[Por Ramênia Vieira – Observatório do Direito à Comunicação – 24.04.2017] Realizada entre os dias 18 e 20 de abril, a 1ª Conferência Nacional Livre de Comunicação em Saúde discutiu estratégias de democratização do acesso a informações sobre o Sistema Único de Saúde (SUS). A relevância dos direitos à saúde e à comunicação, identificados como pilares da democracia, foi refletida no grande número de pessoas presentes na conferência. O público foi formado principalmente por comunicadores, membros de conselhos de saúde, estudantes, assessores de comunicação e parlamentares, entre outros.
Já na mesa de abertura, o presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Ronald Santos, afirmou que o principal desafio do Brasil no momento é garantir a manutenção da democracia e de direitos como o acesso à saúde e a liberdade de comunicação. Segundo Santos, é preciso “juntar nossas energias para que esses elementos que traduzem nossa evolução civilizatória não deixem de existir”.
Para ele, a conferência foi uma oportunidade de reflexão sobre o momento atual do país e de discussão de estratégias de ação contra as violações de direitos verificadas nos últimos meses. Ronald Santos ainda pontuou que, no caso específico do Sistema Único de Saúde (SUS), o principal retrocesso foi a promulgação da Emenda Constitucional 95/2016, que congela os investimentos da União na área social por um período de 20 anos. Pois a emenda impede o SUS de enfrentar seu principal desafio, o subfinanciamento.
Renata Mieli, coordenadora-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), também reafirmou a relevância da conferência. “A mídia produz um discurso hegemônico que desqualifica o serviço público como um todo, mas isso fica mais evidente quando se trata da saúde”, ponderou. Para ela, a luta em defesa da liberdade de expressão e do direito de acesso à informação são complementares à luta pelo direito universal à saúde.
Segundo Renata, é preciso construir uma rede de iniciativas que dialoguem em defesa da saúde pública. “O discurso da mídia comercial encobre as mazelas do sistema privado de saúde e exalta os equipamentos privados como a melhor saída para os problemas do SUS. É uma fala coordenada com os interesses empresariais que atuam no setor da saúde. Desconstruir isso é urgente e fundamental para que a população possa entender a saúde como um direito e passe a ampliar as vozes dos que estão há anos lutando por ele”, afirmou.
Rede de Comunicadoras/es em defesa do SUS
Entre as discussões apresentadas na conferência, destacou-se a criação de uma rede de comunicadoras e comunicadores voltada à produção de conteúdos diversificados sobre o SUS. Isso permitiria à população conhecer melhor este sistema público e exercer de forma mais ampla o direito constitucional à saúde.
A necessidade de comunicadoras/es da mídia alternativa criarem uma rede de difusão de conteúdo diversificado sobre o SUS foi a tônica do segundo dia do encontro, em 19 de abril, quando se debateu sobre o papel da comunicação na defesa da informação em saúde.
A jornalista e blogueira Cynara Menezes apontou um exemplo da necessidade de criação de uma rede alternativa de comunicação: o Programa Mais Médicos, criado no governo da presidenta Dilma Rousseff para melhor distribuir geograficamente a assistência médica no país. “O Programa Mais Médicos recebeu uma abordagem altamente negativa da mídia hegemônica, enquanto a mídia alternativa não fez um contraponto mostrando os avanços trazidos pelo programa”, avaliou Cynara, acrescentando que, em função disso, o resultado foi que o Mais Médicos ficou fragilizado enquanto política pública.
Desconhecimento sobre o sistema público
Adriane Cruz, assessora de Comunicação Social do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), enfatizou que “a avaliação sobre o SUS é pior entre os que não utilizam o sistema”. Para ela, esse é uma prova cabal de que a desinformação está na origem da abordagem preconceituosa da mídia hegemônica em relação ao SUS. Neste ponto do debate, o público presente se manifestou tecendo algumas críticas ao fato de o SUS gastar muitos recursos com publicidade na “grande mídia”, recebendo como retorno um tratamento preconceituoso no noticiário.
Os debatedores também discutiram alternativas para enfrentar o monopólio da comunicação no Brasil. A mesa intitulada “Desafios de Comunicação em Saúde” foi intermediada por Francisca Rêgo, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), e contou com a participação de Alexandre Padilha, ex-ministro da área; da gerente do Canal Saúde da Fiocruz, Márcia Corrêa e Castro; e da conselheira do CNS Carmen Lúcia Luiz. Os palestrantes sustentaram que a própria concepção de saúde coletiva, enquanto direito de todos e dever do estado, é distorcida pela imprensa. “A concepção da mídia privada é de que a saúde coletiva está relacionada somente às ações do Estado (vigilância, controle dos riscos) e não à saúde do indivíduo”, apontou Padilha.
