A união do continente e a heterogeinização de povos

Na última segunda-feira, 25, foi comemorado o Dia de África, uma celebração da luta de independência de países africanos que acontece desde 1963, ano da criação da Organização da Unidade Africana (OUA), em 25 de Maio, em Addis Abeba, na Etiópia.

Esse acontecimento foi fortemente marcado pelo pan-africanismo, ideologia do início do século XIX, que influenciava, na segunda metade do século XX, negros das Américas do Norte e Central e do Caribe, em sua luta pelos direitos dos negros e pela libertação dos territórios africanos que haviam se tornado colônias.   

A luta pela unidade africana vai muito além da independência econômica, política e social; ela também preza pelo fim dos estereótipos traçados pelo colonizador, que já não são mais aceitos ou tolerados.

Na disputa de sentidos sob o continente, a literatura vem ganhando espaço como arma para transformar esse cenário. Através dela, pôde-se reconstruir a historiografia do continente a partir do olhar de quem cresceu e sofreu as transformações da História em seu território.

—As literaturas africanas servem para mostrar o quão heterogêneos são esses países, e que a formação de nação é uma invenção puramente colonial. Um igbo é um igbo, não é um yorubá. Os dois podem ter o rótulo de nigeriano, mas isso é apenas um rótulo. As vezes a gente fala o termo “literatura africana”, mas não existe isso. São literaturas africanas, pois existe literatura angolona, nigeriana, moçambicana… Temos o hábito de colocar tudo no mesmo pote, quando é uma aberração pensar desse jeito—, explica o professor Washington Nascimento.

A descolonização dos espaços

O processo de descolonização das literaturas africanas aconteceu também dentro de bibliotecas e livrarias. Até o gênero chegar de fato ao Brasil, Moçambique, Angola e Nigéria tinham que disputar espaços nas prateleiras de literatura portuguesa. Somente após o vestibular da Universidade de São Paulo, a Fuvest, exigir a leitura da obra Mayombe, em 2016, que o assunto começou a tomar maiores dimensões no país.

“Inegavelmente a gente tem uma ideia de África como país” —, Washington Nascimento, professor de História da África (UERJ). África é um continente com vários países.

Segundo Nascimento, a cobrança da obra no vestibular de São Paulo, seguida por Antes do nascer do mundo, de Mia Couto, para a prova da Uerj em 2018, foi um importante passo rumo à descolonização do conhecimento.

Mayombe captou o interesse de pessoas que nunca tiveram contato com a literatura africana. Aliás, que nunca sequer tinham pensado que aquilo era literatura africana, porque grande parte desses livros, em muitas dessas livrarias, estavam dentro de literatura portuguesa. Essas obras ajudaram as pessoas a perceberem a importância e densidade desses autores e trouxe algo para alunos do Ensino Médio que ainda era muito restrito a especialistas —, lembra o professor.

O gênero que conquistou os leitores brasileiros, chegou a estar dentre os quatro livros mais vendidos da Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP), em 2019. Pela perspectiva do professor Nascimento, parte do sucesso está em as obras seguirem a filosofia de Paulin J. Hountondji, professor na Université Internationele du Bénin, que conta a história do continente a partir da perspectiva intravertida dos estudos africanos. Ou seja, a História da África contada a partir da África.

— Grande parte do que a gente acha que é história da África, não é história da África. É, na verdade, uma história sobre a África, uma representação. O que o Hoentondji traz é a compreensão do continente pelo continente. Não de fora para dentro, mas de dentro para fora. A literatura é uma possibilidade a mão, fácil e rápida, da gente fazer esse movimento e de entender o que é local, o que é nacional e o que é universal.

Descolonizando e desestruturando o patriarcado

A literatura também vem sendo usada como uma poderosa ferramenta no movimento de desesteriotipação, descolonização e questionamento do patriarcado pelas mulheres no continente africano. Nomes como Chimamanda Ngozi Adiche, Buchi Emecheta e Futhi Ntshingila vêm ganhando destaque nas vitrines virtuais e físicas de livrarias pelo Brasil, ao adentrarem as discussões sobre a função da mulher na sociedade.

As obras que em muito se confundem com autobiografia e romance histórico, tratam de temas como a educação de mulheres, a valorização da maternidade e a falta de igualdade de direitos entre meninos e meninas. Muitas delas também relatam a experiência do primeiro contato com o homem branco e a descoberta do racismo e da sociedade de classes.

Confrontando suas narrativas com as noções de nação e territorialidade ensinadas nas aulas de geografia, as autoras submergem o leitor em uma cultura totalmente outra. A identidade tribal é definitivamente mais importante que a nação geográfica em que ela está localizada.

Nas obras, a ideia de feminismo é construída de maneira lenta e gradual, passando longe de estudos acadêmicos e contando sobretudo com as insatisfações de uma vida submissa. O patriarcado impresso em cada sociedade descrita pelas autoras, em muitos pontos se assemelham às vivências ocidentais e brasileiras, fazendo a literatura se aproximar de tal modo de nossos cotidianos, ao ponto nos deixar confusos se Nnu Ego, Olanna e Zola também não estão falando de nós.