Por Kátia Marko, de Porto Alegre, abril de 2004

“Herdamos do latim a palavra ‘latifúndio’, que significa grande área de terra. Herdamos do império português a estrutura latifundiária no campo brasileiro, e dela, até hoje, não nos livramos. Percorremos uma história de capitanias hereditárias, sesmarias, grandes fazendas de monocultura de exportação, modernas empresas agropecuárias e entramos no século XXI completando cinco séculos de latifúndio”.

No dia 16 de abril, foi lançado em Porto Alegre o livro “Marcha ao Coração do Latifúndio”, do deputado estadual Frei Sérgio Görgen (PT/RS). Frade franciscano, Frei Sérgio atua na assessoria aos movimentos sociais do campo desde o início dos anos 1980. E neste livro registra um dos momentos mais importantes da luta pela terra no Rio Grande do Sul. O latifúndio Southall, em São Gabriel, alvo de uma marcha do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no ano passado, tornou-se centro de uma disputa social, jurídica e política de alcance nacional. Confira a entrevista concedida ao Boletim do NPC.

Boletim NPC. Por que o senhor resolveu escrever um livro sobre a Marcha de São Gabriel?

Frei Sérgio. Em primeiro lugar para fazer o registro de uma história importantíssima que retratou toda a disputa pela terra. Toda a disputa política contra o latifúndio na virada do milênio e na entrada do governo Lula, com um reposicionamento das várias forças sociais. Também pela força mística, emotiva, humana que aquela marcha representou. E pela necessidade de enunciar a vergonha que foi a decisão do Supremo Tribunal Federal, que através de uma grande maracutaia jurídica, acabou negando o pão a muitas famílias e mantendo o latifúndio intacto em São Gabriel. Um latifúndio devedor, de dívidas enormes de mais de 37 milhões de reais. Realmente um escândalo sacramentado pela mais alta corte jurídica da nação, eu não podia me conformar com isso. Então é um livro registro, é um livro de história de vida, é um livro da história real feita pelos trabalhadores pobres, mas também é um livro denúncia de uma grande injustiça sacramentada pela corte que deveria preservar a justiça no Brasil.

Boletim NPC. Já há bastante tempo o senhor vem registrando a luta pela terra no Brasil. O senhor disse no lançamento do livro, que se colocou isso como uma meta de vida.

Frei Sérgio. Eu me sinto na obrigação de fazer isso, por estar no meio de camponeses que não tiveram, às vezes, o acesso ao mínimo de estudo necessário para sobreviver num mundo complicado e difícil como nós vivemos. Eu tive o privilégio de ter estado em bancos de universidade. Eu me sinto na obrigação moral de registrar essa luta dos pobres pela sobrevivência, pela melhoria das condições de vida. Ao longo da nossa história os registros históricos quase sempre foram feitos pelo lado dos opressores. Não ficou registro para relatar o lado dos trabalhadores, dos pobres, dos excluídos, dos oprimidos. Então, quando eu saí da Santa Elmira, eu me senti na obrigação de contar o que eu chamava na época de a verdade dos barracos. Aí eu escrevi o “Massacre da Fazenda Santa Elmira” e me coloquei como desafio registrar os momentos mais importantes desta luta. Por isso eu registrei também o massacre da Praça da Matriz no livro uma “Foice Longe da Terra”. Registrei também os primeiros assentamentos com o livro “Assentamentos: a Resposta Econômica da Reforma Agrária”, registrei o surgimento do MPA com o livro “A Resistência dos Pequenos Gigantes”, registrei a disputa de modelos agrícolas com o livro “O Risco dos Transgênicos”. E agora tive a possibilidade e o privilégio humano de registrar essa marcha heróica dos Sem Terra a São Gabriel na disputa pelo coração do latifúndio gaúcho.

Boletim NPC. O lançamento desse livro está se dando em um momento em que nós lembramos os oito anos do massacre de Eldorado dos Carajás. O senhor esteve lá vendo a situação das famílias que sofreram com o massacre.

Frei Sérgio. Eu estive lá logo depois do massacre. Fui com a tarefa de consolar as famílias, naquela situação dramática depois da morte de dezenove pessoas, muitos deles jovens. Eu quero dizer que Eldorado dos Carajás ainda não é uma página virada na história do Brasil, porque a estrutura básica que provocou o massacre continua intacta. A mesma estrutura agrária que gera a fome continua intacta. A mesma violência contra os camponeses continua intacta. Os camponeses continuam sendo assassinados, talvez não dezenove de uma vez. Continuam morrendo assassinados pela fome, nos fundos de rincões aonde moram. Portanto esta realidade continua massacrando e destruindo as pessoas nesse país. Por isso nós precisamos continuar lutando contra esta estrutura fabricadora de mortes.