Por Ed Wilson Araújo, jornalista, abril de 2004(*)
Há uma grande movimentação no meio acadêmico e jornalístico, em várias regiões do país, em torno da preparação do bicentenário da Imprensa Brasileira, em 2008. Um dos idealizadores desse projeto é o Prof. José Marques de Melo, titular da Cátedra Unesco de Comunicação para o Desenvolvimento Regional da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), autor de vários estudos sobre comunicação no Brasil e no exterior.
As ações desencadeadas para comemorar os 200 anos começaram a tomar força com a instalação da Rede Alfredo de Carvalho (Realcar), que já recebeu adesão da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares em Comunicação (Intercom), Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e do Núcleo de Estudos da História dos Impressos da Bahia (Nehib). A escolha do nome do pernambucano Alfredo de Carvalho (1870 – 1916) para batizar a rede faz justiça à dedicação do pesquisador pelo levantamento rigoroso dos jornais que fizeram os primeiros 100 anos da Imprensa Brasileira.
A Realcar vem recebendo adesões e o reconhecimento de várias instituições acadêmicas, grupos de estudo em Comunicação, publicações, organizações não governamentais e populares pelo Brasil. Trata-se de uma iniciativa importante para agendar o debate sobre um dos mais significativos fenômenos da humanidade – a Imprensa e suas especificidades no Brasil.
Uma primeira demarcação para entender as circunstâncias que proporcionaram o surgimento da Imprensa no mundo é situar o fato no contexto do desenvolvimento histórico e econômico do mercantilismo, a partir das trocas de mercadorias e informações nas cidades originárias do capitalismo (burgos). Importante ressaltar que estas práticas comerciais incipientes tiveram impulso com o surgimento dos Correios e da Imprensa, esta última concebendo a notícia como uma mercadoria que atraiu primeiramente quem se dedicava ao comércio e ao transporte marítimo. Os primeiros “jornais” interessavam somente a quem comercializava, traziam informações sobre preços de mercadorias, abastecimento, pólos de produção etc. A imprensa surge portanto como uma necessidade de suporte ao capitalismo e não deixou de sê-lo até hoje.
No Brasil, a Imprensa surge em 1808, quando passou a circular, em 1º de junho, o “Correio Braziliense”, editado em Londres por Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça. Até 1999 o Dia da Imprensa era comemorado em 10 de setembro, em referência ao jornal “Gazeta do Rio de Janeiro”, que também passou a circular em 1808, com a chegada da Família Real ao Brasil, fugida da invasão napoleônica na Península Ibérica. D. João VI aporta na Bahia e assina a Carta Régia abrindo os portos brasileiros às nações amigas, criando também o jornal oficial da Corte.
Até 1808 eram proibidas a impressão e a circulação de qualquer tipo de jornal ou livro no Brasil. O “Correio Braziliense” entrava clandestinamente, nos porões dos navios que transportavam mercadorias e escravos. Todo o cerco da Coroa Portuguesa ao incipiente jornalismo brasileiro temia a propagação de ideais de liberdade, igualdade e fraternidade que fervilhavam na Europa, especialmente na França, com os quais Hipólito mantinha uma certa identidade.
Os dois jornais tinham posições ideológicas antagônicas. Fugindo da Inquisição, Hipólito pregava a libertação do Brasil dos domínios de Portugal; enquanto a Gazeta, dirigida por Frei Tibúrcio José da Costa, funcionava como um diário oficial da Corte. Quando nasce, 308 anos após o “descobrimento”, a Imprensa tupiniquim já vem cerceada, fato que vai marcá-la em vários períodos históricos, culminando com a Lei da Mordaça, quase 200 anos depois. A iniciativa de mudar o Dia da Imprensa de 10 de setembro para 1º de junho partiu do deputado Nelson Marchezan (PSDB-RS). Não que ele queira fazer justiça à coragem de Hipólito José da Costa, ou que reconheça o papel importante que o Correio Braziliense desempenhou no Brasil. Afinal, o deputado gaúcho foi líder da Arena (1979 – 80) e do governo Figueiredo (1983-84), quando ainda havia muita repressão e censura aos meios de comunicação. O motivo de Marchezan é puramente paroquial, já que Hipólito era gaúcho de Ganguçu.
Em breve retrospectiva histórica, pode-se perceber que a Imprensa brasileira funcionou muito tempo sob pressão e censura em vários períodos, desde os primeiros generais da República, passando pela Era Vargas com o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), desaguando nos absurdos da ditadura militar.
Mas nem sempre todos se curvaram e se mantiveram subservientes a estas regras. No Maranhão, um exemplo de resistência vem do jornalista José Ribamar Bogéa, fundador do Jornal Pequeno, que completou 50 anos em 29 de maio. Ribamar Bogéa, o Zé Pequeno, é um ícone do jornalismo no Maranhão e uma referência para o Brasil. Tintureiro de lavanderia e comerciário, Ribamar Bogéa iniciou ainda adolescente a vida em jornal, sem ganhar nada, espiando os revisores, até ser profissionalizado nos Diários Associados, trabalhando 16 horas por dia, em reportagens de esporte, polícia, na paginação, observando todos os setores, desde a captação da notícia até a impressão. “Jornalista tem que ser polivalente, saber tudo de jornal”, dizia.
Depois de oito anos de dedicação aos Diários Associados, um episódio marcaria profundamente sua vida e mudaria o rumo de sua trajetória de jornalista. Em 1947, ao fazer a cobertura do jogo Moto x Fluminense (RJ), o repórter teceu críticas à atuação do juiz Élvio Furtado, um oficial do Exército do Ceará, que teria beneficiado o Fluminense. Censurado, Bogéa foi reclamar ao diretor do jornal, José Pires de Sabóia Filho, e recebeu como resposta: “Quando você tiver seu jornal, poderá escrever como entender. Por enquanto não”. A demissão de Bogéa foi a senha para reconstruir forças e criar seu próprio jornal “O Esporte”, evoluindo para o Jornal Pequeno, cuja primeira edição saiu em 29 de maio de 1951.
