Por Cláudia Santiago, do Rio de Janeiro (RJ), para o jornal Brasil de Fato. Edição Nº 90, de 18 a 24 de novenbro de 2004
 

A escravidão no Brasil ainda não acabou para milhões de homens e mulheres, afirma Vito Giannotti. Para ele, a causa de todos os males do país é a continuação de uma realidade que garante a Casa Grande para apenas um punhado de gente e mantém a imensa maioria na Senzala. Nessa entrevista ao Brasil de Fato, Giannotti fala sobre o seu mais recente trabalho, Muralhas da Linguagem (Ed. Mauad, na foto). Entre outras coisas, explica que na Senzala não há boas escolas e que a baixa escolaridade e exclusão social são as principais muralhas da linguagem. Giannotti quer convencer jornalistas, sindicalistas, advogados, professores, e quaisquer outros profissionais que se relacionem com o povo, de que a mesma divisão econômica injusta que se perpetua no Brasil se repete na linguagem. 

Brasil de Fato – O senhor é autor de cinco livros sobre a comunicação dos trabalhadores. Em todos eles, a linguagem é um dos temas centrais, sendo que os dois últimos tratam especificamente deste assunto. De onde vem essa preocupação?

Vito Giannotti – Vem principalmente da experiência de 22 anos de vida em várias fábricas metalúrgicas. Muitos colegas tinham muita difi culdade de compreender um texto de um jornal do sindicato ou de qualquer outro jornal. A contradição era simples. Esses trabalhadores construíam suas casas, produziam tudo o que a indústria soltava no mercado. Sabiam ser solidários, sabiam amar, sabiam fazer greve… mas não entendiam o que significava a expressão “atual conjuntura”.

BF – Em A Muralha da Linguagem, o senhor se dispõe a comprovar que o Brasil ainda hoje é dividido entre a Casa Grande e a Senzala e que esta divisão se reflete na linguagem. Como chegou a essa ligação quase automática?

Giannotti – O problema não é a forma de falar da classe dominante, mas a exploração que a burguesia impõe aos trabalhadores. Nosso país continua dividido entre a Casa Grande e a Senzala. Ou seja, a escravidão ainda não acabou para milhões e milhões de homens e mulheres. A causa de todos os males do Brasil é a continuação desta triste realidade: um punhado de gente vive na Casa Grande e a imensa maioria, na Senzala. O Brasil, pelos dados da ONU, está em 125º lugar no mundo, em atendimento de saúde. Ao mesmo tempo, no Hospital Albert Einstein, em 1992, a mãe do então presidente Collor pagava 4.500 dólares de diária. Na zona sul do Rio, onde ficamos bairros da Casa Grande carioca, há dezenas de livrarias chiquérrimas a cada duzentos metros. Enquanto isso, na Baixada Fluminense, no município de São João de Meriti, não há livraria. E a população de lá é de mais de 700 mil pessoas. Esta divisão se repete na linguagem. Derrubar as muralhas da linguagem é combater a exclusão social.

BF – Que muralhas da linguagem são essas?

Giannotti – A maior muralha, aquela que impede a imensa maioria de entender um texto, ou uma frase, é a baixa escolaridade do nosso povo. A média de anos de estudos, no Brasil, é das mais baixas da América Latina. São cinco anos. E que tipo de escola? Sabemos que da época da ditadura militar para cá a qualidade do ensino caiu tremendamente. Hoje nossas escolas públicas foram destruídas. É todo um plano do grande capital, do imperialismo. O objetivo é duplo: fazer piorar ao extremo para, depois, privatizar e ao mesmo tempo manipular o povo para dominá-lo mais facilmente. Um povo sem educação é mais facilmente manipulável. A televisão, capitaneada pela Rede Globo, completa o serviço. Os programas da baixaria da Globo e suas irmãs são ótimos para alienar o povo, para desinformá-lo, para afastá-lo da política e jogá-lo na mão de charlatães e vigaristas de todo tipo. Esta é a primeira grande muralha: a pouca escolaridade e a péssima qualidade do nosso ensino.

