Por Vito Giannotti, 7 de abril de 2004
O Golpe de 64 tem características muito claras que não podemos embaralhar. Foi um golpe de direita, a serviço exclusivo da burguesia nacional e internacional. Um golpe que estava em gestação há dez anos e, quando veio, não teve resistência imediata.
Na ocasião dos 40 anos deste golpe veio à luz uma onda que já estava na boca dos golpistas desde 64. No Rio, em vários debates, timidamente, se tentou vender gato por lebre, num processo de total falsificação histórica. Começou-se a falar que os militares teriam dado um contragolpe. Algo como um golpe preventivo. Se não tivesse vindo aquele golpe de direita, teria vindo outro, de esquerda. Afinal, nesta linha de raciocínio, aquele foi um golpe legítimo… Ou, poderíamos dizer, necessário.
Ao ler estas novas-velhas teses não dá para não pensar nos que na Alemanha, hoje, negam o holocausto de Hitler. A história de milhões de judeus e centenas de milhares de comunistas exterminados nos campos de concentração não passaria de fantasias doentias. Ao escutar falar de contragolpe, ou de golpe preventivo, a comparação com a negação do holocausto me veio automaticamente à cabeça. Nesse caso, estas afirmações têm uma claríssima explicação ideológica: justificar o nazismo. Para isto é preciso embaralhar a verdade e fazer esquecer tudo.
O mesmo acontece com a conversa do contragolpe. Nesta afirmação não há nada de histórico, a não ser uma profunda falsificação, apoiada na falta de memória de muitos. Ela se baseia na visão absolutamente ideológica de que direita e esquerda são a mesma coisa. Quase como se dissesse: “Afinal, somos todos iguais. Precisamos ser realistas… a luta de classes acabou, a história acabou. E, desculpem alguma coisa, vamos viver em paz com o capitalismo neoliberal”.
Para os mudaram de lado, se arrependeram de seu passado de esquerda e precisam se justificar, a teoria do contragolpe e do golpe preventivo cai como uma luva. Camufla seu arrependimento.
Um discurso ótimo para limpar a barra da direita
Além de servir para os arrependidos da esquerda, este discurso serve também a toda a mídia que em 64 estava invocando o golpe. Os jornalões hoje se sentiriam incomodados se tivessem de publicar as suas manchetes daqueles dias que antecederam o golpe. Mino Carta, Raimundo Pereira, Heitor Cony e todos os outros que se prezam pela verdade e pela memória são unânimes em afirmar que toda a mídia de 64, menos o jornal Última Hora apoiou o golpe.
O Globo, especificamente, precisava, nestas comemorações de 64, apagar da história seu papel, não só de apoiador, mas de articulador ativo da Ditadura. Fazer esquecer que seu dono, o senhor Roberto Marinho, em 1937, apoiou o golpe fascista de Vargas e, em seguida, se ofereceu como voluntário para atuar no Conselho do DIP, órgão de propaganda e responsável pela censura, durante o Estado Novo.
As organizações Globo gostariam que ninguém se lembrasse da história, eternamente muito mal explicada, do nascimento da Rede Globo, em 65, fruto dos acordos com o grupo norte-americano Time-Life. Eles precisavam fazer esquecer os 20 anos durante os quais sempre defendeu o Regime Militar, até o dia 25 de janeiro de 1984. Neste dias, com 300 mil pessoas na Praça da Sé, em São Paulo, exigindo Diretas-já, a rede nascida logo após o Golpe continuava negando que existisse ditadura no Brasil. Naquela noite, ainda, noticiou que aquele pessoal estava lá… para comemorar a festa da cidade! Nada de eleições diretas.
Esta manobra atual, de encobrimento da verdade sobre o Golpe de 64, serve para a Globo transformar o golpista Marinho num democrata, o santo Roberto Marinho, patrono da democracia, no Brasil. Dar ênfase a esta discussão serve maravilhosamente para seus objetivos. Foi neste sentido, que no dia 23 de março, O Globo saiu às bancas com uma manchete que mal disfarçava sua felicidade: “Disposição golpista da esquerda divide opiniões”. Pronto, está aí o fato consumado. A “disposição golpista da esquerda” existia, em 64, e ponto final.
