(Antonio Martins, Planeta Porto Alegre)
“As nações que oprimem outros povos estão condenadas a viver sem liberdade”, escreveu certa vez Karl Marx. Ele se referia a uma tentação recorrente das classes dirigentes de todos os impérios. Acostumadas a subjugar pela força outros países, elas acabam ceifando os direitos de seus próprios concidadãos. A dominação imperial garante, por certo tempo, pão e circo para as massas. Mas o preço é sempre a anulação da democracia. Um estudo recente da Universidade Estadual de Sonoma (Califórnia) parece confirmar esta teoria. É o novo relatório anual do Project Censored. Há 27 anos, dezenas de estudantes e professores da universidade (foram 200, este ano) dedicam-se a identificar os dez episódios mais importantes cuja informação foi negada à grande maioria dos norte-americanos. Além de apontar as omissões, a universidade premia os profissionais que romperam – quase sempre em jornais, revistas e espaços de internet independentes – o muro de silêncio.
Nos EUA não há, por enquanto, censura estatal à imprensa. O controle é feito pelos próprios monopólios que dominam a comunicação. A existência do projeto, desde os tempos do escândalo de Watergate, revela que ocultar fatos da opinião pública não é exatamente uma novidade no país de Bush. O que mais choca é o que está sendo censurado atualmente. A pesquisa revela que jornais e TVs sonegam aos cidadãos, agora, o direito de se informar (e, portanto, de opinar) sobre os projetos mais importantes executados pela Casa Branca. Para conferir, basta examinar a lista das “Top ten censored stories” – os dez fatos mais ocultados dos cidadãos.
1. Os planos dos neoconservadores para mudar a geopolítica do mundo:
O mandato de Bush foi marcado, desde o início, pela forte presença dos chamados “neoconservadores”, em postos-chaves dos departamentos de Defesa (Forças Armadas) e Estado (relações diplomáticas). Formada no pós-II Guerra, esta corrente crê na violência como “estado natural” da humanidade, e propõe abertamente que os EUA conquistem, por meios militares, o controle de grandes áreas do planeta (em especial o mundo árabe), e a submissão de possíveis adversários. Liderados por figuras como Paul Wolfowitz (subsecretário de Defesa), Richarde Perle e William Kristol, os “neocons” propunham guerras contra o Iraque e o Afeganistão muito antes do 11 de setembro de 2001. Uma das instituições criadas por eles – o Projeto para um novo Século Americano (PNAC, em inglês) falava, já em 2002, na “necessidade de um novo Pearl Harbour”.
Após o atentado às torres gêmeas, os “neocons” assumiram o controle quase completo sobre a política externa dos EUA. Sua ascensão foi relatada pela agência internacional independente IPS e por The Sunday Herald, Harpers’ Magazine, Mother Jones e Pilger.com, igualmente algernativos. No entanto, diz Peter Phillips, coordenador do Project Censored e professor da Universidade de Sonoma: “A maior parte das pessoas neste país está totalmente desinformada da existências do PNAC”. Os grandes jornais e redes de TV preferem silenciar sobre eles e seus planos. Este silêncio é crucial para ocultar os verdadeiros objetivos da Casa Branca. Um documento do Project Censored lembra que “a mídia quase não examinou o papel do petróleo na política norte-americana sobre o Iraque e Golfo Pérsico, e a cobertura que houve tendeu a ridicularizar ou esconder a idéia de que a guerra tinha algo a ver com esta riqueza”.
2. As ameaças às liberdades civis:
Os atentados do 11 de setembro permitiram também que a Casa Branca apresentasse ao Congresso leis claramente atentatórias aos direitos e liberdades individuais. No final de 2001, começou a tramitar o Patriot Act, complementado no início deste ano pelo Patriot Act II. Suas implicações são enormes. “Segundo a seção 501 [do Patriot Act], um cidadão norte-americano pode, ainda que não pratique atos ilegais, ser detido na rua ou em casa, e submetido a tribunal militar sem notificação a um advogado, à imprensa ou à família”, diz o relatório do Project Censored.
As leis propostas por Washington foram fartamente noticiadas pela imprensa — mas os dispositivos que ameaçam as liberdades civis continuam ocultos. Mais uma vez, as exceções vieram quase apenas do universo da imprensa crítica: Global Outlook, Rense.com, PublicIntegrity.org. Entre a mídia comercial, houve alguma cobertura em Tampa Tribune e Baltimore Sun.
3. O sumiço de 8 mil páginas de um relatório iraquiano à ONU:
Apoiado em sua presença no Conselho de Segurança e em seu poder político, o governo norte-americano suprimiu a maior parte (8 mil páginas de um total de 11,8 mil) de um relatório submetido à ONU, no ano passado, pelo governo iraquiano. Os capítulos extirpados referiam-se ao período em que Washington colaborava com Saddam Hussein, na guerra do Iraque contra o Irã. Descreviam em detalhes como os EUA, naquele período, abasteceram Bagdá com armas químicas e biológicas, e construíram depósitos para elas. Além da própria Casa Branca, o relatório implicava grandes corporações, como Bechtel, Eastman Kodak e Dupont. Apenas duas pequenas (porém bravas) publicações cobriram o fato: Democracy Now e The Humanist and ArtVoice. O jornalismo comercial silenciou mais uma vez.
