Por Andrelino Campos[1]
Introdução[2]
O tema segregação sócio-espacial sempre esteve presente na literatura acadêmica. Algumas vezes aparece mais, em outros momentos, apresenta-se de forma latente. A análise, de forma geral, é sempre para dar conta de alguma situação de apartação, seja no formato voluntário, a auto-segregação, ou seja da forma involuntária, a segregação induzida (ambas muito presente nos dias atuais) tem lógica explicativa distinta. Aqui, focaremos a segunda como forma de análise como dos elos para entender a expansão do tecido urbano carioca.
Em larga medida, discutir favelas é falar também de preconceitos e discriminação que parte dos moradores de grandes centros urbanos tem com relação ao lugar e aos seus habitantes. Em se tratando de Rio de Janeiro, ficam evidentes tais procedimentos, pois desde sua origem, se se pensar em um processo, os lugares ocupados pelos mais pobres recebem pouca atenção do poder público no que se refere ao tamanho dos problemas sociais. Entretanto, como no passado, em sua versão anterior a República: o quilombo, a favela recebe uma atenção especial do aparelho policial, tendo em vista que favelas e favelados são considerados como um caso de polícia, mas não como um problema da sociedade.
O artigo será dividido em duas partes. Na primeira parte, estaremos analisando os moldes de expansão urbana da cidade do Rio de Janeiro. Está analise será emoldurada pela questão étnico-racial, sobretudo como as relações quilombo/Império e favela/República aconteceram e seu desdobramento espacial na cidade do Rio de Janeiro. Na segunda parte pretendemos desenvolver modelagem que sirvam como ferramenta explicativa para que possamos compreender como foram efetivadas as ocupações espaciais dos subúrbios cariocas. Essa modelagem é um esforço pretende começar a mostrar que algumas áreas da cidade, historicamente, foram palcos de políticas públicas improvisadas, e foram acompanhadas pela população com construção de moradias improvisadas, constituindo, assim uma cidade que aparenta “eteno fazer”, resultado, em geral, da precariedade.
1) As origens do espaço favelado no Rio de Janeiro: algumas discussões a expansão urbana
Falar em favela sem rediscutir a sua origem é encarar o “problema” da segregação sócio-espacial como um fato isolado, “naturalizado”, em nossa sociedade. A explicação, em geral, se faz pela conjuntura, ligada a algum conflito, seja interno, seja de caráter externo, ou busca-se explicação na estrutura, ligando-se à explicação econômica. Em se tratando do aspecto conjuntural, os fenômenos interno e externo contribuíram para ampliação da favelização, mas não podem ser considerados como únicos responsáveis pelo surgimento das favelas. Por outro lado, se não podemos contar a história de um fato produzido pela sociedade sem explicar em que processos são derivados, não é lógico pensar as favelas a partir da sua própria existência. Portanto, em que processo pede-se enquadrar o surgimento das favelas? Para responder tal questão, pensa-se então em uma única possibilidade: o quilombo.
O quilombo, como um dos catalisadores das questões sociais emergidas no sistema escravista, surge como uma das opções de análise, possibilitando em um único processo de formação sócio-espacial entender cultura, política, discriminação, segregação espacial e, fundamentalmente, a criminalização dos mais pobres.
A partir daí, tendo a afirmar que algumas dessas apropriações espaciais, sobretudo aquelas localizadas próximas às freguesias urbanas, ao perderem a função de espaço de luta ¾ resistência[3] ¾ e tendo em vista a Abolição, continuaram a ser ocupadas, transmutando-se posteriormente em favelas, como apenas espaço de moradias no espaço urbano.
Espacialmente, a exclusão[4] econômica transforma-se em segregação a partir da separação dos usos do solo urbano. Esta diferenciação foi produzida no sentido de dotar algumas dessas áreas da cidade com infra-estrutura que, naturalmente, já teriam amenidades, fazendo-as ainda mais distintas de outras. Como a propriedade de cada parcela do solo urbano depende da renda do indivíduo, então as melhores áreas foram apropriadas (destinadas) aos indivíduos de maior renda[5]. Entretanto, como os significados espaciais são instáveis, as áreas consideradas inadequadas para receber investimentos, sobretudo dos promotores imobiliários, transformaram-se com o decorrer do tempo, adquirindo valor de mercado para o capital. Exemplos clássicos foram os casarões da área central da cidade que habitados até o meado do século XIX pelas classes de alta e média renda são posteriormente transformados em casas de cômodos (cortiços) e ocupados pelas classes pobres, pagando altos aluguéis, como demonstrou Muniz SODRÉ (1988).
