…..Nesta entrevista exclusiva ao Bafafá, Fernando Morais fala sobre vários temas: política, mensalão, esquerda, Bush e muito mais. “Estamos vivendo o pior momento da esquerda brasileira das últimas décadas. Ele só encontra paralelo no massacre de que todos fomos vítimas, em graus diferentes, durante a ditadura militar”, assegura.  (set/2005)
 

Mineiro de Mariana, Fernando Morais é um dos jornalistas e biógrafos mais respeitados do Brasil. Nascido em 1946, descobriu o jornalismo a partir de 1961, tendo passado pelas principais redações do País, entre elas da revista Veja, Jornal da Tarde, Folha de São Paulo e TV Cultura. O reconhecimento não demorou.

Recebeu três vezes o Prêmio Esso e quatro vezes o Prêmio Abril de Jornalismo. Foi deputado estadual durante oito anos (pelo MDB-SP, e depois pelo PMDB-SP) e Secretário da Cultura (1988-91) e da Educação (1991-93) do Estado de São Paulo. Escreveu, entre outros livros, A Ilha (Alfa-Ômega, 1975), Olga (Alfa-Ômega, 1985; reeditado pela Companhia das Letras, 1994), Chatô, o rei do Brasil (Companhia das Letras, 1994) e Corações sujos (Companhia das Letras, 2000) e a “Toca dos Leões”, este último retirado das livrarias por ordem judicial. Tem livros traduzidos em dezoito países.

Nesta entrevista exclusiva ao Bafafá, Fernando Morais fala sobre vários temas: política, mensalão, esquerda, Bush e muito mais. “Estamos vivendo o pior momento da esquerda brasileira das últimas décadas. Ele só encontra paralelo no massacre de que todos fomos vítimas, em graus diferentes, durante a ditadura militar”, assegura.

Está decepcionado com o governo do PT? Que tipo de relações você tinha com o partido?

Nunca fui filiado ao PT, embora tenha estado a seu lado dezenas de vezes em sua história, seja como mero eleitor, seja como aliado. Durante o tempo em que tinha militância ativa no PMDB, partido a que sou filiado há mais de trinta anos, sempre defendi, raramente com sucesso, que nossas alianças devessem ser feitas preferencialmente com a esquerda, ou seja, com o Partido dos Trabalhadores. Mas também cheguei a ter atritos difíceis com o partido. Nunca tive muita paciência para aquele ar superior com que muitos petistas nos olhavam, como se eles fossem os “Escolhidos” e, portanto, os únicos honestos da política brasileira, os únicos que queriam transformações profundas no País, nada da cosmética proposta por nós. Nós quem? Os não-petistas.

Mas isso interferia nas relações políticas?

Sem nenhuma dúvida. Mesmo no desempenho de cargos públicos tive dificuldades com o PT. Lembro-me, por exemplo, do tempo em que fui Secretário da Cultura do Estado de São Paulo, entre 1988 e 1991. Os anais da Assembléia Legislativa paulista guardam os registros da oposição sistemática, dura, cotidiana, que o então líder do PT, deputado estadual José Dirceu, movia contra meu governo e particularmente contra a Secretaria dirigida por mim. Ele concentrava seu fogo, por exemplo, na construção do Memorial da América Latina, que considerava uma obra “faraônica” e “dispensável” – e que hoje virou ponto de visitação obrigatória para quem vai a São Paulo. Isso não impediu que continuássemos amigos nem que minhas relações com o PT ficassem estremecidas. Tanto assim que dias depois de eleita, a prefeita Martha Suplicy me convidou para ser seu Secretário de Educação – convite que acabei recusando por estar decidido a não mais ocupar cargo público. Essa convivência com as principais lideranças do PT, a despeito das objeções a que me referi, fez com que depositasse na eleição de Lula (a quem conheço desde 1978 e com quem eu estava na madrugada da invasão do Sindicato dos Metalúrgicos por tropas militares, em 1979) esperanças muito objetivas: para alguém, como eu, chegando perto dos 60 anos, aquela poderia ser a última possibilidade de minha geração ver o Brasil mudar.

Você participou da campanha do Lula em 2002?

Com todo empenho. Primeiro, acho que dei uma modesta porém decisiva contribuição para rachar o PMDB de São Paulo. Eu tinha sido escolhido candidato a Governador do Estado, mas a direção nacional do partido decidiu não apoiar Lula e caminhava na direção de José Serra – o que acabou se concretizando, com a indicação da deputada Rita Camata (PMDB-ES) como vice da chapa tucana. Com a ajuda de Dirceu, pelo lado do PT, conseguimos que Orestes Quércia, presidente estadual do partido, anunciasse formalmente que o PMDB paulista estava com Lula.

O PT prometeu ajudar na sua campanha?

