Há certos momentos na vida das nações em que a criação artística consegue estabelecer uma fina e profunda sintonia com aspirações de amplas camadas sociais. Então a obra de arte se constitui numa referência de valor não apenas no sentido político imediato, mas vai além e toca nas formas de comportamento individuais ou comove impulsos coletivos silenciados em sociedades fechadas pela repressão cultural ou religiosa ou pela força bruta, como ocorreu no Brasil da ditadura militar.  

Alguns artistas são (es)colhidos, pela fortuna, nesses momentos, para produzir com sua obra aquela sintonia entre a representação estética do mundo materializada na arte e a mais básica e irrecusável das aspirações humanas: a liberdade. Gianfrancesco Guarnieri foi um deles. Ao introduzir o quotidiano da vida dos trabalhadores no palco brasileiro, com “Eles não usam black-tie”, ainda em 1958, Guarnieri contribuiu para uma importante renovação do teatro, aproximando-o de outras expressões artísticas – como a música – que buscavam abrir espaço para dizer de maneira direta “a realidade do nosso povo”. Ele estava escolhendo um lado e seria fiel a ele ao longo de sua criação e de sua vida. Quantos de nós nos tornamos militantes de esquerda naqueles anos, educados pelo romance, pelo poema, pela música ou pela peça de teatro que lemos, ouvimos ou assistimos?  

Durante os primeiros anos da Ditadura Militar, o teatro, ao lado da música foi, sem dúvida, a expressão cultural de maior incidência na disputa de idéias e valores entre a esquerda derrotada e a direita fardada, triunfante. Talvez por isso tenha sido tão perseguido pela censura ou agredido pelos esbirros do CCC. Naquele período Guarnieri recorreu a uma fórmula tão singela quanto eficaz de manifestar o inconformismo de amplos setores sociais contra a opressão que se abatia sobre nós. “Arena Conta Zumbi” recupera uma antiga tradição de “contar a história” contando-a com os recursos poderosos da poesia oral e cantando-a, quando introduz a música como o elemento que “desarma o espectador”, ou produz indignação, conscientiza, para usar uma palavra ao gosto da época, em uma palavra: comove. Ou seja, induz à ação. Esse espetáculo não só obteve um impacto relevante no sudeste do país, mas, por sua estrutura extremamente simples e de baixo custo, reproduziu-se espontaneamente pela ação de grupos de teatro estudantil nas mais diferentes regiões do Brasil. Alimentou, assim, uma percepção crítica da realidade brasileira, desde uma perspectiva de esquerda.  

Guarnieri viveu a felicidade de ver sua criação “Eles não usam black-tie” para o teatro servir-se de outro suporte – mais ágil, mais dinâmico e de maior alcance – o cinema, pelas mãos de Leon Hirzmann, num momento novo quando despertava o poderoso impulso do movimento operário, no ABC, quando chorávamos a morte de Santo Dias, mas emergíamos como portadores de grandes esperanças, de novas utopias. O reencontro da criação artística com a realidade do povo contribui para produzir uma nova consciência sobre uma relação opressiva que se alterara na forma, mas não essencialmente, no conteúdo. Gianfrancesco Guarnieri dá com isso um testemunho da solidez das raízes da opressão aos trabalhadores neste país. Da vigência de sua obra e do compromisso dela com as lutas dos movimentos sociais por um país democrático, socialmente justo, ambientalmente sustentável e soberano diante das demais nações do mundo. Mas, sobretudo, dá testemunho de que sem novos valores culturais não se constrói uma sociedade nova, democrática e socialista.  

Gianfrancesco Guarnieri: o Brasil deve a este homem uma parcela importante dos sonhos que nos animaram a lutar contra a ditadura militar e a construir – como os povos dos Palmares, cantados em Arena conta Zumbi – um país que acolha todos os seus filhos.  

“Hamilton Pereira (Pedro Tierra) é Presidente da Fundação Perseu Abramo e Secretário Executivo da área de Cultura do Programa de Governo Lula 2006.