Segundo o professor de Ciência Política Reginaldo Moraes, qualquer jornalista que se aventurou a ter alguma idéia na cabeça que não correspondesse àquela de seu patrão sabe o que é apropriação da informação pública. Jornal da Unicamp, agosto de 2004
Doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de Ciência Política no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Foi editor-chefe da revista Leia e co-editor da revista Educação e Sociedade e do Jornal Em Tempo, de 81 a 84. Publicou vários livros: entre eles, Celso Furtado, o Subdesenvolvimento e as Idéias da Cepal; Redemocratização Espanhola: lição de uma distenção lenta, gradual e insegura; Pacto Social: entre a negociação e o pacote; e Neoliberalismo: de onde vem e para onde vai? (foto, editora SENAC de São Paulo).
Para Reginaldo, qualquer jornalista que se aventurou a ter alguma idéia na cabeça que não correspondesse àquela de seu patrão sabe o que é apropriação da informação pública. Para ele, os críticos do projeto não estão vendo fantasmas. “Eles estão muito lúcidos. Estão atirando naquilo que vêem. Mas querem que pensemos que atiram em outra coisa. A informação que chega à sociedade não chega – é levada por alguém. Alguém que quer permanecer na sombra.”
Jornal da Unicamp. Segundo os críticos dessas medidas, o que está por trás do “pacote regulador” do governo é um esforço de apropriação da informação pública. Ou seja, o governo gostaria de controlar a qualidade da informação que chega à sociedade e, ao mesmo tempo, ter acesso livre e privilegiado a informações sigilosas sobre os cidadãos. Como o senhor analisa essa postura? O senhor vê nisso algum risco ou os críticos estão vendo fantasmas?
Reginaldo Moraes. As palavras não são inocentes. Apropriação da informação pública? Quem se apropria? E quem é expropriado? De quem é, hoje, essa informação que se diz “pública”? Nesse campo, como diz o ditado, manda quem pode, obedece quem tem juízo. Qualquer jornalista que se aventurou a ter alguma idéia na cabeça — e que não correspondesse àquela de seu patrão — sabe do que estamos falando.
Será que temos mesmo dirigismo governamental, com a criação desse conselho? Engraçado é ver um detalhe desse o projeto de lei enviado ao Congresso — e que não foi iniciativa do governo, mas da Federação dos Jornalistas, há vários anos. Ele disciplina a composição do Conselho. E ele… não tem representantes do governo. Detalhe singelo. A liberdade de imprensa atualmente em uso permite, por exemplo, que centenas de páginas e horas de transmissão de rádio e TV tenham sido produzidas por esse assunto sem que certas pequenas coisas tenham sequer sido mencionadas. Por exemplo essa: os conselheiros serão eleitos entre todos os jornalistas profissionais. Não serão nomeados pelo governo.
Curiosamente, também, sequer notícia breve se registrou sobre o fato de que o Congresso Nacional de Jornalistas, recém realizado na Paraíba, apoiou por unanimidade o envio do projeto de lei. TVs, jornalões e rádios não deram essa notícia, nem para dizer que esses jornalistas são doidos: melhor não dizer, não é mesmo?
Os críticos não estão vendo fantasmas, não. Eles estão muito lúcidos. Estão atirando naquilo que vêem. Mas querem que pensemos que atiram em outra coisa. A “informação que chega à sociedade” não “chega” — é levada por alguem. Alguém que quer permanecer na sombra.
Jornal da Unicamp. O fato dessas medidas estarem ocorrendo em bloco caracteriza um programa político com viés de dirigismo cultural e estatal?
Reginaldo Moraes. Ocorrem em bloco? Não creio que se possa dizer isso. Quanto a dirigismo, o fato é que uma parte grande, mas muito grande, da mídia impressa, radiofônica e televisada está hoje bastante dirigida… por um punhadinho de empresas, que, em princípio, fazem o que querem, do jeito que querem. Alguém alguma vez chamou isso de dirigismo e manipulação? Sim, mas não aqueles que agora usam o termo. Especialistas no assunto — coisa que não sou — já mostraram o poder da grande mídia no sentido de “fazer a agenda”. O que a mídia faz não é, necessariamente, convencer você a respeito da pena de morte, da prisão para menores de 18 anos, da relevância da revelação do pai da filha da Xuxa para os destinos da infância brasileira.