Assim esta historinha do golpe preventivo serve muito bem para resolver os problema de consciência dos arrependidos de esquerda e para garantir Ibope e financiamento públicos para o Globo e outros jornais parecidos.
É preciso responder a esta armação ideológica com os fatos
História é antes de tudo rememorar fatos e seu contexto. Vamos enumerar alguns blocos de fatos que nos ajudam a desmascarar esta conversa de arrependidos de esquerda e de aproveitadores de direita.
Primeiro fato: Este golpe estava sendo preparado há 10 anos
Desde maio de 1954, quando o ministro do Trabalho de Vargas, João Goulart, propôs 100% de aumento no salário mínimo, começou a se sentir cheiro de golpe no ar. Este foi tentado em agosto, antes e depois da morte de Vargas. Foi retomado antes da posse de Juscelino, em 1955, e na renúncia de Jânio Quadros, em 1961.
A direita não admitia qualquer política minimamente nacionalista e que vislumbrasse alguma medida mais popular. Esta, completamente ligada ao projeto imperialista norte-americano, queria se livrar do nacional-desenvolvimentismo de Vargas, de Juscelino e depois de Goulart.
Como a pregação golpista não estava ainda madura, a direita, capitaneada pela grande maioria dos empresários, e pelos militares doutrinados no anticomunismo norte-americano, adiou o golpe por alguns anos.
Três meses após a conturbada posse de Goulart foi registrado o estatuto do Instituto de Pesquisa e Estudos Sócio-econômicos (IPÊS). Este aparelho político-ideológico foi o grande articulador e formador da opinião pública no caminho da ditadura. Produziu milhões de exemplares de livros, influenciava centenas de jornais, programas de rádio e TV. Produzia cartilhas, panfletos, jornais aos milhões e promovia milhares de conferências. Tudo para levantar o espantalho do “comunismo ateu” que est
aria prestes a tomar conta do Brasil.
O IPES, de 62 a 64, além de dezenas de outros instrumentos de disputa ideológica, produziu dezenas de filmes com duração de 10 minutos no máximo cada um, para fazer projetar nas mais de 3000 salas do país. Além disso, eram projetados em salas paroquiais, fábricas, clubes como o Rotary e o Lions, no Sesi, Sesc e Senac, em praças públicas e em fazendas. Esses filmetes, muito bem feitos, eram uma grande arma para condicionar milhões de cabeças sobre a necessidade do golpe. A televisão estava ainda no começo.
O golpe era, assim, programado nos quartéis, na Embaixada Americana, nas organizações empresariais, na maioria das igrejas com padres reacionários, nos aparelhões controlados pela burguesia, como o Sesi, o Sesc, o Senac, nas rádios e televisões e na imprensa.
É importante destacar este fato para reforçar a visão de que o golpe que implantou a ditadura não foi só militar. Ao contrário. Foi civil-militar. Ou seja, o pensamento hegemônico na época era a favor do golpe, criado por uma hábil orquestração político-ideológica baseada no espantalho do comunismo e garantido pela violência das armas.
Ou seja, o golpe da direita não foi para evitar um fantasioso golpe da esquerda. A direita estava decididíssima a acabar com a democracia para conservar seus privilégios seculares. A direita não admitia que nas ruas se discutissem temas como a Reforma Agrária, e as outras reformas de caráter popular. Não admitia nenhuma contestação à sua dominação que vinha desde Álvares Cabral.
Por isso, ela acabaria com esse tipo de democracia de qualquer jeito. A burguesia brasileira, junto com o imperialismo norte-americano, planejava este golpe havia anos. O objetivo de garantir uma nova fase de expansão do capital, intimamente dependente do capital internacional, exigia uma ditadura. Exigia de acabar com as reivindicações econômicas e políticas de milhões de brasileiros em rápida fase de politização, devido ao clima mundial.
Quando o empresariado, com a cúpula militar, resolveu pôr os tanques nas ruas, encontrou do seu lado toda a mídia, a maioria da classe média assustada pelo fantasma de o Brasil se tornar uma grande Cuba, quase toda a hierarquia da Igreja Católica, e um bando de sindicalistas vendidos e treinados pelo sindicalismo ianque. Assim, ao Comício da Central, no Rio, que reuniu umas 200 mil pessoas exigindo Reformas Populares, a direita respondeu com a Marcha com Deus pela Família e pela Liberdade 600 mil, em São Paulo, encabeçada pela estátua de Nossa Senhora de Fátima.
