta.

Evidentemente, os segmentos da direita venezuelana reagiram furiosamente à decisão do governo Chávez de formar um contingente de 2 milhões e meio de homens e mulheres preparados para a defesa de um país que, pelo simples fato de possuir as maiores reservas de petróleo  conhecidas em todo o mundo, corre grande risco, já que a produção de petróleo mundial é declinante e o maior consumidor do mundo, é também o país mais armado do planeta e não produz sequer metade do petróleo que precisa a cada ano. Para quem acha este raciocínio muito alarmista ou simplista, aí está a ocupação militar do Iraque para demonstrar o risco que a Venezuela corre.

Ainda assim, as críticas da direita venezuelana à decisão de Chávez de comprar 100 mil fuzis da Rússia, algumas fragatas da Espanha e aviões do Brasil, beiram a mais completa irracionalidade. O raciocínio do deputado Eduardo Zambrano, da conservadora Ação Democrática, partido que se revezou no poder nas várias décadas em que houve o maior enriquecimento da oligarquia petroleira venezuelana, é muito didático.

“A Venezuela é um país pacífico – diz candidamente em um programa da tv estatal que abre espaço para a oposição – não haverá nenhuma guerra. Isto é apenas um circo de Chávez, fruto de sua imaginação, preparar-se para uma suposta guerra contra os Estados Unidos e a Colômbia”.  Nem mesmo a informação de que os EUA gastam anualmente 500 bilhões de dólares/ano na indústria bélica, ou que elevaram para 20 bilhões de dólares e o volume de efetivos militares na vizinha Colômbia, é capaz de trazer uma dose de realismo às suas análises.

No mesmo programa televisivo, o general da reserva Miguel Aparício, também da oposição tentava dizer que a criação da Reserva Militar é apenas resultado do desejo de Chávez de militarizar o país, dada a sua formação militar.”Para quê Chávez quer 2,5 milhões de reservistas se nem mesmo os EUA ou a China possuem tal contingente?” fustiga nas telas da tv estatal aberta à oposição. Vale lembrar que o contingente militar chinês alcança 100 milhões de homens/mulheres e que apenas no Iraque os EUA têm mais soldados que o número de fuzis que Chávez está comprando da Rússia.

Enquanto um telespectador chavista lamentava que Chávez comprasse apenas 100 mil fuzis – “deveria comprar 25 milhões, um para cada venezuelano”, dizia – outras informações, mais objetivas, eram repartidas para demonstrar que não há nenhuma militarização frenética e paranóica do país. A começar pelo fato de que há 50 anos não há reposição de armamento das forças armadas venezuelanas, razão da compra dos fuzis russos, apesar dos protestos dos EUA, o maior fabricante e comerciante de armas do mundo.

Enquanto arma Israel, a Colômbia e a Guatemala, o governo Bush protesta contra a decisão da Espanha de vender aviões e fragatas à Venezuela, apesar da explicação de José Luiz Zapatero de que estes equipamentos têm finalidade defensiva, destinam-se ao combate ao narcotráfico e aos desastres naturais. O argumento espanhol foi desprezado pelos estadunidenses, na mesma semana em que marines foram presos com grandes quantidades de cocaína ao voltarem da Colômbia, e o governo dos EUA recusa a extradição dos mesmos para serem julgados no país sul-americano. Obediente, a Colômbia se cala.

O Brasil no debate

Como o Brasil, através da Aliança Estratégica firmada com a Venezuela em fevereiro último, também se dispôs a vender aviões militares ao país vizinho, bem como a uma cooperação militar para a defesa da região amazônica, veio do jornal Valor Econômico, uma estridente  manifestação de solidariedade à direita venezuelana, afirmando que a formação da Reserva Militar é um avanço do governo Chávez rumo à ditadura. Como se sabe, o Valor Econômico pertence aos grupos Folha e Globo, ambos defensores do golpe militar de 64 no Brasil e, atualmente, defensores militantes de que o governo Lula mantenha o pagamento integral das dívidas externa e interna, a  estabilidade da política econômica que favorece o setor financeiro e propõe que o dirigente petista distancie-se de Chavez.