A favela, segundo a concepção clássica de ocupação dos espaços urbanos pelos mais pobres, principalmente pelos afro-descendentes, enquadra-se em três versões. Todas têm em comum a autorização¾ a permissão das autoridades ¾, para que um grupo de retornados de “batalhas” ou os desalojados da demolição do “Cabeça de Porco”, em sua maioria negros, pudessem se alojar nas encostas do antigo Morro da Favela[6] ou em suas proximidades. A primeira e a segunda versão têm em comum os retornados de batalhas. A primeira refere-se à Guerra do Paraguai (1869) e a segunda Guerra de Canudos (1897).Enquanto a Guerra do Paraguai, o País ainda vivia sob o sistema escravagista e na segunda versão, em plena República. Contudo a percepção dos autores tem a mesma perspectiva. Se por um lado, em 1870, segundo CUNHA (1985:44-5), “o governo [imperial] havia prometido alforria aos escravos que fossem combater”. Tudo leva a crer que o oferecimento foi tomado de sucesso, apesar da “grita dos senhores de escravos” (id.,ibid). Não obstante a ausência na literatura, a arregimentação ocorreu em todas as províncias. Tanto o fim da Guerra do Paraguai como a Guerra de Canudos resultaram em na ruptura da identidade espacial (formado sobretudo pelo sujeitos em ação e sistema de objeto)[7] de parte dos retornados das batalhas. Para os autores da coletânea NOSSO SÉCULO, BRASIL: 1900-1910 (1985:40), os habitantes que acorreram as habitações toscas das encostas são malandros (boêmios, ladrões, valentes) ou aqueles cuja idade avançada ou as doenças (como a tuberculose) incapacitaram para o trabalho. As mulheres lavam e costuram ‘para fora, e as crianças vendem pela cidade doces, balas e jornais. Predominaram os negros, que já se reuniam em favelas antes mesmo da Abolição, pois o governo Imperial havia alforriado multidões de escravos para enviá-los à Guerra do Paraguai (1865-1870). Os que retornaram, muitos mutilados, alojaram-se nestas habitações (Brasil 1900-1910, 1985:40).
A segunda tese sobre o surgimento de favelas no Rio de Janeiro, aceita e difundida por M. de A. ABREU (1988; 1990), não a enquadramos na ordem cronológica, mas de acordo com a motivação: retornados de batalhas. O autor escreve: já presente embrionariamente na cidade desde 1897, quando foi dada a autorização para que os praças retornados da campanha de Canudos ocupassem provisoriamente os morros da Providência e de Santo Antônio, esta forma de ocupação dos morros logo se revelou a solução ideal para o problema da habitação popular do Rio de Janeiro. De local de moradia provisório, esses morros da área Central logo foram transformados em opção de residência permanente[8]..
A destruição do Cabeça de Porco e de outros cortiços ¾ a terceira versão ¾ provocou um deslocamento em direção às encostas. Observa-se que as encostas da Tijuca, por exemplo, já estavam ocupadas desde os anos 1870, com a modernização dos transportes. A movimentação da população mais pobre, em sua grande maioria negra, recém libertada da escravidão, foi em direção às encostas localizadas na área central, pois aa ofertas de ocupação estavam nesta área mais dinâmica da cidade. É a partir deste dado que Lilian Fessler Vaz elabora sua tese de surgimento das favelas, com a qual trabalha CHALHOUB (1996a) . Segundo este estudo, a destruição do Cabeça de Porco deixou cerca de quatro mil pessoas sem abrigo e o prefeito Barata Ribeiro autorizou o deslocamento dos moradores (id., ibid.:17)
Nos três relatos, a ocupação desses espaços era feita, em grande parte, pela população negra, que já residiam antes da Abolição, pressupõe-se então que tanto a criminalização quanto a discriminação[9] já preexistiam. Portanto, os estigmas vividos hoje pela população favelada são anteriores à existência da própria favela. Em sendo assim, temos a necessidade de buscar explicações na formação sócio-espacial do sistema escravista, ou seja, nos quilombos, espaço de resistência criado pelos negros fugidos do cativeiro.