Depois disso, hoje, ouvir dizer que o golpe veio como reação a provocações imediatas da esquerda é uma piada cínica.
Segundo fato: A esquerda não queria dar golpe nenhum
Quem hoje quer rever a história e afirmar que a esquerda estava preparando o golpe está mentindo descaradamente. O PCB, única força real de esquerda com inserção nacional, não sonhava com nenhuma revolução socialista desde a mudança de sua linha política, em 1958. Seu sonho era uma chamada revolução democrático-burguesa, liderada pela burguesia nacional. A palavra revolução era usada nas discussões internas do Partido, em contraposição à Revolução socialista. Esta estava fora de cogitação, e a proposta do PCB era que o País estava pronto para a etapa da “Revolução democrática burguesa”. Não havia projeto nenhum de tomada de poder. Além do mais, o equilíbrio geopolítico mundial, implantado desde os acordos de Ialta, não admitia esta hipótese.
Havia uma mobilização popular parcial para exigir mudanças mínimas, como as reformas de base. Tratava-se de reformar e não revolucionar a sociedade. Mas para a burguesia brasileira, acostumada à escravidão, qualquer passo democratizante era um crime passível de pelourinho. E o pelourinho viria em forma de uma ditadura militar.
Por parte da esquerda, muitas “bravatas”, como se diz hoje.
Líderes sindicais, como o ferroviário paulista Martinelli, acreditavam que “era só o CGT estalar os dedos que o Brasil parava”. Todo mundo falava do famoso “dispositivo militar” de João Goulart. Havia quem acreditasse em bobagens, citadas por Denys Moraes, como aquela dita pelo Almirante Aragão, o “almirante vermelho”, que chegou a afirmar que, se viesse o golpe “em meia hora eu tomo a cidade e arraso o Palácio da Guanabara”. Ou fanfarronices como a de Prestes, no dia 27 de março, na sede da ABI, sempre no Rio, que afirmou que, “se viesse o golpe, os golpistas teriam suas cabeças cortadas”. Havia muitos outros delírios, como as fantasias de Brizola com seus “Grupos do Onze”.
Todas estas palavras ao vento eram fruto do clima de revolucionarismo produzido pela Revolução Cubana e pela Revolução Chinesa que não tinham nenhuma base real.
O que importa, nesta análise é que não havia nenhuma disposição da esquerda de dar um golpe. De fazer uma revolução. De cortar cabeças.
Terceiro fato: O Golpe Militar não teve resistência
A falsificação dos fatos sobre o Golpe de 64 se baseia no mito que a esquerda estava pronta para dar o seu golpe. Este raciocínio é essencial para quem quer plantar a idéia que o golpe militar foi um contra-golpe, ou, como dizem, um golpe preventivo. Mas os fatos apontam em direção oposta. Se esta esquerda fosse tão forte para dar o golpe, porque não resistiu?
Que esquerda pronta para dar o golpe era esta, se quando a direita veio com seus tanques, não teve um só tiro. Não deu um tiro de festim sequer. Cadê o perigo da esquerda que exigiu um golpe preventivo?
A ilusão dos discursos inflamados de antes do 31 de março fica escancarada quando se descobre que não houve nenhuma greve para se opor aos golpistas. Houve uma parada de uma meia hora na Estrada de Ferro Leopoldina, no Rio, graças à liderança carismática de Batistinha. Uma meia hora de tentativa de parada na Cosipa, em Santos. Há quem afirme que algumas agências ban
cárias, no Rio, teriam parado, mas não há confirmação nenhuma do fato.
A pergunta martelou a cabeça de milhares de militantes da época. Porque não houve resistência? A pergunta persiste até hoje. Será que é um problema de DNA do brasileiro? Esta pergunta se torna torturante ao ver, poucos anos depois, a resistência ao golpe militar, no Chile, na Argentina e no Uruguai. No Chile, Pinochet teve que mandar bombardear fábricas, como foi o caso da Miramar, uma confecção na periferia de Santiago. Morreram todos os mais de 400 operários e operárias. Na Argentina, dezenas de Comissões de Fábrica, inteiras, foram fuziladas e jogadas nas cisternas das empresas, porque estavam resistindo ao golpe.
