Rua Dias Ferreira, Leblon, um dos “points” da dupla gastronomia-badalação carioca. Ali, no sexto andar de um singelo edifício, a História faz ninho. Acompanhado da mulher há 61 anos, Sra. Renée, Apolônio de Carvalho, 93 anos, sorriso estampado no rosto, recebe as visitas já no hall do elevador. A boa disposição confirma o título de sua autobiografia “Vale a pena sonhar”, agora transformada em DVD, onde é possível conhecer seus ideais e sua participação em prol de uma sociedade mais igualitária, contra o golpe do general Franco na Espanha, na resistência francesa contra Adolph Hitler na Segunda Guerra Mundial e nos duros períodos de clandestinidade ou exílio da sua terra natal: Brasil. (…) Por Roberta Araujo e Rodrigo Otávio para a Tribuna da Imprensa, 24 e 25/9/2005
Foram 93 anos de batalha, de lutas em nome da liberdade. Tanto que Apolonio de Carvalho é um dos pouco homens em todo o mundo que pode ostentar o título de “herói de três Nações”. Lutou contra Francisco Franco na Guerra Civil Espanhola. Depois, se juntou às Forças Francesas do Interior na resistência contra a ocupação alemã, na II Guerra. Por fim, sofreu nos duros períodos de clandestinidade durante a ditadura militar no Brasil.
Apolonio morreu no dia 23 de setembro de falência múltipla dos órgãos. Há duas semanas, Apolonio recebeu a reportagem da TRIBUNA em sua casa, no Leblon, para o que seria a sua última entrevista. Ele não se mostrava surpreso com a nova realidade petista. Apontou os erros que levaram o partido a passar pelo seu momento mais grave. Mas como todo socialista convicto, continuava acreditando não apenas nos seus ideais, mas que o PT sairia mais robusto do atual processo.
TRIBUNA DA IMPRENSA – Como o senhor avalia essa crise no PT, sendo o senhor a ficha número um do partido?
APOLONIO DE CARVALHO – Eu acho que não é bem uma surpresa o irromper da crise. O PT nasceu dentro de um conjunto de contradições. Uma dezena, pelo menos, de instâncias jurídicas diferentes que o compõem desde sua formação. Toda a vida política, toda a militância que vivemos no interior do PT, foi marcada por choques internos, contradições. Sempre nos respeitamos mutuamente, procuramos discutir, buscando, se possível, um consenso. Acho que a gente deve ver no problema da contradição uma condição-chave de abertura de caminhos, para reconhecer o que está certo e o que não está certo em nós.
Essa contradição é que causa a atual crise do PT?
Acho que, na realidade, não seria justo atribuir a influências externas essa crise interna.
A que o senhor a atribui, então?
Primeiro ao fato de que se cometeram enganos no trato da direção do partido no governo. Um certo número de dirigentes recebeu um campo extremamente amplo de atribuições e de poderes. Segundo: a ausência, por parte da direção e também do partido, de busca de mobilização da opinião pública partidária. Acho que também pesou muito a influência das alturas. Aí entram as ambições pessoais, vaidades.
O senhor citaria nomes dentro do partido que se encaixam nesse perfil?
Não gostaria de citar.
O senhor acha que, quando o PT chegou ao poder, esqueceu das bases?
Acho que as bases entram muito, muitíssimo, na história do partido. Nascemos na condição de produto direto, e ardorosamente desejado, de trabalhadores, de intelectuais. De figuras que desejavam uma organização profundamente ampla e também profundamente democrática. Acho que isso marca muito o PT na sua origem como o mais democrático dos partidos políticos até então existentes no País.
E o PT hoje, como o senhor vê?
(Renée, que acompanhava a entrevista) – O PT se burocratizou…
…Aí é o problema. O PT, ao nascer, nos seus sete ou oito primeiros anos, era um partido profundamente democrático. Um partido marcado pela ânsia e pela alegria do debate político por suas bases. Um partido que fazia a crítica do que não era justo nas direções e, ao mesmo tempo, contribuía nessa crítica com um espírito de convivência e de solidariedade muito exemplares.
O PT perdeu essa essência?
Acho que o PT não perdeu em si. Mas eu acho que uma das marcas, mudanças, no período que vem sobretudo de 90 para cá, é que as direções – e Renée já levantou essa idéia – tinham canais de contato e de debate fraterno. Mas, a partir de um determinado momento, se tornaram muito distantes, não por capricho pessoal deste ou daquele dirigente, e sim pela própria evolução da atividade partidária.
Como assim?
Por certas razões que, em si, representam um imenso passo à frente na visão dos objetivos e das tarefas que um partido político, sobretudo um partido político de trabalhadores de violenta cultura, tem. Durante muito tempo, o PT foi conhecido por certas vozes muito específicas, muito originais. Então, vocês vêem esses feixes de origens que compõem o PT inicial. E a partir de um determinado momento, o partido, que era a expressão dessas vozes, volta-se mais diretamente para o poder político.
E nesse salto, se distanciou da militância…
O PT faz o salto para a busca do poder político, para a participação nos poderes da República. Isto fez com que uma considerável parcela dos seus ativistas mais capazes e mais ardorosos fosse chamada para os conselhos municipais, para as assembléias legislativas, para o Senado e a Câmara. E isso não é acompanhado gradativamente pela discussão política com a massa de filiados. Isso fez com que houvesse um recuo, uma distância entre as direções e as bases. Isso que Renée lembrava como a burocratização do PT.
O senhor vê esses escândalos como o começo do fim do partido?
Há um coro das forças de oposição e de certa mídia raivosa em torno do que seria o velório do PT. Na realidade, muitos elementos, claro, estão bastante chocados por essas cores pesadas que tisnam a imagem da ética petista
. Uma tradição, uma trajetória… Há um certo desespero. Um presidente de partido de oposição, em um momento de intolerância mais cega, chega a chamar para “a eliminação da raça petista”. Sem se dar conta de que o PT tem 900 mil filiados, sem se dar conta de que o PT tem 300 mil ativistas entre esses filiados. E sem se dar conta de que com essa atitude se aproximava muito das fronteiras do genocídio.
O senhor acha, então, que o PT dará a volta por cima e Lula talvez até consiga se reeleger?
Eu penso que as grandes críticas em torno do PT se baseiam em visões falsas da coisa. Por exemplo: a confusão entre a parte e o todo. Há uma parte boa do PT, uma parte da grande massa dos militantes está estarrecida. Mas há uma reserva, um potencial de confiança. Sou dos que afirmam conscientemente, sinceramente, que a grande massa aspira a receber um sopro de confiança e de esperança. E, ao mesmo tempo, retomar a imagem original do partido. Penso que esse elemento está presente.
E a realidade política do País, hoje?
Acho que devemos, muito franca e sinceramente, reconhecer nossos erros. Acho que deixamos um projeto político de transformação da sociedade. Acho que as relações do Poder Executivo com o Parlamento, com o Judiciário, deviam ser bem melhores. Bem mais íntimas, mais capazes de aprofundar os problemas sem influir em outras preocupações corporativas, partidos ou coisa assim.
Como o senhor avalia o caminho das esquerdas no Brasil a partir deste desvio petista?
Acho que estamos dando os primeiros passos para repor uma imagem inicial do partido. E, ao mesmo tempo, os primeiros passos no sentido de dizer que, afinal de contas, não se pode ver apenas um lado da verdade. Há falhas, erros muito sérios, e continuaremos a ver muitos desses erros. Mas, ao mesmo tempo, há um anseio de transformações acontecendo.