Por Lia Imanishi/ Retrato do Brasil
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O 1º de setembro transformou-se numa data histórica para os amantes do batidão do funk. Foi quando cerca de 700 funkeiros lotaram as galerias da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro para acompanhar a votação de dois projetos de lei que acabaram aprovados por unanimidade pelos 70 parlamentares. Um desses projetos, apresentado pelos deputados Marcelo Freixo (PSOL) e Wagner Montes (PDT), estabelece que o funk é um patrimônio cultural e musical de caráter popular do estado. A lei estabelece que as decisões sobre o ritmo sejam de competência de órgãos ligados à cultura e proíbe qualquer tipo de preconceito ou discriminação de natureza social, racial, cultural ou administrativa contra o funk ou seus integrantes.

O outro, apresentado por Paulo Melo (PMDB) e também por Freixo, revoga lei de autoria do ex-policial civil e ex-deputado cassado Álvaro Lins, que fora aprovada com apenas um voto contrário em junho do ano passado. Essa lei praticamente inviabilizou os bailes funk realizados em clubes e comunidades, ao estabelecer regras muito mais rígidas para esses eventos do que as que vigoram para quaisquer outros. Essas regras também enquadravam festas raves e exigiam que o produtor enviasse à Secretaria de Segurança Pública, com 30 dias de antecedência, um documento definindo detalhes da organização dos eventos, que iam da expectativa de público, monitoramento por câmeras, passando pelos horários de início e fim, à contratação de um banheiro químico para cada 50 pessoas. Bailes de escolas de samba, por exemplo, não precisam de nada disso.

Como uma lei que obteve aprovação quase unânime pôde ser derrubada um ano depois? “Os projetos foram escritos pelo movimento [do funk]”, disse Freixo durante a votação dos textos. “O mérito é deles [funkeiros], que percorreram gabinetes e possibilitaram essa votação histórica.”

Na verdade, quem imaginou os projetos de lei e percorreu os gabinetes foi um único funkeiro, Leonardo Pereira Mota, que atende pelo nome de MC Leonardo, 34 anos, que faz funk há 17. Filho do forrozeiro Chico Mota, que tocou com Jackson do Pandeiro, é nascido e criado na favela da Rocinha. Foi vendedor de picolé e de tapioca na praia, office boy e taxista. Só estudou até a quinta série, mas hoje assina uma coluna na revista Caros Amigos e deu palestras sobre o funk em várias universidades.

“Para quem só foi tomar iogurte com 15 anos, cheguei bem longe”, disse ele a Retrato do Brasil no início de outubro. O MC ganhou visibilidade quando o “Rap das Armas”, que escreveu junto com o irmão, Júnior, entrou para a trilha sonora do filme Tropa de Elite. Hoje, Mota se dedica a promover “rodas de funk”, eventos onde a “velha-guarda” do gênero (que vem desde a década de 1970, quando os bailes começaram por lá) se reúne com MCs (cantores e compositores) mais jovens, para cantar, à maneira dos repentistas, as alegrias e desventuras da vida na favela.

Reunindo força

Mota conta que não foi fácil achar partidários para a defesa da lei. “Eu dizia para as pessoas que a gente precisava se organizar numa associação para brigar pela lei, mostrar que a união faz a força, mas os profissionais do funk não têm essa visão sindical.” Mesmo assim, ele reuniu 40 “militantes engajados do funk” e criou, no ano passado, na mesma época da aprovação da lei de Álvaro Lins, a Associação dos Profissionais e Amigos do Funk, a Apafunk.
Essencial nessa história, diz ele, foi a antropóloga Adriana Facina, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora. Ela está escrevendo um livro para o qual já entrevistou mais de cem funkeiros, indo à casa de cada um deles durante vários dias. “Ela me perguntou se eu estava mesmo disposto a ir atrás de tudo aquilo que eu estava falando. Disse que sim e ela me apresentou algumas pessoas, que me ajudaram na elaboração do projeto”.

Entre essas pessoas havia gente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem terra (
MST), do Sindicato dos Petroleiros (Sindipetro), do Sindicato dos Contábeis (Sindicont) e o deputado Freixo. “Bati à porta dos 70 gabinetes. Uns me deram dez minutos, outros duas horas, outros se mostraram favoráveis ao funk antes mesmo de eu falar. A perseguição contra o funk é tão suja que é difícil achar quem é o inimigo. Ninguém quer dizer que é contra o funk porque, do favelado ao playboy, todo mundo frequenta os bailes. A favela não é Marte, sabe. Tem que aproximar essa gente.”

MC Leonardo quer fortalecer entidade do funk

Desde que sua lei foi aprovada, MC já recebeu convites de seis partidos para candidatar-se. Recusou todos. “Eu quero mais é aproveitar para tornar a Apafunk mais forte, mostrar para os funkeiros que a gente pode se politizar sem se partidarizar.” Mota diz que as leis são necessárias para acabar com a proibição de tocar funk nos clubes do estado, a qual data dos anos 1990, quando jovens favelados de Vigário Geral desceram para as praias da zona sul e encenaram embates entre galeras rivais. Esses embates foram midiatizados como assaltos de funkeiros favelados, e os bailes foram proibidos no “asfalto”.