Desde os primeiros números o Jornal Pequeno manteve marcas fundamentais para o exercício do jornalismo – independência e liberdade – características mantidas até hoje pelos seus sucessores. Mesmo nos tempos mais difíceis, quando praticamente mendigava anúncios, Bogéa nunca se rendeu às propostas indecorosas dos mais diversos grupos políticos que o procuravam tentando comprar sua pena. O Jornal Pequeno resistiu às pressões e às agressões ao diretor, como no episódio
do quebra-quebra na redação, supostamente atribuído aos capangas do governador Eugênio Barros. Bogéa apanhou, o maquinário foi danificado mas em nenhum dia sequer o jornal deixou de circular.
Nos anos 60 uma nova investida tentou calar o “órgão das multidões”, como era chamado o Jornal Pequeno. Desta vez a perseguição foi orquestrada pelo então governador José Sarney, irritado com uma matéria do deputado Freitas Diniz sobre atos administrativos do governo. A crítica gerou um processo contra Bogéa, revelando a fúria do governador que apoiou o golpe militar, deu sustentação à ditadura e agora é proclamado poeta defensor da liberdade. Nem as ameaças, nem as pressões intimidaram e conseguiram calar Zé Pequeno.Bogéa venceu a batalha judicial por unanimidade nas instâncias superiores, derrubando os planos do governador de fechar o Jornal Pequeno e prendê-lo.
Em meio século de existência e resistência, o Jornal Pequeno provou que é possível exercer um jornalismo de forma democrática, sempre abrindo espaço aos dois lados. Nem precisava o governador Sarney interpelá-lo judicialmente, já que o direito de resposta era natural, uma instituição no jornal. Durante a cobertura da Greve de 51, o Jornal Pequeno veiculava no mesmo dia tanto os artigos das Oposições Coligadas quanto os da ala governista-vitorinista.
Agora, passados quase dois séculos de criação da Imprensa no Brasil, cabe uma reflexão sobre o lugar de atuação da mídia no mundo moderno, já denominado pelos teóricos de sociedade midiática ou Idade Mídia, tal a influência dos meios de comunicação em todos os setores da sociedade. É hora de refletir sobre o tipo de Imprensa que queremos. Com certeza não é o modelo vigente: concentrador, monopolizado, à mercê de interesses dos grupos econômicos e políticos proprietários de redes de rádio, jornal e TV.
Os mídia hoje ocupam posição estratégica nos diversos campos sociais por onde transitam. Mas é no campo da política que exercem mais influência, publicizando ou ocultando fatos de acordo com os interesses dos proprietários. Sutil, a construção de cenários e imagens se processa nos bastidores das redações, ocultando e silenciando fatos de relevância social e interesse público, portanto com critérios de noticiabilidade.
Monopolizada, a Imprensa cala quando convém aos donos. Sem a democratização da comunicação não haverá democratização da sociedade. É urgente rediscutir os critérios de distribuição das concessões de rádio e TV, garantir mecanismos de controle social sobre os mídia e criar meios alternativos capazes de ocupar os espaços “grilados” pelos que se autoproclamam donos da comunicação e que controlam, ou tentam controlar, tudo que se fala, escreve e vê no Brasil.
A criação da Rede Alfredo de Carvalho é uma iniciativa de grande importância para pautar o debate sobre o papel da Imprensa. Fica como sugestão à Universidade, através dos cursos de Comunicação, e também ao Sindicato dos Jornalistas, trazer a São Luís os idealizadores da Rede e estendê-la ao Maranhão.
Nos 50 anos do Jornal Pequeno, a coragem e a resistência de Ribamar Bogéa deixaram um legado fundamental para reescrever a história da Imprensa no Maranhão. O que seria dos leitores maranhenses se não houvesse o Jornal Pequeno? Jamais tomariam conhecimento do golpe da Fábrica Kao-I, do escândalo da estrada Paulo Ramos-Arame, do projeto Salangô, do caso Reis Pacheco, do Fundo de Pensão Parlamentar, da privatização do Banco do Estado, da lista dos fiéis depositários, do acompanhamento e das denúncias sobre o crime organizado, dos escândalos nos assentamentos da “reforma agrária” oficial e tantos outras pautas proibidas e silenciadas na mídia oficial.
Não há também a pretensão de eleger o Jornal Pequeno como modelo de perfeição e de excelência. Da mesma forma que não podemos negar o impulso que o JP vem dando a uma nova forma de fazer jornalismo, seja revelando o que os outros ocultam, seja destoando da cobertura bajulatória que lambe as botas da corte.
Assim o Jornal Pequeno é mais que um meio de comunicação impresso. É uma tribuna. Vida longa e que novas pautas instigantes ajudem a registrar os próximos 50 anos. Um brinde a Hipólito José da Costa, a Ribamar Bogéa e ao Jornal Pequeno! E que os seus sucessores não deixem morrer a chama da resistência e da coragem, marcas da grandeza de caráter do fundador do JP.
Ed Wilson Araújo é Jornalista (DRT-MA 949)
As informações sobre a vida de Ribamar Bogéa foram retiradas da revista “Jornal Pequeno: meio século de luta e resistência”, editada pelo Prof.: Alberico Carneiro. Publicado em 17/04/2001 na Rede Alfredo de Carvalho (http://www.jornalismo.ufsc.br/redealcar/wilsonaraujo.htm). Conheça o Jornal Pequeno: www.jornalpequeno.net