O tom do editorial do Valor Econômico, entre furioso e desolado, talvez seja um bom termômetro para medir o quanto a mobilização de um povo, bem preparado política e militarmente, elevando seus indicadores sanitários e educacionais, pode assustar os representantes da grande capital, os anunciantes que controlam a linha editorial da grande imprensa. Porém, o ataque do jornal Valor Econômico dirige-se também contra a decisão do governo venezuelano de acabar com os privilégios seculares que as multinacionais petroleiras sempre tiveram por lá, adotando providências para que a receita petroleira seja cada vez mais nacionalizada e usada em benefício dos milhões de venezuelanos que no passado jamais usufruíram desta riqueza imensa.

Notem a confissão do Valor Econômico: “Chávez resolveu também apertar o cerco às companhias estrangeiras de petróleo, que respondem por quase metade da produção. Ele elevou os royaties de 1% para 16,6% das empresas que opera

m na bacia do Orinoco e estabeleceu que novas parcerias terão termos mais favoráveis ao governo – 30% de royalties e 51% de participação da PDVSA. Com a produção estabilizada ou cadente e medidas que afugentam investidores, o governo venezuelano poderá em breve ficar com recursos menores para programas sociais.”

Ou seja, o jornal que se cala diante da clamorosa rapina que as transnacionais fazem das riquezas minerais aqui no Brasil – seja do silício, do ouro, do petróleo, do nióbio, do alumínio produzido com energia elétrica subsidiada, enquanto os brasileiros comuns pagam tarifa cheia – revolta-se contra a decisão soberana do Governo Chávez de cobrar preços mais justos pelo o que vende, como em qualquer regra capitalista, como, por exemplo, os países hegemônicos nos cobram por seus produtos industrializados, pelos pacotes tecnológicos, pelos royalties. Se um país rico cobra, tudo bem, mas se é a Venezuela…

Educação e armas

A direita venezuelana, em sintonia com a Casa Branca, recebeu uma surpreendente solidariedade em sua campanha contra as Reservas Militares. O senador Cristóvam Buarque, ex-ministro da Educação no primeiro ano do governo Lula, declarou ao jornal “El Nacional”, um dos promotores do golpe contra Chávez em 2002, que “de nada serve entregar fuzis a um povo sem educação”. Buarque, conselheiro da Fundação Roberto Marinho, pertencente ao Grupo Globo, ao qual também pertence o Valor Econômico, pode ter sido traído pela desinformação contida na pergunta do jornalista que o entrevistou, onde se afirma que pela primeira vez em 40 anos a Venezuela irá gastar mais em armas que em educação.

Os números mostram exatamente o contrário: o governo Chávez quadriplicou o orçamento educacional e a Venezuela é hoje um país em que a grande maioria do povo está estudando, seja nos cursos regulares, seja nas Missões Robinson, Sucre ou Ribas, programas sociais sustentados com recursos do petróleo. Como resultado, a Venezuela está prestes a ser declarada pela Unesco como território livre do analfabetismo, façanha que na América Latina pertence unicamente a Cuba, não por acaso, país que vem defendendo sua soberania através de um povo armado e organizado em milícias, tal como agora se pretende fazer na pátria de Bolívar.

Talvez o professor Cristóvam não goste desta lição da história, mas foi com armas nas mãos que a Nicarágua Sandinista eliminou o analfabetismo no período revolucionário para vê-lo retornar na Nicarágua neoliberal e corrupta de hoje em dia. Igualmente, foi com armas nas mãos que a China transformou-se de um país imerso nas trevas do analfabetismo e onde as mulheres eram vendidas nas feiras em uma nação que lança satélites e é o maior produtor de computadores pessoais do mundo.

A preparação militar de um povo soberano é condição para defender esta soberania e para implementar todas as outras formas de soberania como a soberania educacional, a soberania alimentar através da reforma agrária, a soberania sanitária através de fortes políticas públicas de saúde, que na Venezuela Bolivariana se realiza com milhares de médicos cubanos, os mesmos que estão sendo expulsos daqui do Brasil, onde milhões de brasileiros só conhecem os médicos pelas novelas da Rede Globo, sustentadas pelas gordas verbas publicitárias públicas, verbas que faltam ao magro orçamento educacional. Que o ministro Cristovam não conseguiu engordar.