A favela surge no cenário urbano do Rio de Janeiro sem estar contextualizada em um processo social, mas como resultante de fatos espaciais e temporalmente delimitados. Uma das possibilidades é entender a favela como uma transmutação do espaço quilombola, pois, no século XX, a favela representa para a sociedade o mesmo que o quilombo representou para a sociedade escravocrata. Um e outro, guardando as devidas proporções históricas, vêm integrando as “classes perigosas”. Os quilombolas por terem representado, no passado, ameaça ao Império; enquanto os favelados se constituíram elementos socialmente indesejáveis, após a instalação da República.
Após 1888, o quilombo já não poderia ser visto como um espaço de resistência de luta, pois o sistema escravista, em tese, havia acabado. Legalmente não fazia sentido considerar tal sistema de ocupação territorial como uma ameaça à hegemonia das classes dominantes: antigos latifundiários, transmutados em republicanos. Esses espaços, apropriados primeiro pelos quilombos, posteriormente ocupados por negros (ex-escravos), brancos pobres e imigrantes foram incorporados à cidade. Considerando apenas a expansão orientada pela classe dominante e os interesses do Estado. Os modelos de expansão urbana atendem perfeitamente a esta dinâmica, ou seja, os modelos clássicos dão conta de um movimento de expansão do centro para a periferia de acordo com o modelo tradicional de expansão urbana de economias exportadoras (CORRÊA, 1989: 46-92).
Entretanto, se levarmos em consideração que os quilombos periurbanos são, em certa medida, artífices da dinâmica de expansão urbana, a direção do fluxo tende a ter duplo sentido: o sentido clássico, centro periferia e o sentido inverso, não formal, o ilegal, já que não estava previsto nos planos de reestruturação urbana.
Além destes fatos, há necessidade de analisar outro ponto relevante no quadro da expansão urbana. Pela apropriação espacial empreendidas até a data da Abolição, os negros livres só poderiam ser criminalizados se a propriedade do terreno fosse reivindicada por terceiro com registro na igreja local. Se as terras fossem públicas, a apropriação deveria ser considerada como um direito para aquele que chegasse primeiro. Entretanto, existe evidência de que as terras apropriadas por negros tanto nas freguesias urbanas quanto nas periurbanas foram postas na ilegalidade, não se admitindo a propriedade das pessoas não-brancas. Portanto, falar em expansão urbana sem levar em consideração os grupos de menor renda que movimenta o espaço das metrópoles em ações que não se inscrevem nos planos dos gestores das metrópoles tornou-se, ao longo da história das mesmas, um contra-senso.
2) Os modelos de ocupação dos subúrbios cariocas: políticas públicas provisórias geram produção de “espaço” improvisado
No processo de expansão urbana, os mais pobres movimentaram primeiro para ocupar as favelas nas proximidades das áreas centrais, somente com advento da implantação malha ferroviária chega à distâncias maiores: os subúrbios. O processo de ocupação dos subúrbios tomou, a princípio, uma forma linear, localizando-se as casas e alguma atividade comercial ao longo da ferrovia e com maior concentração em torno das estações. Aos poucos, entretanto, ruas secundárias, perpendiculares à via férrea, foram sendo abertas por proprietários de terras ou por pequenas companhias loteadoras, dando início assim a um processo de crescimento radial, que se intensificaria cada vez mais com o passar dos anos (ABREU, 1988, p. 50; o destaque é nosso). O esquema abaixo nos mostrará como ocorreu a ocupação das áreas suburbanas, levando em consideração o assentamento dos trilhos e das estações de trens. Essa proposta segue exemplo de dois modelos de segregação: 1) a elite junto ao centro; 2) no processo de expansão urbana e modernização dos transportes, há uma descentralização dos grupos de maior renda. O primeiro foi estabelecido pelo geógrafo alemão J. G. Kohl (1841), situando a classe de maior poder junto à área central, seguida por anéis periféricos, onde estariam localizados os grupos de classe média e renda baixa. A mobilidade intra-urbana era muito limitada, e construir moradia junto ao Centro era uma necessidade para as elites e para as atividades mais dinâmicas da economia (CORRÊA, 1989, pp. 67-8). O segundo modelo de segregação apresentado pelo autor é aquele em que há uma inversão, seguindo o padrão espacial das grandes cidades americanas, cujas elites estabelecem como áreas preferenciais para construção de moradia as periféricas ao Centro da cidade, ficando a área central com as pessoas de menor renda. Observa o autor que, inicialmente, as classes dominantes localizam-se de acordo com o modelo apresentado por Kohl, descentralizando-se mais tarde, possivelmente, pelos mesmos motivos que ABREU (1988) nos informa: a modernização dos transportes urbanos possibilita maior mobilidade espacial dos grupos de maior renda, impedindo, de certa maneira, pelo custo, que os grupos de menor renda façam o mesmo.