Márcia Corrêa frisou que o enfrentamento ao monopólio da comunicação é necessário para a construção de uma narrativa em defesa do Sistema Único de Saúde. Entre as alternativas, ela citou a atuação de comunicadores nas redes sociais, assim como a qualificação das discussões entre os defensores do sistema. “É necessário fazer esse debate sabendo que todas as mazelas do SUS têm sido apropriadas como discurso para desmontar o sistema. Precisamos nos comunicar para que a população se sinta dona do SUS, sem contribuir com o discurso de desmonte”, destacou.
Equívocos e desinformação
Na última mesa de debates da 1ª Conferência Nacional Livre de Comunicação em Saúde, realizada na quinta-feira, dia 20, foram apresentadas algumas experiências de coletivos de comunicação. Marina Pita, do conselho diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social abordou a comunicação em seus aspectos relacionados ao acesso, produção e distribuição de conteúdo. Ela lembrou também da regulação da propaganda, cujo rol de produtos anunciados não pode “ser prejudicial à saúde. Entretanto, os comerciais de cerveja ainda estão liberados para passar em qualquer horário”.
Marina ainda citou casos de abordagens científicas precipitadas e até mesmo equivocadas em programas de entretenimento e até mesmo na programação mais especializada no tema da saúde, como no caso do tratamento dado ao tema do HIV pela novela teen Malhação, em 2016. No episodio em questão a mocinha Luciana (Marina Moschen) ficou ferida durante um jogo de basquete após esbarrar no colega Henrique (Thales Cavalcanti). Preocupada, a menina correu para a enfermaria do colégio e pediu um coquetel de medicamentos contra o HIV, já que Henrique é soropositivo.
Na época Lucinha Araújo, mãe do cantor Cazuza (morto em decorrência da Aids nos anos 1990) manifestou publicamente sua indignação:
“Depois de 30 anos de trabalho para combater o preconceito e informar corretamente as formas de transmissão do HIV, vemos um programa destinado ao público jovem aconselhar soropositivos a não praticar esportes, a mostrar um médico receitar medicamento antirretroviral numa situação onde dois jovens dão uma cabeçada é no mínimo de chorar.”
Outro relato apresentado por Marina se referiu ao programa Bem Estar, também da Rede Globo de Televisão, durante o qual foi dito que o correto é o bebê parar de mamar no peito com um ano e meio de idade ou quando começa a andar. Alertada sobre o desserviço dado à população, a emissora decidiu não atender a um pedido de correção feito pelo Ministério Público.
Neste aspecto, Marina frisou a importância da TV pública como contraponto da comunicação comercial e as perdas advindas da fusão do Ministério da Comunicação com o da Tecnologia, o que ocasionou retrocessos como o adiamento de abertura de editais para funcionamento de emissoras de rádio em comunidades tradicionais. O que também demonstraria a importância da internet como novo meio de comunicação. Também participaram desta mesa Pablo Capilé, do Mídia Ninja, e Bruno César Dias, do Abrasco Divulga. A mediação ficou por conta de Charô Nunes, do Blogueiras Negras.
Propostas do FNDC
Conheça o resumo das propostas do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) para as estratégias de democratização do acesso da população a informações sobre a saúde:
1) Defesa de uma comunicação pautada nos princípios do SUS, como universalidade, equidade, integralidade, descentralização e participação.
2) Defesa da democratização dos meios de comunicação de massa no Brasil.
3) Defesa da comunicação pública e, em especial, da retomada do caráter público da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), como estratégia central para o exercício da liberdade de expressão dos diferentes segmentos de nossa sociedade.
4) Garantia dos canais públicos de televisão previstos no Decreto nº 5.820, que instituiu o Sistema Brasileiro de Televisão Digital, e manutenção do Canal Saúde no sinal aberto digital, com a implementação de mecanismos e estruturas que garantam a gestão democrática e participativa da programação destes canais.
5) Defesa da universalização do acesso à internet banda larga no Brasil.
6) Defesa do princípio da privacidade, previsto no Marco Civil da Internet, e de uma lei de proteção de dados pessoais que garanta aos usuários/as do SUS que sua privacidade não seguirá sendo explorada e usada para atender aos interesses econômicos das empresas de saúde.
7) Defesa da regulamentação da publicidade dirigida às crianças e de produtos que possam colocar a saúde em risco (tabaco, agrotóxicos, medicamentos, álcool, alimentos, etc).
8) Defesa da responsabilização, com a retirada de recursos publicitários governamentais, de veículos que publiquem notícias que induzam à automedicação.
9) Fomento aos espaços de participação direta da população na gestão dos pontos da rede de saúde.
10) Defesa da implementação de estratégias de comunicação em saúde por parte do SUS e de sua rede de atendimento.