BF – O senhor diz que nossas universidades e escolas são de péssima qualidade?

Giannotti – Digo e repito. A prova é que, e isto está bem explicado no livro, num levantamento feito pela ONU, com 265 mil estudantes de 32 países do mundo sobre a compreensão de um texto, o Brasil chegou em 32º lugar. E foram feitos testes em estudantes de escolas públicas e particulares. É claro que há ilhas de excelência. Faculdades e escolas melhores do que a imensa maioria. Há estudantes que são gênios. Não é um problema de DNA do brasileiro. Ao contrário, há centenas de técnicos, cientistas e pesquisadores trabalhando em pesquisas até na Nasa (Agência Espacial dos Estados Unidos). Mas a média das nossas escolas é um desastre. Por isso, a primeira grande barreira da linguagem é a escolaridade. Quem não estudou numa boa escola tem dificuldade de entender palavras como: irreversível, autogestão ou processo histórico. Mas esta é apenas a primeira barragem que impede o leitor de entender um texto escrito ou falado. 

BF – E quais são as outras?

Giannotti – Eu diria que a segunda é o que podemos chamar de intelectualês. É o correspondente da primeira barragem. Por intelectualês, no livro, entendo a prática de falar de uma forma complicada, usando palavras e expressões compreendidas apenas por quem é do ramo. Isto é, quem tem uma escolaridade de vários e vários anos e uma prática intelectual intensa. O intelectualês é legítimo se falado entre intelectuais. Mas, falado com a maioria do nosso povo, com a escolaridade de que já falei, é uma barreira que impede a compreensão da maioria. Mas, justamente, a nossa comunicação quer falar para a imensa maioria. 

BF – Qual seu objetivo ao dar exemplos fortes sobre a compreensão das palavras pelas classes populares, como no caso da dona Edileuza, que confunde o significado das palavras otimista e pessimista?

Giannotti – É simples e declarado. Se queremos convencer milhões do nosso projeto, precisamos falar e escrever de forma que estes milhões entendam. Eu sempre brinco dizendo que temos que pensar nos normais. Não se iludir que se está falando para um mundo de doutores. É possível traduzir tudo. Tudo pode ser dito de várias maneiras. Tudo pode ser falado em português, ou em inglês, ou em árabe. É possível traduzir qualquer idéia. Não é fácil. É uma arte. Mas ou fazemos isso, ou nossa linguagem só será compreendida por um punhado de iluminados. 

BF – No capítulo três o senhor diz que o Brasil é um país de tradição oral e visual e trata da forte influência do rádio e da televisão sobre a fala e o pensamento do povo. O senhor não tem medo de ser acusado de estar menosprezando a capacidade do povo de fazer uma mediação entre o que recebe por estes meios e a sua vida?

Giannotti – Primeiro, vamos ver o que é esta tradição oral e visual. Nosso povo tem raízes nos índios, nos negros, nos portugueses e outros povos do sul da Europa. Todos estes componentes tinham pouquíssima ou nenhuma familiaridade com a escrita. Nossos índios não liam, diferentemente dos incas e astecas da América Central e do México. Da África, o único povo que conhecia a leitura foram os malês, estabelecidos na Bahia. Dos portugueses que para cá vieram, pouquíssimos sabiam ler e escrever. E os outros povos que vieram colonizar o Brasil, espanhóis, italianos e alemães do sul, eram dos que menos liam na Europa daquela época. Mais do que isso, a política da nossa burguesia predatória sempre foi de não precisar de mão-de-obra com alto grau de escolarização. A burguesia brasileira nunca quis uma população escolarizada. Os resultados estão aí até hoje. Por tudo isso, no livro, falo que a nossa tradição cultural é oral e visual. Oral dos nossos inúmeros ritmos musicais; e visual dos corpos pintados e enfeitados de mil formas dos nossos índios. Nesta tradição o rádio e a televisão se encaixaram como uma luva. E a leitura ficou a ver navios. É por isso que o Brasil, entre 194 países da ONU está em 102º em leitura de jornais. É por isso que, de acordo com o IBGE, dos 5.506 municípios, em 2001, só há algum tipo de livraria em 1.927. Ou seja, em 3.579 não há onde comprar um livro. É essa nossa tradição cultural oral e visual.