Tendo em vista os dois modelos de segregação, percebeu-se que a ocupação do espaço suburbano não se deu de maneira linear, ou seja, à medida que os trilhos eram assentados e as estações construídas, a população e as atividades econômicas, logo depois, passavam a desenvolver a área. Ao contrário, nem todas as estações foram palco de ocupação intensiva, e algumas tiveram o entorno parcialmente habitado, constituindo modelagens diferentes. Dessa maneira, após a construção das estações, sobretudo no ramal da antiga Central do Brasil, a ocupação seguiu lógica diferente e espacialização também diferente. Algumas estações receberam população que ocupou as duas margens da linha férrea, tendo como ponto de partida sempre essas construções, ponto de referência para o desenvolvimento de atividade econômica e moradia. Inicialmente, o comércio era incipiente, mas à medida que a densidade populacional aumenta, amplia-se também o número de pequeno comércio, como acontece na formação dos vilarejos em cidades do interior. Com o tempo, mais ruas são abertas e abrigam mais e mais moradias e outras atividades, até cobrir uma grande área dos dois lados da linha férrea. Esse modelo de ocupação espacial, iniciado a partir da segunda metade do século XIX e consolidado ao longo do século XX, recebeu a denominação área de ocupação completa. Os bairros que melhor representam essa espacialização, no Rio de Janeiro, são: Méier, Madureira, Cascadura, Marechal Hermes, Bangu, Campo Grande, Santa Cruz, Bonsucesso, Ramos, Caxias etc.
Se levarmos em consideração a importância de alguns desses bairros para a questão urbana do Rio de Janeiro, estaremos diante da formação de subcentros que drenam recursos e renda dos bairros vizinhos, como é o caso de Méier, Madureira, Bangu, Campo Grande etc. Alguns desses lugarejos atraem consumidores, mas não conseguem exercer o mesmo papel, como é caso Cascadura, Ramos, Bonsucesso, entre outros bairros. Outras localidades acabam desempenhando papéis também administrativos, visto que abrigam crescente demanda pela presença do poder público. Esse fato acaba criando possibilidades políticas e valorização progressiva do solo urbano, concomitantemente da propriedade privada, beneficiando, assim, os moradores que residem nessa área.
Porém, nem todos os bairros suburbanos se constituíram de acordo com essa dinâmica. A maior parte desses bairros é dotada de pouca capacidade de agregar funções diversas, como centralizar fluxo de mercadoria e transporte, moradia e pessoas. Na malha ferroviária é mais comum o fato de os bairros desempenharem funções mais modestas em relação à estrutura urbana de uma cidade. Nesse sentido, uma parte dos subúrbios se estrutura como área de ocupação semicompleta e outra parte (um grande trecho) como área de ocupação incompleta. A primeira, a de ocupação semicompleta, tem como lógica o desenvolvimento de atividade em um dos lados da estação, como ocorreu no modelo de ocupação completa, e não havia como prever qual das duas margens da estação seria escolhida para receber investimento e atenção dos consumidores de lotes para habitação e/ou desenvolvimento de atividades ligadas, sobretudo ao setor terciário, mais especificamente do pequeno comércio: lojas de material de construção, alimentos e outras atividades cuja instalação não demanda sofisticação técnica. Com o desenrolar do tempo, porém, algumas atividades começaram a se concentrar em um dos dois lados, elas foram atraídas pela maior presença de consumidores ou porque a ligação entre essa margem e algum ponto da cidade de maior importância se faz com mais rapidez, ou por ser mais valorizada do ponto de vista comercial do que a outra margem.