Os bailes subiram os morros e continuaram nas favelas, onde uma ínfima parte da população, por falta de oportunidades mais rentáveis, dedica-se ao comércio varejista de drogas ilícitas. Confundindo vendedores de drogas com funkeiros, a polícia atrapalha os bailes, quebrando CDs e equipamentos de som. “O funk é criminalizado mesmo sem fazer apologia ao crime, sem falar putaria. É discriminado porque é som de preto e tem classe, que não é a dominante. A imprensa fala assim: ‘Jovem foi presa com cinco quilos de cocaína na favela do Salgueiro, lugar onde tem baile funk’. Outra manchete: ‘Polícia é agredida em baile funk na Cidade de Deus’. Nós soubemos pelos camaradas que moram lá que a polícia foi agredida a um quilômetro de distância do baile. A mídia compra a versão da polícia porque funk vende jornal.”
O MC rebate aqueles que dizem que o funk é pornográfico ou faz apologia ao crime. “O mundo está erotizado, o funk está discutindo sexualidade dentro das favelas de uma maneira que nunca ninguém discutiu. Quando os moleques da favela cantam o que estão vendo e sentindo, mesmo que seja sobre o movimento do comércio varejista de drogas, eles têm esse direito. Não podem ser incluídos no rol daqueles irresponsáveis que vão tacar fogo na cidade. Não pode ser só o William Bonner e a Fátima Bernardes que dão a notícia do que acontece na favela.”

Funk: mais um capítulo da perseguição histórica da cultura negra brasileira

Adriana Facina diz que a perseguição contra o funk é um capítulo de uma história mais antiga de criminalização da cultura negra no Brasil. “A perseguição aos batuques que vinham das senzalas, à capoeira, ao maxixe, ao samba, entre outros, fez parte da formação da nossa sociedade, profundamente opressiva com os debaixo. Um exemplo importante dessa perseguição ocorreu quando Pixinguinha e os Oito Batutas, grupo de músicos jovens e de maioria negra, foram convidados a tocar na França, em 1922.” Ela cita o articulista de um jornal da época que deplorava o fato de que fosse mostrado nos boulevards de Paris um Brasil “pernóstico, negroide e ridículo”.

“Nos dias de hoje”, diz Adriana, “proibir o baile funk é segregar ou tornar invisível essa experiência do que é ser jovem e favelado em nosso contexto urbano. Isso nos impede de entender e transformar os problemas sociais que geraram essa situação. Criminalizar essa cultura é criminalizar os pobres”.

Ela rebate o mito, sustentado pela polícia e pela imprensa, de que os bailes funk provocam violência. “Jogos no Maracanã provocam o aumento de ocorrências policiais em seu entorno e nem por isso se tornaram proibidos. Do mesmo modo, micaretas, o Réveillon de Copacabana, festas em boates, chopadas e por aí vai.”

Adriana lembra que, por meio do funk, milhões de jovens descobrem a possibilidade de investir na carreira musical. “Eles criam expectativas em meio ao deserto de expectativas que são as suas vidas. Ganham autoestima; isso quando boa parte da sociedade olha para eles como ameaça ou como lixo. A criminalização do funk impossibilita isso e reforça identidades negativas que reservam ao futuro desses jovens a cadeia, a morte ou a infelicidade de uma vida de trabalho escravizante e desprovido de significado.”


Funk movimenta mais de R$10 milhões por ano

Pelas contas da Apafunk, o funk emprega diretamente cerca de 10 mil pessoas no estado do Rio, entre MCs, DJs (que mixam a música eletrônica, usando ritmos estadunidenses, como soul, jazz e Miami bass, e ritmos brasileiros, como os batuques do candomblé, do samba e o forró), produtores, dançarinos, empresários, técnicos de som, seguranças, motoristas e outros que trabalham para garantir a alegria de aproximadamente 3 milhões de pessoas que frequentam bailes funk no estado.

No ano passado, uma pesquisa da Fundação Getulio Vargas, coordenada por Elizete Inácio, calculou que o funk movimenta mais de 10 milhões de reais por mês no Rio de Janeiro. Os pesquisadores ouviram 114 dos 164 MCs atuantes na Região Metropolitana do Rio. Descobriram que eles ganham, em média, 5 mil reais por mês apenas no funk. Os DJs recebem um pouco menos, em média, 3,6 mil reais.

É importante frisar que esses valores são a média – enquanto aquele que canta um funk mais comercial e erotizado, como o “Rap do Créu”, pode ganhar 15 mil reais por mês, aquele que tem uma proposta mais engajada pode ser desprezado pelos maiores produtores e ganhar menos de mil.

A pesquisa mostra que os bailes funk são a atividade de cultura e lazer que mais atrai os jovens no estado. São 1,2 milhão de pagantes por mês – quase 14,5 Maracanãs lotados. Essa multidão deixa 7 milhões de reais nas bilheterias dos quase 900 bailes pagos promovidos mensalmente no estado.