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Novos dados revelam concentração ainda maior da riqueza mundial nas mãos de um punhado de famílias, num quadro que rouba qualquer perspectiva de futuro para a humanidade

Por José Arbex Jr / Revista Caros Amigos – Fev 2016

O 1% mais rico da população mundial acumula mais capital do que os restantes 99%, ao passo que  as 62 famílias mais ricas têm tanto quanto a metade mais pobre da população mundial (há cinco anos, eram 388 famílias, e em 2014 eram 85). Os dados, apurados pela organização não governamental britânica Oxfam, foram organizados na forma do relatório “Uma economia a serviço de 1%”, divulgado às vésperas do Fórum Econômico Mundial, que reúne justamente os bilionários do planeta, realizado em Davos, na Suíça. “O fosso entre a parcela dos mais ricos e o resto da população aumentou de forma dramática nos últimos 12 meses”, diz o relatório da ONG. “No ano passado, a Oxfam estimava que isso fosse ocorrer em 2016. No entanto, aconteceu em 2015, um ano antes”, destaca no texto.

Cumpre-se, com clareza cristalina, o impressionante e exato prognóstico feito por Karl Marx e Friedrich Engels, em 1848, no Manifesto Comunista: “Horrorizai-vos [os burgueses] porque queremos abolir a propriedade privada. Mas em vossa sociedade a propriedade privada está abolida para nove décimos de seus membros. E é precisamente porque não existe para estes nove décimos que ela existe para vós. Acusai-nos, portanto, de querer abolir uma forma de propriedade que só pode existir com a condição de privar de toda propriedade a imensa maioria da sociedade.” Os autores do Manifesto só foram capazes de descrever uma situação que, na prática,  apenas se realizaria plenamente quase 170 anos depois, não por uma suposta intuição profética, mas pelo fato de terem compreendido perfeitamente bem o modo de funcionamento do capital, sua lógica inexorável, suas leis intrínsecas e necessárias.

Em outros termos, a tendência à concentração cada vez maior da renda, detectada pelo relatório da Oxfam – e também demonstrada pelo trabalho muito bem documentado de Thomas Piketty (O capital no século XXI, lançado em 2014) – é um componente estrutural, distintivo e fundamental do capitalismo. Isso não vai se alterar com apelos à “boa-vontade” ou ao “humanismo” dos capitalistas, como pretende a Oxfam. Não se trata de uma questão moral. Não são a ganância, o egoísmo e a ambição desenfreada que levam um burguês a acumular cada vez mais capital, mas sim a necessidade de elevar cada vez mais as suas taxas de lucro, ainda que, para isso tenha que eliminar completamente os seus competidores, e tenha que “privar de toda propriedade a imensa maioria da sociedade”  (embora, é claro, a ganância, o egoísmo e a ambição tenham o seu lugar na conformação do caráter desses senhores). Não há limite para a lógica da acumulação, ou, como também dizia Marx, o limite do capital é o próprio capital.

Isso significa que para manter a sua riqueza, as 62 famílias, liderando o 1% mais rico, não hesitarão em manter uma ordem que implica, necessariamente, a destruição dos recursos naturais, a condenação de 1 bilhão de seres humanos a uma situação de fome e subnutrição, a multiplicação de guerras e pilhagens, a extorsão, por meios financeiros, das economias de bilhões de seres humanos condenados a um trabalho bruto, alienado e sem sentido. A atual “crise dos refugiados”, por exemplo, é apenas uma ponta visível do imenso iceberg do desespero criado pela política de pilhagem de riquezas praticada pelos senhores do capital (em particular, o ataque ao Iraque, em 2003, baseado numa mentira, é o responsável pela desagregação do país, que propiciou o surgimento do Estado Islâmico e exponenciou os efeitos das linhas de tensão que atravessam todo o Oriente Médio, tudo em nome dos interesses das empresas petrolíferas estadunidenses e britânicas).

Mas nada disso aparece de forma transparente aos olhos do público. Cada crise é tratada como se fosse um caso à parte, sem qualquer relação com o contexto geral da acumulação do capital. Assim, os refugiados são vítimas de “conflitos étnicos e religiosos”, jamais das políticas arquitetadas pelo imperialismo; a fome é resultado de políticas desastrosas de governos nacionais mal preparados (corruptos, incompetentes, ou ainda pior: negros e islâmicos) para enfrentar as agruras climáticas, nunca da especulação com o preço dos alimentos e/ou de sua transformação em combustíveis; as guerras regionais são sempre provocadas por algum evento imediato, não o resultado de estratégias jogadas pelas grandes potências. A “grande mídia”, ela própria propriedade de grupos e corporações, atua como porta-voz e agente organizador dos interesses do capital.

Nada disso, de fato, é novo, exceto as dimensões adquiridas pela concentração de riquezas. Quando 62 famílias têm tanto capital quanto 3,5 bilhões de seres humanos, há pouco deixado para a imaginação sobre o futuro possível do planeta. É óbvio que a preservação de um sistema com essas características é totalmente incompatível com qualquer traço de democracia. Daí a necessidade de o estado ser cada vez mais controlador, vigilante, opressor e autoritário. O pretexto é a “guerra ao terror”, ironicamente movida por aqueles que são o próprio terror. Comparados aos efeitos catastróficos causados pelo capital financeiro, o Isis, a Al Qaeda e tantos outros, todos somados, não passam de um grupo de colegiais inocentes.

As perspectivas são sinistras, ainda mais quando se constata que a esquerda mostra-se incapaz de propor alternativas. Mas ninguém controla a história, e nisso reside a possibilidade de uma reviravolta. Quem viver verá.