A propriedade dos lotes em torno da estação, como relata a literatura, também não é resultado apenas do parcelamento das antigas propriedades, levado a efeito por pequenos empreendedores ou por empresários ligados ao setor de transporte que acabaram se responsabilizando igualmente pela ação imobiliária, mas decorre em grande parte da “ocupação” mediante o uso da posse (tornando-se o ocupante da gleba posseiro). A ocupação dessas áreas não era regularizada, e sua legalização dependia do interesse que ela despertava no mercado de terra urbana, possibilitando, assim, no decorrer do tempo, a violência urbana conduzida pela ação de grileiros ou especuladores que buscavam concentrar propriedade para fins comerciais.
Dessa maneira, uma das margens ganha maior densidade, oferecendo alguns serviços que não são encontrados nem na outra margem nem nos bairros próximos. Serviços esses que não são interessantes, do ponto de vista do custo, de ser buscados na área central ou em outras áreas de ocupação completa. Obviamente, a importância das áreas de ocupação semicompleta é limitada, visto que o crescimento das áreas de ocupação completa acaba impedindo ação mais efetiva nesses espaços, que se constituem, em muitos casos, em complemento do primeiro modelo.
No Rio de Janeiro, demonstram melhor essa realidade os bairros de São Cristóvão (que funciona como entroncamento entre a área central e outros pontos da cidade, mas, também, é a parte mais dinâmica que se localiza entre trecho da linha férrea e a avenida Brasil), Olaria, Magalhães Bastos, Engenho de Dentro, Engenho Novo, entre outros tantos.
Por seu turno, a área de ocupação incompleta refere-se àquela que ao longo dos anos recebeu menor fluxo de pessoas e de atividades econômica, mantendo um dinamismo muito baixo. A ocupação dos dois lados da estação não se diferencia, e um “bairro-tampão”, isto é, um ponto no espaço de mero apoio na ligação entre bairros de maior importância. Nesse caso podemos enquadrar os bairros de Lauro Muller, Mangueira, São Francisco Xavier, Riachuelo, Sampaio, Quintino Bocaiúva e Oswaldo Cruz etc.
De acordo com os modelos apresentados, podemos entender de que maneira se deu a ocupação das áreas ao longo das vias férreas no Rio de Janeiro. Não na totalidade do sistema suburbano, mas em alguns casos o modelo pode começar a explicar, como nos dias atuais, podemos encontrar em determinados bairros uma concentração de pobres urbanos, principalmente de afrodescendentes. As áreas de ocupação completa como Méier, Madureira e Campo Grande têm como tendência a concentração menor de afrodescendentes, segundo o padrão de valorização do solo combinado com o fator da renda.
Se pensarmos, por exemplo, na questão da educabilidade, verificaremos que a concentração de mestres e doutores nas áreas como Pavuna, Bangu, Marechal Hermes (apesar de pertencerem ao Modelo 1), a tendência será igual a zero, não se repetindo os indicadores que ocorrem no Méier, Campo Grande ou Madureira. Esses, por algum mecanismo, se destacam, servindo como ponto de referência para quase toda a malha suburbana, inclusive pela autodeclaração de cor ou raça, em que grande parte se considera da cor branca. Esse é o ponto comum das três áreas acima citadas.
Considerações Finais
A ocupação da malha urbana pela população aconteceu de maneira muito diferente nos diversos pontos da cidade do Rio de Janeiro. Como vimos, na Zona Sul ocorreu de maneira previsível, ou seja, de acordo com os interesses do setor imobiliário, sem improvisações. Por certo, nesse momento da história, no quarto quartel do século XIX, não poderíamos falar de políticas de planejamento, mas podemos pensar que a estruturação desse espaço, além de seguir as recomendações internacionais presentes no pré-urbanismo, atendeu os asseios das classes de maior poder econômico.
