[Por Euro Mascarenhas/NPC] No momento em que a política é cada vez mais marcada pelo discurso religioso, o Quintas Resistentes recebeu em sua penúltima edição (10) os convidados Osvaldo Meca e Thomas Jensen. Ambos fazem parte do Coletivo Frei Tito, grupo que tem como objetivo preservar a memória do dominicano que se tornou símbolo de fé e resistência na ditadura.
O dia 10 de agosto marcou 46 anos da morte de Tito, que teve o seu martírio na França enquanto estava exilado.
A relevância da Teologia da Libertação, a importância das comunidades eclesiais de base para o desenvolvimento da militância de esquerda e o atual contexto político também foram outros tópicos conversados no programa, que pode ser resumido na fala de Osvaldo, “o Evangelho é revolução social”.
Frei Tito vive!
Descrito pelos convidados como um jovem sonhador, pesquisador e atento à sua realidade, Frei Tito comemoraria 105 anos no dia 14 de setembro. Ele nasceu em Fortaleza, Ceará, em uma família bastante católica e que também valorizava muito a educação. Ao longo de sua vida, envolveu-se com grupos religiosos que tinham uma perspectiva de ação política, como a Juventude Agrária Católica (JAC). Nessas andanças, acaba por conhecer um grande amigo de caminhada, Frei Betto.
A geração dos dois amigos marca também um momento em que parte da igreja vai buscar uma vivência mais presente na sociedade. “Tito não estuda em uma universidade própria da igreja; ele vai procurar a USP. Os frades começam a ter emprego também. Foi um movimento que teve”, afirma Osvaldo.
O engajamento de Tito o levaria a lutar contra a ditadura e, como consequência disso, foi preso, torturado e finalmente exilado na França. As marcas da brutalidade dos militares permaneceram presentes no seu interior, consumindo-o de forma tão profunda, que, mesmo submetendo-se a um tratamento psiquiátrico, no dia 10 de agosto de 1974, o frei tirou a própria vida.
Em 2014, ano que marca 40 anos de martírio de Tito, nasce o Coletivo Frei Tito. O grupo busca divulgar o legado que ele deixou, suas ideias e história. Muitos grupos como o MST e Levante Popular da Juventude se juntaram nesta iniciativa. O coletivo mantém um blog cujos grandes destaques são escritos reunidos de Frei Tito.
Vivência comunitária da fé
Ao explicar a Teologia da Libertação, Thomaz Jensen afirma que “a Teologia, enquanto uma reflexão sobre a vivência da fé, sobre os Evangelhos, é um momento segundo”. O primeiro momento mais importante é estar na vida comunidades, ler e interpretar a Bíblia junto com o povo, a fim de obter os elementos que ajudem a olhar a realidade.
Essa vida dentro das comunidades mais pobres, que visa estar além dos muros da igreja, deu origem à Teologia da Libertação, que nasce a partir da década de 1960. Uma visão profundamente latino-americana que se espalha para o mundo. “Ela vai se formar mesmo como uma teologia, como uma reflexão, a partir das experiências populares, a vivência comunitária da fé. Muito latino-americana, muito brasileira”, declara Thomaz.
Osvaldo também reforça o contexto social que fomentou a Teologia da Libertação, “ela nasce neste contexto de uma América Latina com ditaduras, também de eventos de uma igreja que trazia um certo pensamento sobre algumas questões que surgiram. Como lidar com exploração no campo? A exploração nas fábricas?”.
Histórias de resistência
As ditaduras que ocorreram no Brasil e nos demais países sul-americanos trouxeram um momento de divisão muito grande para o cristianismo. “As igrejas, especialmente a católica, tiveram um papel muito dúbio diante do que foram as diversas ditaduras latino-americanas”, relata Thomaz.
Ele também explica como essa divisão se dava inclusive entre os líderes da igreja: “uma parte da alta cúpula participava daqueles movimentos com Deus, pela família e pela propriedade. A resistência também encontrou pessoas da alta cúpula, e aqui a gente menciona Dom Paulo Evaristo Arns como uma enorme referência, que teve a coragem de visitar e testemunhar a situação pela qual passava o Frei Tito, depois das torturas que sofreu”.
Muitas são as histórias de padres envolvidos na resistência que tiveram de lidar com a perseguição dos militares, e muitas vezes dentro da própria igreja. Algumas delas com desfechos tristes, outras com pitadas muito boas de bom-humor. Osvaldo lembra de um episódio narrado por Frei Betto: “Eles tinham uma transmissão de mensagens com informação para a luta, ou não, que era tudo muito minucioso. Então eles iam para a prisão e visitas… e transmitiam mensagens dentro de uma caneta Bic. Fazia-se uma carta microescrita, colocava dentro da caneta para o guarda não ver, e passava para o outro”.
Outro episódio curioso que Osvaldo conta é sobre um frei que escapou de ser preso devido a uma confusão entre o nome civil e o religioso. “Era comum em algumas ordens religiosas trocar de nome. Então tem o nome civil e quando entrava na ordem recebia o nome religioso. Eu não me lembro exatamente com qual frei isso aconteceu, ele estava sendo perseguido pela ditadura, e ele só era conhecido pela comunidade pelo nome religioso, se eu não me engano era Domingos. Os militares procuravam: cadê o Frei Domingos? E aí foram prender. Ele mostrou o RG, e estava escrito sei lá… Antônio. Daí ele escapou dessa prisão justamente por causa dessa questão”.
O programa terminou com Osvaldo recitando um poema escrito por Frei Tito:
Quando secar o rio da minha infância
Secará toda a dor
Quando os regatos límpidos do meu ser secarem
Minha alma perderá sua força
Buscarei então pastagens distantes
Lá onde o ódio não tem teto para repousar
Ali erguerei uma tenda junto aos bosques
Todas as tardes me deitarei na relva
E nos dias silenciosos farei minha oração
Meu eterno canto de amor
Expressão pura de minha mais profunda angústia
Nos dias primaveris colherei flores
Para o meu jardim da saudade
Assim externarei a lembrança de um passado sombrio
Frei Tito, Paris, 12 de outubro de 1972.