Em 2007, completou-se uma década da publicação de um livro intitulado Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano, cujos autores são o colombiano Plínio Apuleyo Mendoza, o peruano Álvaro Vargas Llosa e o cubano Carlos Alberto Montaner. Nessa obra, os referidos escritores fazem uma apreciação sarcástica dos textos, ações e idéias pertinentes à luta das esquerdas na América Latina, embasada em um duvidoso humor, que busca ridicularizar todos aqueles que construíram, no século 20 a história da resistência contra as ditaduras e o liberalismo selvagem no continente. Livros assim conferem fama instantânea a seus autores. São leves, fáceis de ler e descompromissados com uma análise séria daquilo que pretendem simplesmente demolir, utilizando a velha tática da terra arrasada e jogando com os medos e preconceitos de uma classe média economicamente combalida — reforçando-os, e angariando novos soldados às suas pequenas tropas de elite de extrema direita.
Recentemente, os autores lançaram sua mais nova obra, intitulada O Retorno do Idiota em que prosseguem projetando seus piores medos e preconceitos contra aqueles que designam de idiotas — ou seja, quem não reza pelo código canônico do liberalismo econômico cego e fundamentalista. Em tempos em que o ateísmo entra na ordem intelectual do dia, através de obras como a do francês Michel Onfray (Tratado de Ateologia) e do britânico Richard Dawkins (Deus, um Delírio) a tríade de autores, que considera idiotas quaisquer manifestações oriundas da esquerda na América Latina, não vai além de uma profissão de fé, composta por palavras de ordem vazias, ironias e muito pouca informação real. Apesar de tendencioso e mal escrito, não podemos deixar de reconhecer que esse tipo de literatura propicia um conforto pseudo-intelectual aos chamados reacionários que, nas palavras de Norberto Bobbio, são aqueles que reagem ante a ruptura de uma ordem histórica sagrada, criada e conservada por uma providência imperscrutável. Religiosos e intelectualmente limitados, autores e leitores desses livros constituem uma tipologia que podemos reconhecer como o “Perfeito Idiota de Direita Latino Americano” que será, doravante, tratado como PID.
Uma das características mais importantes para se reconhecer um PID é a sua fé cega no mercado e a sua luta em prol da liberdade que este propicia. Ele acredita que a livre iniciativa nos torna mais iguais, porque cada um de nós sai do mesmo ponto e tem a capacidade de tornar-se um “vencedor” tão somente obedecendo a algumas regras fartamente distribuídas nos mal-escritos manuais de auto-ajuda que tanto consome – inclusive os que deram base a este artigo. O PID considera que só é pobre quem merece e, nesse instante, o pequeno Capitão Nascimento que habita dentro dele se corporifica nas telas de cinema e o tranqüiliza em relação a sua segurança. Intelectualmente, identifica-se com os ricos e poderosos, grupo do qual não faz parte, e que freqüentemente o despreza.
Mentes pequenas, que detestam qualquer rumor ligado mais à dúvida que às quimeras da certeza
Os leitores de Álvaro Vargas Llosa e seus dois valetes aprendem que Noam Chomsky, autor de vários livros nos quais critica a postura dos Estados Unidos nos processos de norte-americanização e exploração do mundo atual, é um idiota. Isso deve ser reconfortante às mentes pequenas, que historicamente sempre detestaram qualquer rumor intelectual calcado na mais dúvida do que nas quimeras da certeza. Também odeiam Harold Pinter, Nobel de Literatura em 2005, que afirmou em seu discurso de aceitação do prêmio que “Os Estados Unidos finalmente derrubaram o governo sandinista (…) Os cassinos voltaram ao país. Saúde e educação gratuitas acabaram. As grandes empresas voltaram com ímpeto” e Joseph Stiglitz, Nobel de Economia de 2001, segundo o qual “O Chile teve muito sucesso nos últimos quinze anos… [O país] introduziu controles de capital. Privatizou apenas parte de suas minas de cobre, e as minas privatizadas não tiveram um desempenho melhor do que as minas estatais, sendo que os lucros das minas privatizadas foram enviados para o exterior, enquanto os lucros das minas estatais puderam ser investidos nos esforços de desenvolvimento da nação” (International Herald Tribune, 14 de fevereiro de 2007).