Não, o que a mídia faz é marcar esses assuntos como aqueles que devem polarizar a atenção das pessoas, os temas sobre os quais as pessoas devem opinar e segundo os quais elas devem ser classificadas e julgadas. Isto canaliza o debate e as decisões. Não se vai exigir de um candidato a deputado suas opiniões sobre a política de ensino superior, de ciência, de iniciativa cultural, de saúde pública, mas vamos ver se ele é favor da pena ou contra… Se ele tentar dizer que não é essa a pauta importante, é bem possível que o desqualifiquem. Ele “está fugindo da questão”.
Jornal da Unicamp. É possível implantar-se um projeto dessa natureza nesta altura do processo democrático brasileiro, sobretudo levando-se em conta que tal projeto advém de forças políticas que construíram sua reputação na luta contra a repressão da ditadura militar?
Reginaldo Moraes. De fato, o projeto advem de quem lutou contra a ditadura. E a reação negativa ao projeto, em grande medida, de quem dela se beneficiou. Ou não? Mas a dificuldade para fazer andar alguma democratização da mídia, no Brasil, vai muito além disso. Coincide com o fato de que, nas empresas de comunicação, como nas demais, reina o despotismo do capital, porque o trabalho não pode se organizar, opinar, etc. No Brasil não temos a garantia da liberdade de organização sindical nos locais de trabalho, nunca tivemos — não a
ssombra que os donos dos meios de comunicação esperneiem.
Jornal da Unicamp. Há a hipótese de que, ao propor medidas que julgava boas, o governo cometeu um erro de conceito e de forma, sendo surpreendido pela reação da sociedade. Nesse caso, o ônus a ser pago pelo governo será alto, o lucro nenhum e o recuo inevitável. Este cenário é possível?
Reginaldo Moraes. Reação da sociedade? De que “sociedade”? Quem, hoje, detem poder nesse campo? Seria necessário fazer um balanço de quem controla a mídia brasileira, de seu grau de envidividamento e dependência frente a bancos credores e frente ao próprio governo federal. Consta que o maior grupo do país está enforcado e retido na coleira. Que um dos maiores jornais do país — famoso pelas suas posições liberais — está nas mãos de um grande banco, porque foi destruído financeiramente pelos seus antigos proprietários. Há, além disso, uma enorme e pouco clara rede de comunicações nas mãos de pastores eletrônicos de todo tipo. É essa a “sociedade” que reage ao Conselho?
Jornal da Unicamp. Mas há também a hipótese de que o governo, sentindo-se forte com os primeiros sucessos na economia, esteja disposto a pagar o preço moral e lançar “redes de segurança” (sobretudo no plano da informação) que lhe garantam sua continuidade no poder. Teríamos assim uma espécie de chavismo à brasileira. O sr. acredita nisso?
Reginaldo Moraes. Chavismo à brasileira? Chavez é Chavez, Venezuela é Venezuela. Outra coisa é outra coisa. Mas, se quisermos falar em chavismo seria bom dizer também o que são os donos de meios de comunicação daquele país e quais são suas democráticas iniciativas. Por que não se fala então de “bushismo à brasileira”? Quando se iniciou a criminosa invasão do Iraque, houve um massacre de mídia “patriótica” para conseguir apoio popular àquela aventura. Hoje, é claro, não convem mencionar o tema.
Temos, de novo, essa idéia de segurar informação e manipular. Volto a perguntar: quem é o conselho? Quem o compõe? Quem tem medo de jornalistas intervindo no modo de operar das empresas de comunicação, tendo atrás de si a autoridade de um conselho profissional eleito, como têm os médicos, os dentistas, os advogados, os contabilistas…? A quem interessa?