É pouco provável que alguém consiga entender a sociedade norte-americana sem passar por uma profunda análise da televisão e seu papel na mesma. Não há aqui a pretensão de tentar entendê-la completamente, mas existem algumas coisas patentes e que merecem alguma atenção.
Recentemente vi um filme com o ator Jim Carrey intitulado “The Cable Guy” (Ben Stiller, EUA, 1996), que no Brasil foi erroneamente traduzido para “O Pentelho”. São dois os motivos para tal equívoco: a falta de uma visão mais aprofundada dos tradutores e o próprio preconceito que sofre o ator.
Jim Carrey, como se sabe, é um ator pouco valorizado pela Academia por conta, basicamente, de seu ecletismo artístico. Sabe fazer rir e chorar em um mesmo quadro – e tal virtude nem sempre é bem aceita segundo a visão estreita e maniqueísta de Hollywood.
No filme, Carrey representa ´the cable guy´, cuja personalidade é quase que exclusivamente formada pela televisão. Por conta disso, constitui-se em um cidadão muito, muito doente. Sua obsessão maior não é pela tevê, e sim por arranjar a qualquer preço um amigo.
Uma das cenas mais fortes ocorre quando Carrey acaba por reviver boa parte da sua vida por meio de flashes de programas de televisão. As piadas demasiadamente doentias denunciam o que o ator Martin Sheen – que interpreta o presidente dos Estados Unidos no seriado “The West Wing” – chama de “terra de lunáticos”, se referindo ao próprio país. “Todas as vezes que cruzo essa fronteira [do Canadá], sinto ter deixado para trás a terra dos lunáticos”, afirmou Sheen em setembro de 2003.
Outro filme que abordou de forma brilhante o tema foi “Réquiem para um sonho” (Requiem for a Dream. Darren Aronofsky, EUA, 2000). O diretor percorre a vida de diversos personagens que se envolvem sobremaneira com seus sonhos e vícios. O fim é dramático para todos, inclusive para quem tem estômago fraco.
Entre os viciados, está uma senhora cujo grande objetivo de vida é aparecer em um programa de auditório. A obsessão vai crescendo de tal forma que a tevê acaba se tornando sua maior inimiga, o que a leva fatalmente à loucura. Seu filho, cujo vício está relacionado às drogas ilícitas, tem a melhor das intenções, mas falha em perceber que o que sua mãe precisava, de fato, era atenção e afeto.
Urge fazermos uma análise aprofundada sobre o sistema cultural do país que influencia grande parte do planeta. Na opinião do pensador francês Jean Baudrillard, de 74 anos e autor do famoso “Simulacros e Simulação”, a cultura americana é marcada por “dualismos maniqueístas”. E prossegue: “Um país que se construiu a partir das simulações, um deserto da cultura no qual o vazio é tudo. Os Estados Unidos são o grau zero da cultura, possuem uma sociedade regressiva, primitiva e altamente original em sua vacuidade”. [Revista Época, 07.06.2003]
Não se trata de demonizar toda uma nação, muito menos generalizar alguns aspectos pertinentes. Por mais que pareça, não é essa minha intenção – seria ignorância ou má-fé de minha parte. No entanto, as diversas análises que se faz sobre o tema apontam para a sociedade norte-americana como um caso importante para se interpretar um paradoxo pouco estudado.
A constatação me chegou por meio do pesquisador Evandro Vieira Ouriques, da Escola de Comunicação da UFRJ. Segundo o autor, vivemos em uma sociedade cada vez mais populosa e, paralelamente, a grande e mais fatal doença que nos atinge é a depressão.
Em outras palavras, as pessoas estão sofrendo de solidão em grandes e populosos c
entros urbanos; estão tristes mesmo com a multiplicação de programas de entretenimento. É no mínimo intrigante.
Estamos formando toda uma geração de lunáticos e empobrecidos de alma, já que a televisão é, nas palavras dos próprios produtores, um meio mais fluido e menos reflexivo que outros meios de comunicação. A tevê é como o próprio capital: ágil e dinâmico. Resta saber se os seres humanos, que possuem estruturas mais complexas que as técnicas de comunicação ou os números da economia, podem funcionar de tal forma.
Por outro lado, estou falando, obviamente, deste modelo de televisão que temos, e não da televisão em si. Tenho algumas experiências com ela que considero, sem dúvida, essenciais na minha formação ética e cultural. Para alguns seriados norte-americanos devo imensa gratidão, pois me ajudaram a entender importantes e profundas questões filosóficas que não são muito populares nas conversas da família ou nas salas de aula.
Também não podemos, como vão supor muitos, responsabilizar os sistemas educacionais cada vez mais caóticos. Certamente possuem alguma participação no conjunto do problema. Contudo, o fenômeno, como se sabe, não é exclusivo dos clientes mais fiéis do Fundo Monetário Internacional.
Creio que o escritor brasileiro Millôr Fernandes tem a melhor definição para o nosso maior problema: “Só depois que a tecnologia inventou o telefone, o telégrafo, a televisão, todos os meios de comunicação a longa distância, foi que se descobriu que o problema de comunicação mais sério era o de perto”. [Conversa com Adolpho Bloch em 1958]
Com a devida pesquisa sobre a influência da televisão na formação de cidadãos mais plenos, faz-se necessário a criação de uma alternativa viável para o atual modelo de televisão. Certamente nada como o que temos, porém um modelo que se vacine contra a monotonia e a excessiva moralidade politicamente correta, cujos resultados já se demonstraram largamente inócuos.
2 de janeiro, 2004
* Estudante de Comunicação da UFRJ e editor da revista Consciência.Net (www.consciencia.net)