E, no Brasil, porque não se resistiu? Não se podem dar explicações simplórias. A explicação da não existência de uma greve contra o golpe deve ser procurada em causas mais profundas. Uma delas é a prática cupulista, própria do CGT. Outra pode ser procurada no atrelamento à estrutura sindical oficial que gera um sindicalismo sem enraizamento na base. Outra pode ser a ilusão da esquerda ser tão forte ao ponto de a direita não se atrever a dar seu golpe.
Mas, sejam quais forem as explicações o fato está aí e nega totalmente a mentira que a esquerda estava planejando um golpe, o que teria levado a direita a dar o seu golpe preventivo. Todos sabemos que no decorrer da ditadura houve uma resistência heróica. Nasceram muitos grupos revolucionários que lutaram contra a ditadura e por uma sociedade socialista. Vários destes grupos lutaram de armas na mão. Houve todo tipo de lutas: manifestações, seqüestros, greves, expropriações bancárias e ocupações de estações de rádio. E a Ditadura continuou tratando qualquer contestação às suas vontades com torturas generalizadas, assassinatos e exílios. Mas, nos dias do golpe?
Quarto fato: A esquerda não cortaria cabeças
Aqui, os arrependidos perpetram uma falsificação histórica total. Já vimos de onde saiu a frase bombástica e totalmente vazia de que “os golpistas teriam suas cabeças cortadas”. Nos debates, sobretudo no Rio, na tentativa de turvar as águas foram usados argumentos falsos politicamente e historicamente.
Procurou-se fazer esquecer que os grupos armados se formaram depois do terror da Ditadura ter provocado esta reação. Em 64, o PCB não apoiava a luta armada e nem corte de cabeças. Havia pouquíssimos e reduzidos núcleos mais radicais que podia pensar em violência revolucionária. Os grupos armados de Mariguella, Lamarca, e todos os outros nasceram em plena Ditadura, nos anos 66-68. Foi uma reação ao fechamento dos sindicatos, da repressão às Ligas Camponesas, da repressão aos estudantes, das mortes provocadas pela repressão, nas manifestações de rua e nos porões da Ditadura.
Então o golpe da direita não foi dado para se adiantar às ações destes grupos armados. Eles são posteriores e não anteriores ao Golpe.
A falsificação total: a esquerda lutou pela democracia, sim
Mas, o que aumenta a falsificação histórica neste argumento é que a esquerda que resistiu ao golpe, a partir da sua implantação, não queria democracia, pois… ela, por definição seria antidemocrática. Este argumento joga lama nos milhares de combatentes pelo fim da Ditadura. Queria-se o fim da Ditadura, sim. Esta era a palavra de ordem que unificava todas as lutas. Unificava muitos que antes do golpe eram a favor do mesmo e os que sempre se opuseram às articulações golpistas.Unificava democratas, democratas socialistas e democratas comunistas.
Certamente entre os lutadores contra a Ditadura havia os que simplesmente queriam a volta de um regime democrático, como o de antes do golpe, e havia os que lutavam pelo fim da ditadura e por um Brasil Socialista. Mas o que esta acusação que a esquerda não queria a democracia, é uma visão ideológica, hoje facilmente na moda, de que a esquerda essencialmente é antidemocrática.
Este raciocínio, de novo de contrabando, quer colocar outra discussão, nem que para isso tenha que se falsificar a história.
Em síntese, reafirmamos que o golpe de 64, foi:
- Um golpe de direita, preparado durante uma década.
- Um golpe organizado pelo capital nacional e internacional para garantir uma safra de lucros fáceis, nos anos futuros.
- Um golpe dado e garantido pela força militar, mas com a adesão, nos primeiros anos, da maioria da sociedade civil.
- Um golpe que não teve resistência, pelos erros da política da esquerda nos anos anteriores ao mesmo. Um golpe que implantou uma ditadura sangrenta desejada, financiada e apoiada até o fim, pela burguesia, que a contragosto aceitou o fim da sua ditadura.
Querer distorcer os fatos é prestar um desserviço à história e à luta do povo brasileiro em seu longo caminho de libertação de séculos de exploração e opressão.
Vito Giannotti é escritor. Rio, 7/4/2004