4. O plano de Donald Rumsfeld para provocar terroristas:
Em outubro de 2002, o repórter Chris Floyd contou, no sítio alternativo Counterpunch, a história dos destacamentos militares secretos que o Pentágono, sob direção do secretário Donald Rumsfeld, estava espalhando pelo mundo. “Os grupos foram apelidados ‘Pee-Twos’ (‘Pro-active, Preemptive Operations Groups’), e encarregados de desempenhar missões secretas destinadas a ‘estimular reações’ entre grupos terroristas, provocando-os a cometer atos violentos capazes de expô-los a ‘contra-ataques’ norte-americanos”, escreveu Floyd. Ele mesmo concluiu: se o plano der certo, “os Pee-Twos poderão ser usados sempre que [a Casa Branca] desejar acrescentar um território rico em petróleo, ou uma nova base militar ao portfólio do Império”. Apesar do apetite da mídia por tudo o que possa provocar medo em relação aos terroristas, a notícia não repercutiu nos “grandes” jornais. “É fácil entender o silêncio, quando se observa a ambigüidade moral da mídia – em especial no que se refere a possível cumplicidade dos EUA com crimes e assassinatos”, afirmou Floyd.
5. O ataque aos direitos dos trabalhadores e aos sindicatos:
Sempre na esteira da “segurança nacional”, e em aliança com as grandes corporações, o governo Bush serviu-se de velhas leis para limitar a atividade sindical. Em outubro de 2002 deu-se o caso mais importante. Uma longa e poderosa greve de estivadores da Costa Oeste foi interrompida por coerção judiciária, solicitada pela Casa Branca. Os ataques à ação sindical estão se multiplicando mas a mídia cala-se, relata o Project Censored. Como exceção, o estudo citou quatro reportagens que relataram, nos últimos doze meses, os ataques ao mundo do trabalho. Lee Sustar, autor de um dos textos citados, denuncia: “Há vinte anos, todo jornal tinha um repórter especializado em trabalho, atento a todos os fatos. Hoje, há apenas cobertura a partir do lado patronal”.
6. A tentativa de oligopolizar os serviços de internet:
Uma das principais características da internet – a multiplicidade de provedores de acesso, que praticamente impede o controle da rede – está sob ameaça, nos EUA e em outros países. Graças a seu poder econômico, e a medidas desregulamentadoras adotadas pela Comissão Federal de Comunicações (FCC, em inglês), as grandes corporações telefônicas estão exercendo concorrência desleal sobre pequenos provedores e levando-os à falência. O repórter Arthur Stamoulis mostrou, no pequeno Dollars and Sense, que a formação deste oligopólio é uma ameaça ao jornalismo independente que floresceu nos últimos anos, em parte graças à net. Nenhum jornal ou TV comercial interessou-se pelo tema. Ele permanece ignorado, num país em que dezenas de milhões de pessoas estão conectadas à rede.
7. A sabotagem, pelos EUA, de tratados e comissões internacionais:
Empenhados em construir uma ordem internacional em que nada possa se opor a seu próprio poder, os EUA estão trabalhando ativamente para sabotar tratados internacionais (entre eles, o Protocolo de Quioto, o Tratato de Proibição das Minas Terrestres e o Tratado de Não-proliferação da Armas Nucleares). Além disso, sua diplomacia elefantina paralisou o trabalho de comissões da ONU, como a Organização para a Proibição das Armas Químicas (OPAQ), de onde foi defenestrado o brasileiro José Bustami. Apenas quatro publicações independentes trataram do assunto. A mídia comercial protegeu a Casa Branca.
8. O uso ininterrupto de armas de urânio empobrecido:
Os índices de incidência de câncer explodiram no Iraque, a partir da primeira Guerra do Golfo, em 1991. Forças norte-americanas e britânicas usaram naquele conflito munições com urânio empobrecido. Elas ajudam a derreter a blindagem dos tanques. Depois penetram no solo, contaminam as fontes de água e as lavouras, são ingeridas pelo homem e… matam outra vez. Os EUA têm usado costumeiramente tais armas: duas vezes no Iraque, mas também no Afeganistão, em Kosovo, na Bósnia. Apenas três publicações contaram a história: duas independentes (The Sunday Herald e Children of War) e a revista pornô Hustler. Os jornalões não tiveram a decência de seguir seu exemplo.
9. O naufrágio do Afeganistão:
Quatro jornais independentes (The Nation, Left Turn e Mother Jones), mais um do “mainstream” (Toronto Star) visitaram o Afeganistão recentemente. Constataram os resultados da invasão norte-americana: aumento da pobreza, manutenção do poder dos senhores da guerra, repressão contínua contra as mulheres. Exceto por estes casos isolados, contudo, relata o Project Censored, o país “saiu das telas de radar da imprensa norte-americana”. Reese Erlich, que esteve durante três meses em Kabul e outras cidades, conta: “os repórterers não vão ao Afeganistão. Procuram os funcionários do Departamento de Estado, para que tudo flua através de lentes cor-de-rosa e a opinião pública se tranqüilize, imaginando que as coisas estão melhores. Mas elas não estão”…
10. A recolonização da África:
Em junho de 2002, os oito países mais ricos do planeta lançaram a chamada Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (Nepad, em inglês). Por trás do nome grandiloqüente há uma surpresa (parceria com quem, se nenhuma nação africana foi c
onvidada para ajudar a dirigir o esforço?) e uma suspeita. Após examinar as matérias publicadas por quatro publicações independente (Left Turn, Briarpatch e New Internationalist”), os responsáveis pelo Project Censored concluem: “O Nepad assemelha-se ao Plano Colômbia, em sua tentativa de empregar técnicas de desenvolvimento ocidentais para oferecer oportunidades de lucro a investidores internacionais”, diz. Também aqui, o jornalismo comercial passou em branco.
Vale, por fim, uma nota de ironia. Nos EUA, a “grande” imprensa privada censura também… a existência de censura. Existente há quase três décadas, o Project Censored jamais teve sequer seu nome citado, em respeitáveis jornais, como o “The New York Times”…
Publicado em Porto Alegre 2003: 11/12/2003