Na condição de candidato a governador, participei de tudo e sei que o apoio tinha sido dado sem qualquer contrapartida material. Nenhuma, zero. Apesar da dureza franciscana da nossa campanha (ninguém ajuda um candidato que está com 3% das intenções de voto, como era o meu caso), em nenhum momento pedimos ou nos foi oferecida qualquer ajuda material. Ainda guardo a Nota Fiscal dos mil bonés que mandei fazer, com meu dinheiro, com os nomes do Lula, do Quércia, candidato ao Senado, e o meu. No dia 22 de julho, quando eu fazia 56 anos, Lula e José Dirceu apareceram em pessoa na inauguração do meu Comitê Central, mesmo sabendo que aquele gesto poderia causar ressentimentos no deputado José Genoíno, com quem eu disputava o Governo do Estado. Quatro dias antes do início do horário eleitoral gratuito, em meados de agosto, retirei minha candidatura, por razões já conhecidas: o PMDB queria que eu cedesse meu tempo de TV ao presidente do partido e candidato ao Senado, Orestes Quércia – que já tinha seu próprio tempo garantido por lei. Não aceitei aquela empulhação, rompi com ele e no dia seguinte entrei na campanha do Lula.

Como está vendo a crise política?

Na minha opinião, estamos vivendo o pior momento da esquerda brasileira das últimas décadas. Ele só encontra paralelo no massacre de que todos fomos vítimas, em graus diferentes, durante a ditadura militar. Naquela época pelo menos tínhamos a esperança, que se concretizou, de derrubar o regime militar. Neste momento boa parte dos militantes – não me refiro apenas aos petistas – sente como se estivesse a caminho do patíbulo, e pagando por crimes que não foram cometidos por eles.

Lembra-se de alguma passagem da campanha presidencial?

Lembro-me de um dos últimos atos públicos da campanha, no Canecão, aqui no Rio, promovido por artistas e intelectuais de todo o Brasil. Só três ou quatro oradores falariam antes do candidato. Minutos antes de acenderem as luzes do palco, alguém me disse que eu fora escolhido para falar “em nome dos escritores”. Senti um frio na barriga: o Canecão estava superlotado, aquela deveria ser uma das últimas aparições públicas de Lula antes das eleições, os olhos do País estavam voltados para aquele palco. Para subir ainda mais a eletricidade do ambiente, dois dias antes tinha aparecido no programa de José Serra a atriz Regina Duarte, de quem sou amigo e admirador (não sei dizer quantas vezes ela votou e pediu votos para mim, no tempo da ditadura), dizendo sentir “medo” da eleição de Lula. Aquilo tinha sido um soco na boca do nosso estômago. Sem saber o que dizer, lembrei-me de um belo e providencial poema escrito em 1926 por Gilberto Freyre, intitulado “O outro Brasil que vem aí”, que tinha sido enviado a mim de manhã, por e-mail, por uma amiga pernambucana. Eu o achara tão apropriado para o momento que vivíamos que imprimi o poema em duas folhas de papel e as enfiei no bolso do paletó, pensando em sugerir a Duda Mendonça que pusesse algum artista para declamá-lo no programa de TV de Lula. Na hora que me chamaram, veio o estalo: vou ler “O outro Brasil que vem aí”. Não resisti à tentação de fazer uma provocação com a Regina. Ao microfone eu disse que no momento em que se tentava introduzir na política brasileira um novo ingrediente – o medo – eu recorria a Gilberto Freyre para lembrar que nas aspirações dos brasileiros a esperança era mais velha que o medo. Na saída, um jornalista me perguntou o que representaria para mim a eleição de Lula e eu respondi sem pestanejar: “Para a minha geração, Lula não é apenas a única esperança. É a última”.

Quem afinal traiu e foi traído?

Tenho a mesma curiosidade que você: afinal, quem traiu e quem foi traído? Aliás, essa é uma resposta que você, eu e 180 milhões de brasileiros queremos ouvir.

Você acha que o PT se iludiu com o poder?

Talvez nós tenhamos nos iludido com o PT.

Quais as conseqüências disso para a esquerda brasileira?

Sei que as conseqüências dessa crise são graves para toda a esquerda e não só para o PT. E vai levar tempo para que isso seja superado. Mas é preciso deixar claro que a esquerda não é apenas o PT – embora muitos de seus militantes pensassem isso, de maneira presunçosa. O PT achava que tinha inventado a roda, esquecendo-se de uma tradição secular de lutas e de organização popular no Brasil, que vem de muito longe, passa pela história do PCB, pela reação à ditadura militar e que chega até os dias de hoje, seja em grupos e partidos de esquerda, seja em militantes que não estão organizados em nenhum partido. Mas que o preço a ser pago vai ser alto, disso ninguém tenha dúvida. Basta ver a carantonha de Herr Bornhausen na TV, festejando a esperança de que o mensalão vá “livrar o Brasil dessa raça por trinta anos”. Essa raça somos todos nós, não apenas os petistas.

Você acha que existem elementos para um eventual impeachment? 

