Christian_góes

[Por Paulo Victor Melo*] Um dos exemplos mais emblemáticos de cerceamento à liberdade de expressão e manifestação do pensamento no Brasil está prestes a entrar na pauta de discussões do Supremo Tribunal Federal (STF). É o caso que envolve o jornalista Cristian Góes, condenado a sete meses e 16 dias de prisão (revertida em prestação de serviços à comunidade) e ao pagamento de R$ 30 mil de indenização ao desembargador do Tribunal de Justiça de Sergipe, Edson Ulisses. O motivo da condenação? Cristian Góes, em maio de 2012, escreveu em seu blog na internet um texto ficcional sobre o coronelismo, em que não são citadas pessoas, locais e épocas. Em síntese, um texto em que não há personagens nem ambientes reais.

Esse não foi, porém, o entendimento do desembargador Edson Ulisses. A expressão “jagunço das leis”, utilizada no texto, foi, segundo o magistrado, direcionada a ele. Entendimento semelhante teve a juíza Brígida Declerk que, ainda na fase inicial do processo, decidiu pelo recebimento da denúncia e afirmou que “o texto possui atores definidos e identificados”.

Nem mesmo Kafka seria capaz de imaginar e narrar tamanho absurdo. Apenas por interpretarem que uma expressão generalista (jagunço das leis), utilizada numa crônica ficcional, faz referência a uma determinada pessoa, que não foi citada no texto, magistrados condenaram cível e criminalmente um jornalista.

Mas não para por aí a sequência de absurdos que envolvem este caso. O juiz Aldo de Albuquerque Mello, da 7ª Vara Cível de Aracaju, que condenou o jornalista ao pagamento da indenização por danos morais, chegou a afirmar que “o valor fixado é ínfimo em relação à gravidade da conduta”. Mas qual a conduta grave? Exercer o direito à liberdade de expressão? Manifestar livremente o pensamento?
O mesmo juiz disse que a sentença tinha o objetivo de “educar o agressor”, o que demonstra claramente o caráter político da condenação. Não há dúvidas: o objetivo é, tendo Cristian Góes como um exemplo, ameaçar o jornalismo crítico e reflexivo e fazer com que outros profissionais de comunicação pensem inúmeras vezes antes de escrever qualquer linha sobre o Poder Judiciário. Prova disso é que, ainda na primeira audiência, em janeiro de 2013, o desembargador não aceitou a proposta do jornalista de publicar uma nota de esclarecimento, em que afirmaria que o texto não se referenciava em ninguém.

Além do cerceamento à liberdade de expressão, esse caso demonstra também a seletividade do Poder Judiciário brasileiro. Afinal, enquanto um jornalista independente é condenado por um texto ficcional, membros do Judiciário silenciam frente às inúmeras calúnias, difamações, violações de direitos e destruição de reputações praticadas diariamente pelas redes de televisão e rádio do país. Qual a conduta grave nesse caso, então? O texto de Cristian ou a sua condenação? Onde está o crime contra a democracia? Na crônica “Eu, o coronel em mim” ou na sentença contra o jornalista?

Ação também no CNJ
Além da ação no STF que contesta as sentenças, o caso também está no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão em que a defesa do jornalista questiona, dentre outras coisas, o fato da condenação criminal ferir o princípio da impessoalidade dos atos administrativos e pede a anulação da portaria que nomeou o juiz Luiz Eduardo para atuar no Juizado Criminal de Aracaju, bem como de todos os atos jurisdicionais proferidos pelo magistrado no período de 1 a 30 de julho de 2013.

Vejamos. O processo criminal movido pelo desembargador contra o jornalista ocorreu no Juizado Especial Criminal de Aracaju, onde a titular era a juíza Brígida Declerk, que presidiu todo o processo, mas não o julgou mesmo já estando pronto, e foi afastada daquele juizado em julho de 2013. Na lista de substituição, publicada pelo Tribunal em abril daquele ano, o juiz que deveria assumir os trabalhos era Cláudio Bahia. Porém, sem qualquer justificativa, o Tribunal de Justiça trocou de juiz e colocou o juiz Eduardo Araújo Portela.

Apenas após três dias do início dessa substituição, o juiz Luiz Eduardo condenou o jornalista à pena de sete meses e 16 dias de detenção. Com um agravante: dentre todos os processos que se encontravam prontos para ser julgados antes da chegada do juiz Luiz Eduardo, o único que foi sentenciado por ele foi justamente o de interesse do desembargador Edson Ulisses, então vice-presidente do Tribunal de Justiça de Sergipe.

Repercussão
Ainda que tenha sido ignorado pelas grandes emissoras de televisão do Brasil, o caso tem gerado repercussão tanto dentro do país quanto a nível internacional. Diversas entidades da sociedade civil têm se mobilizado na solidariedade e defesa do jornalista, sites e blogs na internet publicam matérias desde o início do processo e organizações de direitos humanos têm se pronunciado e acompanhado o caso.

Pela gravidade que representa para o exercício da liberdade de expressão não apenas no Brasil, o caso já foi objeto de uma audiência pública na Câmara dos Deputados, de uma reunião na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington (EUA), fez parte de um dossiê entregue à Relatoria de Liberdade de Expressão da Organização das Nações Unidas (ONU) e compôs um relatório da Repórteres Sem Fronteiras, organização não governamental sediada na França, que entende o caso como “um desvario judicial e um insulto aos princípios fundamentais da Constituição democrática de 1988”.

Nada disso, porém, foi suficiente para alertar os magistrados sergipanos sobre a medida autoritária e absurda que estavam tomando. Cabe agora aguardar para verificarmos se os ministros do TSF confirmarão esta ameaça à liberdade de expressão e à democracia ou se reverterão as sentenças e, assim, honrarão a Constituição Federal e os diversos tratados internacionais ratificados pelo país que garantem o direito à liberdade de expressão.

* Paulo Victor Melo, jornalista, mestre e doutorando em Comunicação. Integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.