BF – O senhor diz e comprova com dados que o Brasil é um país que não lê. Como se explica, então, que os jornais e boletins sejam os principais instrumentos de comunicação entre os movimentos sociais e o povo trabalhador? Não seria o caso de se utilizar outros instrumentos?

Giannotti – O Brasil é um país que não lê, sim. Mesmo assim se publicam aqui quase 7 milhões de exemplares de jornais diários. Parece muito, mas é quase nada. Estas cifras significam que apenas 4,5% da população lê jornal. Mesmo assim, nossos sindicatos e movimentos publicam milhões de jornais para seus trabalhadores. Eu acho que devemos publicar muito mais. Mais e melhores, mais bonitos, com assuntos melhor pensados e outras exigências a mais. Mas isto não pode nos fazer esquecer de que o povo não lê. As estatísticas estão aí. O resto são sonhos. E então? Então vamos usar outros instrumentos de comunicação. Inclusive instrumentos mais próprios da nossa cultura, das nossas origens. E dentre os vários instrumentos, dois são principais: o rádio e a televisão. Precisamos forçar o governo a rever as concessões da rádio e televisão. Elas deveriam ser públicas, mas não o são. São privadas. Privadíssimas. São fábricas de fazer dinheiro. A sociedade não manda em nada. O movimento social deve exigir sua parte neste bolo. Para isso tem que tirar da boca de quem hoje abocanha tudo: Globo, Record, Bandeirantes, Grupo Sirotsky etc. Se querem disputar a hegemonia, é preciso usar estes meios que chegam mais perto do nosso povo. Um povo que não lê, mas que ouve. 

BF – Que dicas o senhor propõe para aqueles que querem se comunicar com as classes populares?

Giannotti – Vou simplesmente repetir as idéias básicas do nosso coletivo de comunicação, o Núcleo Piratininga. Primeiro, não ter ilusões com a grande mídia. Ela tem dono. Tem lado. Tem classe. E defende os interesses de sua classe contra as classes populares. Não existe este papo de neutralidade, objetividade. É tudo ilusão. A mídia obedece aos seus donos e serve aos seus interesses. A conclusão disso é que os trabalhadores precisam ter sua própria mídia: do jornal ao rádio, da TV à internet. Ter e usar, se aperfeiçoando cada dia mais. Se especializar e fazer coisas melhores que nossos inimigos de classe. Melhores para disputar com eles a hegemonia na sociedade.

BF – Em quem o senhor se referencia nos tantos livros e artigos que produz desde a década de 80 sobre o tema da linguagem?

Giannotti – Os autores preferidos pela equipe do NPC no campo da linguagem são: Maria Otília Bocchini, Ângela Kleiman, Magda Soares, Maurízio Gnerre e Oton Garcia. Há uma série de estudos feitos na França, dentre os quais destacamos François Richaudeau, e outros na Espanha, Peru, Colômbia, muito importantes para moldar nossas idéias que estão no livro Muralhas da Linguagem. Além disso, há a contribuição para a pesquisa de milhares de alunos dos nossos cursos de comunicação pelo Brasil afora. Mas, principalmente, nossas reflexões são frutos de nossos muitos anos de militância política junto à classe trabalhadora. 

Quem é
Vito Giannotti é autor de cerca de 20 livros. Já escreveu sobre a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o movimento sindical brasileiro e a comunicação dos trabalhadores. Foi diretor da CUT-SP. No início dos anos 90, fundou, no Rio de Janeiro, o Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) e se especializou em comunicação dos trabalhadores, história das lutas sociais e linguagem para disputar a hegemonia na sociedade. Giannotti nasceu na Itália, em 1943, e vive no Brasil há 40 anos.

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