Não acredito – pelo que se sabe até agora. Mas chama a atenção a diferença entre a sanha moralista das elites e da direita nesse episódio e o comportamento dessas mesmas pessoas e instituições quando os tucanos pagaram R$ 300 mil por voto para garantir a reeleição de Fernando Henrique Cardoso. Mas como afirmou, sem pejo, o próprio FHC, corrupção em ninho tucano “é história”, é página virada.

O que acha da política econômica do Lula?

Se o governo Lula tivesse optado por uma política econômica antineoliberal, comprometida com o desenvolvimento do Brasil, com a criação de empregos, como vêm fazendo alguns governos latino-americanos, a “raça” a que se refere Herr Bornhausen estaria nas ruas para garantir a permanência de um governo popular. Fala-se muito que o PT adotou, no governo, a política segundo a qual os fins justificam os meios. Que fins? Cumprir à risca a cartilha do FMI? Manter a política do doutor Meirelles no BC, que exibe os mais altos juros do planeta?

E da política externa? 

Talvez esse seja um dos poucos pontos do governo em que há um mínimo de coerência com a história e a pregação do partido. Não fosse o Itamaraty não sobraria nada, ou quase nada.

Quem deve se beneficiar com este escândalo nas próximas eleições?

Temos um ano e meio para impedir que o desastre seja total. As urnas devem falar grosso no ano que vem.

Você já conseguiu resolver o imbróglio em torno de seu livro “Na Toca dos Leões”? 

Não, ainda não. Foram rejeitados todos os recursos interpostos pelos ‘réus’ (a Editora Planeta, o publicitário Gabriel Zellmeister e eu) na Justiça goiana, onde corre o processo movido contra nós pelo deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO). Nossa expectativa é que os autos cheguem logo ao STJ, um tribunal a salvo de pressões e ingerências locais. Enquanto estiverem em Goiás, as esperanças são mínimas.

O que de fato incomodou a UDR?

Não foi a UDR quem se incomodou, mas seu criador, o deputado Caiado. A Justiça goiana, a pedido dele, inovou em matéria de censura: mandou recolher os livros em todo o Brasil e proibiu os réus de se manifestarem publicamente sobre o assunto – razão pela qual estou impedido de esclarecer aos leitores do Bafafá o que foi que tanto irritou o deputado Caiado. Cada vez que infringir a ordem judicial, terei que pagar uma multa de R$ 5 mil.

Você acha que estamos vivendo uma “ditadura judicial” ?

É a censura togada. Mais perigosa que a da ditadura, porque vem envolta em uma aura de “legalidade” que a dos militares não tinha.

Como está vendo a imprensa alternativa no País?

É a única que está falando a verdade. Salvo uma exceção aqui, outra acolá, a chamada grande imprensa se converteu em um (ou vários) partido de direita.

O que acha de uma publicação como o Jornal Bafafá?

É na crise, e não na bonança, que surgem publicações independentes. Lembrem-se de que o Pasquim, Opinião, Movimento e todos os demais veículos independentes da história recente do Brasil nasceram sob a ditadura militar.

Como está vendo a crise no Iraque?

Vou repetir um vaticínio feito pelo ex-secretário de Defesa dos EUA, Ramsey Clark, segundo o qual “depois do Iraque, a guerra do Vietnã será lembrada pelos americanos como um passeio de nossas tropas”. Inshallah!

Qual será o próximo alvo dos EUA?

Para responder a essa pergunta, siga o petróleo: Irã e Venezuela.

Já ouviu falar num plano americano de declarar o cargo vago quando Fidel Castro morrer?

Há quatro décadas presidentes americanos fazem ‘planos’ para a Cuba pós-Fidel. A verdade é que o líder cubano já enterrou Eisenhower, Kennedy, Johnson, Nixon, Ford, Reagan, Bush, Carter e Clinton – alguns desses ainda continuam tecnicamente vivos por aí. Estive em Cuba no último Carnaval, em companhia do ex-ministro José Dirceu, e pude ver que Fidel ainda tem saúde para acompanhar o enterro de mais uns quatro ou cinco.

O que mais admira no Brasil?

A Luana Piovani.

O que repugna?

Ligar a televisão.

Alguma utopia?

O socialismo.

Quais são seus planos daqui em diante?

Estou escrevendo a biografia de um grande brasileiro, o marechal-do-ar Casimiro Montenegro Filho. Quando nosso País ainda importava penicos da Europa, ele já sonhava com o Brasil como grande potência aeronáutica. Criou a Embraer e o ITA – que acaba de sofrer intervenção branca por parte da Aeronáutica, diante do silêncio cúmplice de Lula e do ministro da Defesa, José Alencar. Já comecei a pesquisa para escrever a biografia de outro brasileiro ilustre, o escritor Paulo Coelho, que deve ser publicada no ano que vem. E tenho ainda dois projetos correndo por fora: a biografia do senador Antonio Carlos Magalhães e a história do Molipo, Movimento de Libertação Popular, grupo guerrilheiro surgido em Cuba no final dos anos 60 como uma dissidência da ALN.
 


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