Também verificamos que a expansão norte/oeste da cidade seguiu padrões muito distintos. Enquanto os trilhos urbanos foram assentados para atender a população que ainda não havia ocupada a Zona Sul, no outro lado da malha urbana, esse equipamento atendeu as necessidades setor produtivo, buscava-se a modernização do setor fundamental da economia, o escoamento da produção agrícola e outros produtos. A população, nesse caso, tornou-se secundária. Nesse sentido, podemos pensar que essa parte da cidade foi palco, em termos de organização interna da cidade, de improvisações em termos de políticas e precariedade no que se refere à habitação.
Quanto à permanência dos grupos de menor renda residindo na Zona Sul, como vimos, é explicado, em geral, pela dimensão econômica, ou seja, pela proximidade do mercado de trabalho. Entretanto, consideramos essa hipótese insuficiente. A dimensão econômica do fenômeno é importante, contudo não deve ser considerada como determinante, apenas como dos fatores que ajudam a contar a história desses grupos. Os termos que estabelecem que determinados grupos sofrem os estigmas, os preconceitos e a discriminações oriundos da segregação, deve ser relativizados, pois o fenômeno não é absoluto, mas relacional entre a parte (segregada) e o todo (a cidade de forma geral). As desqualificações pelas quais são submetidos os indivíduos, no decorrer da história, colocam-nos em situação de desvantagem ou risco social, passíveis das iniqüidades do processo histórico. As desvantagens são traduzidas pelo grau de acessibilidade as diferentes instituições, enquanto o risco é posto pelo sistema simbólico que, se traduz em última instância, as injustiças sociais.
Reconhecer que o instituto da segregação não esta pronto, no sentido de terminalidade, é reconhecer que precisamos avançar, em passos largos, para desvendar a sua compreensão. Nesse ponto, temos que ressaltar a importância de VASCONCELOS (2003) que apresentou severas críticas a apropriação do conceito e a sua pronta aplicação ao espaço urbano das grandes cidades brasileiras. Por outro lado, não devemos caminhar no sentido oposto da negação de sua existência. A área de segregação induzida contínua é uma possibilidade analítica que, por razões obvias, não excluem do escopo da análise os espaços tradicionais segregados, apenas aponta que existem outras formas de compreender que a estrutura urbana é mais complexa que possamos imaginar.
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[1] Professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da FFP/UERJ;
Coordenador do Núcleo de Estudos Sociedade Espaço e Raça; e autor do livro “Do quilombo à favela: a produção do “espaço” criminalizado no Rio de Janeiro”.
Contato: andrelinocampos@hotmail.com
[2] Este trabalho foi apresentado no âmbito do XV Encontro de Geógrafos, São Paulo, 2008; e publicado na coletânea: Dez anos da Lei no 10.639/03: Memórias e Perspectivas. Fortaleza: Editora Universidade Federal do Ceará (UFC)/ Coleção Diálogois Intempestivos, 2013, pp. 243-265; ISBN: 978-85-7282-577-1
[3] O termo resistência é entendido aqui, de acordo com a literatura, como fenômeno espontâneo, de um ato voluntário ou conscientizado de indivíduos e pequenos grupos disposto a rebelar-se e não aceitar a ocupação. Apesar de bastante amplo, essa conceituação serve para o processo de organização espacial dos mais pobres.
[4] A palavra exclusão será usada por ora sem nenhuma discussão. Contudo, preferimos empregar o termo acessibilidade reduzida ou ampliada que reflete melhor a situação dos que estão as margens dos processos hegemônicos de controle do espaço urbano (ver CAMPOS (2006; 2008)
[5] Cf. CORRÊA, R. L. (1987:11-35). O autor analisa neste livro síntese, em seu terceiro capítulo, “quem produz o espaço urbano”.
[6] O Morro da Favela é conhecido nos dias atuais pelos “complexos” dos morros do Pinto e da Providência, localizados nas imediações da área central da cidade do Rio de Janeiro.
[7] A partir deste ensaio, estamos descartando a possibilidade de enquadrar toda e qualquer relação espacial (apriori) como território e suas derivações, preferindo focar a análise no recorte espacial do lugar, que discutiremos em outras oportunidades
[8] Ver também BARBOSA, J. L. (1992). O autor explora em seu trabalho as condições de moradia e trabalho que eram oferecidas aos operários do período na capital da República.
[9] Cabe aqui uma distinção entre os termos preconceito e discriminação, para tal consultar SILVA Jr., H. (2000:372)