“Zuzu Angel” parece ser fiel à luta da costureira de moda Zuleika Angel Jones para provar que seu filho havia sido torturado e morto nos porões da ditadura. Um belo trabalho do diretor, de Patrícia Pillar (Zuzu Angel) e de Daniel de Oliveira (Stuart Angel). E, ao contrário do que muitos disseram, há emoção no filme, sim. É o caso das cenas em que Zuzu supostamente encontra o pai de Lamarca (Nelson Dantas) e a conversa que tem com o espírito de Stuart no final do filme. Também emociona a bela e dolorosa música que Miltinho e Chico Buarque fizeram para a mulher que só queria embalar o “filho que mora na escuridão do mar”.

 

No entanto, o grande problema da produção é o modo como a ditadura militar acaba aparecendo. A abertura de “Zuzu Angel” é muito bem feita, graficamente. Fotos em preto e branco mostram a repressão policial sobre manifestantes contra a ditadura, nos anos 1960. Mas, os elementos gráficos da abertura parecem antecipar aquilo que a trama vai acabar fazendo. Nas fotos, as imagens dos soldados batendo nos jovens ou de protestos estudantis são destacadas do fundo da cena, que desaparece num nevoeiro. Além disso, aparecem uma ou outra imagem com hippies e pessoas usando as roupas psicodélicas da época. A música tem momentos que lembram a tropicália de Caetano e Gil. Ou seja, é como se fossem tempos malucos, em que todos tinham suas taras. Homens cabeludos, músicos envolvidos com drogas, liberdade sexual. Nesse contexto, os jovens da luta armada e os generais da ditadura seriam apenas mais alguns entre os loucos.

 

Pode parecer exagero, mas já se vão quase 40 anos de distância dos acontecimentos mostrados no filme. Mesmo quem viveu naqueles anos, dificilmente tinha um quadro claro do que acontecia. Imagine, as gerações que vieram depois. Claro que não conseguem contextualizar o que foi aquele pesadelo bem real. Os discursos de Stuart e sua namorada (Leandra Leal) ajudam a dar esse tom estranho, quase folclórico. Não é que muitos daqueles jovens não falassem desse jeito. O problema é a ausência de uma série de elementos que formavam o contexto da época. Entre eles, a feroz repressão que caiu sobre centenas de militantes de esquerda. Pessoas que não eram apenas estudantes de classe média, nem jamais empunharam armas contra a ditadura. É como nas fotos da abertura. A cena do fundo desaparece no nevoeiro. O que acaba ficando fixado é o drama pessoal da mãe. Não é a tragédia que 20 anos de ditadura representaram para milhares de pessoas que só queriam mais justiça social.

 

Globo e ditadura militar: nada a ver?

Num cinema do Rio de Janeiro, ouviu-se um grito: “Militares filhos da puta”. Seguiu-se outro: “Abaixo a ditadura” e aplausos. Reações legítimas, justas, corretas. Mas, para muita gente deve ter parecido algo deslocado às vésperas de eleições. Principalmente, em tempos em que a ditadura não está nos quartéis, mas no Banco Central e no FMI. A cereja do bolo nesse complicado recorte da realidade foi a mensagem final do filme. Um letreiro explica que somente em 1998, 22 anos depois da morte de Zuzu, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça reconheceu que ela morreu vítima de um atentado. Nem uma palavra sobre a impunidade de que gozam até hoje os responsáveis pela morte ou desaparecimento de quase 300 pessoas entre 1964 e 1985. Ou sobre o fato de que os arquivos dos governos militares continuam lacrados, impedindo até mesmo que se saiba exatamente quantos e quais foram as vítimas da repressão do Estado.

 

Claro que se pode argumentar que se trata de um filme de ficção. Não se peça a uma obra dessas o caráter de documentário. O problema é que vivemos na época da notícia como espetáculo e do espetáculo com pretensões de informar. E quando o faz, arranca os fatos de seu meio e os oferece romantizados e distantes aos espectadores. No Brasil, a grande especialista nesse tipo de distorção é a Rede Globo. Em relação aos governos militares, a produção dramatúrgica da Globo tem como marco inicial a série “Anos Rebeldes”, do começo dos anos 90. Depois vieram várias iniciativas da emissora para se apropriar da história da ditadura, como se não tivesse nada a ver com ela. E está conseguindo. Afinal, a emissora comemorou seus 40 anos de existência em 2005, sem que praticamente ninguém tenha lembrado que a empresa passou metade desse tempo apoiando governos ditatoriais. Ao contrário. Em 2005, a emissora iniciou um projeto sobre a memória do movimento estudantil junto com a União Nacional de Estudantes (www.memoriaestudantil.org.br).

 

Isso ajuda a explicar por que a Globo-Filmes financia um filme como “Zuzu” sem qualquer constrangimento. Não é o caso de condenar Rezende e sua obra. Só de lembrar que faz parte de uma lógica que mantém em funcionamento um mecanismo mortal. Pode-se até pensar que suas vítimas já não são militantes políticos. Não é verdade. De 1985 até a metade de 2004 foram assassinados quase 1.400 trabalhadores rurais. A grande maioria envolvida na luta pela terra. Mas, também há as vítimas sociais. E muitas delas também deixaram mães desesperadas como Zuzu. Podem ser meninos ganhos para o crime ou apenas crianças de rua. Podem ser vítimas dos assassinos da Candelária, do “Caveirão” ou da sutil e eficiente ação da grande mídia. O fato é que continua a funcionar a máquina que alimenta a escuridão do mar.

 

 

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