Por Carlos Heitor Cony
Desde que me entendo por gente (e mesmo antes disso), ouço falar em decadência do ensino, baixo nível dos vestibulandos, coisas assim. Como qualquer mortal, também cruzei o gargalo de antanho, quando as provas nada tinham do atual sistema de múltipla escolha.
Achei profundamente cretina a redação que me mandaram fazer no exame (“narre um filme que viu recentemente”
opinião, mas vou dá-la gratuita e escandalosamente: pode. Em princípio, sou contra o tal vestibular unificado, que acredito reduzir a sabedoria humana a uma espécie de loteria esportiva intelectual. Um rapaz analfabeto de pai, mãe e avoengos pode cursar desde o primário até a extensão universitária acertando sempre nas colunas respectivas (aliás, teve um que tirou o
primeiro lugar). Pode formar-se engenheiro sem saber somar dois e dois, ser médico sem saber para que serve o coração, ser professor de geografia sem saber que uma ilha é uma porção de terra cercada de água por todos os lados.
Essa hipótese, matematicamente viável, tem uma probabilidade mínima. Um entendido já me explicou a fórmula; parece que são necessários trezentos bilhões de provas para que um mesmo cidadão, sem nada saber, vá do bê-a-bá até a tese sobre a Teoria do Quanta ou sobre as Influências Medas na Cerâmica dos Persas. Deixa para lá. Sendo contra a múltipla escolha, não sou pela correta grafia das palavras. E muito menos pela gramática correta. No fundo, gramática e ortografia são convenções mais ou menos abstratas. Os maiores pensadores do mundo, líderes de povos, eram rutilantes analfabetos: Jesus Cristo e Maomé estão aí para provar. Foram os dois homens que mais exerceram influência sobre a vida e a cultura dos outros homens. E, lembremos, nunca perderam tempo em saber se “cãs” é feminino de cão e “farinha”, diminutivo de faro. Lembro uma confissão autobiográfica de Nelson Rodrigues. Um dia, em meio a uma crônica, deu-lhe um branco total e ele perguntou, em voz alta, se cachorro se escrevia com x ou com cê cedilha.
Até hoje, antes de escrever determinadas palavras (esquistossomose, por exemplo, e nem fui ao Aurélio consultar se estou certo), sou obrigado a pensar fundo, ou, sacrifício supremo, ir até a estante apanhar o ensebado dicionário do mestre. Na minha situação, acredito, estão milhares de outros escribas que não chegam a ser, exatamente, analfabetos, embora no que me tange e
concerne, eu tenha pavorosas dúvidas a respeito. Os leitores também. Por que chama é com “ch” e não com “x”? O importante não é escrever certo. O furo está mais em cima: é pensar certo. Mas o que é pensar certo? Resposta: é pensar de acordo com a norma. Por falar em norma, venho observando que os gramáticos estão evitando falar em gramática. Têm preferido falar em norma,
citar a norma como fonte da verdade e da beleza da língua. Não faz muito, estarreci alguns professores defendendo a expressão popular “um chopp e dois pastel”. No meu entender, a frase é perfeita não pela norma, mas pela ontologia do pastel; não existem “pastéis”, existe pastel, que todo mundo sabe o que é. Dois pastéis é uma redundância que o bom gosto literário aconselha evitar. Sei que essa crônica será considerada um atentado à norma.
Chamo a atenção para tudo que foi inventado e fez a Humanidade sair das normas e chegar ao ponto a que chegou -com gente pedindo “um chopp e dois pastel” e “xamando a atensão para os erros da maça”. Não estou inventando uma linguagem, como fizeram Guimarães Rosa e Glauber Rocha, estou apenas registrando a falência das normas em relação ao uso do mundo e dos povos.