O Le Monde Diplomatique é “a gazeta oficial dos idiotas latino-americanos e europeus” (sic), o jornal onde se “condena a globalização, se estigmatiza o mercado e se elogiam líderes “carnívoros” [1], tendo o seu editor Ignacio Ramonet — e conseqüentemente nós e vocês, leitores — irmanados na mais pura e idiota oligofrenia. Também são consideradas como “idiotas” a revista Le Nouvel Observateur, o livro de Eduardo Galeano, As Veias Abertas da América Latina. Enfim, toda e qualquer discussão que remeta à forma na qual espanhóis e portugueses mataram, espoliaram e escravizaram as populações pré-colombianas, os negros e todos aqueles que, nos alvissareiros tempos contemporâneos, insistem em lutar pela sua liberdade real e não aquela outorgada de forma parcial e leviana pelos donos do poder, que há séculos se beneficiam das desigualdade no continente.
É uma tática antiga e fascista, a de simplificar complexidades a fim de conquistar seguidores e agradar os discípulos do pensamento PID. É que nada que pareça em si muito difícil lhe é agradável; portanto, a solução de todos os males sempre tem uma causa única e uma solução rápida, eficiente e sempre muito pontual. Pelo discurso de Berlusconi e de toda a extrema-direita européia, basta expulsar os imigrantes e “endurecer” com essa gentalha que promove distúrbios e solapa a ordem para que tudo se resolva. O PID detesta tudo o que cheire a “baderna” e acha que esse negócio de direitos humanos é coisa de homossexuais. Aliás, a manutenção da ordem é sempre um apelo irresistível ao PID, que acredita que apontar tanques para as favelas seria uma solução viável, já que seus habitantes não passam de lixo não reciclável, algo desagradável que não demanda nem uma solução, sequer compaixão ou solidariedade, como bem lembra Luis Fernando Veríssimo em crônica de 29 de novembro publicada nos principais jornais do país.
Relações de poder, opressão e racismo seriam conversas de intelectuais, que complicam coisas muito simples
O PID pode ser perigoso, invejoso e cruel quanto mais esteja abaixo do padrão que considera ser o seu de direito. Ele é o “Zé Ninguém”, imortalizado por Wilhelm Reich em seu desabafo histórico. É o capitão do mato, o capataz da fábrica, enfim, todos os subtipos capturados pelas elites, que os usam para o serviço sujo, pois eles são fáceis de manipular. Sendo ganancioso e um pouco estúpido, logo serve como um perfeito idiota pronto para massacrar seus próprios irmãos, em troca da liberdade de escolher seu próprio mecanismo de endividamento, a fim de adquirir sua TV de plasma, seu notebook, seu celular e todos os brinquedinhos que o hipnotizam e sedam a sua capacidade crítica.
Existe uma literatura que é a predileta do idiota: a auto-ajuda, que confere o poder “do it yourself” de mudar a vida pelas próprias mãos, através de toneladas de frases e conceitos roubados de uma sub-física quântica, misturada a filosofias de botequim que o reforça em seu individualismo atroz [2]. A mensagem de todas as obras do gênero é só uma: convencer que fatores externos não são condicionantes de nossos problemas. Política internacional, relações de poder, opressão e racismo — tudo isso são conversas de intelectuais embriagados, que complicam coisas muito simples e consistem basicamente em manipular as forças do universo a seu favor. Quanta ilusão e quanto narcisismo envolvidos nesse processo de bestialização do PID e que truque perfeito pra desviar a atenção de todos para as realidades aborrecidas e complicadas do mundo contemporâneo. Na verdade, o PID odeia as ideologias sem perceber que está mergulhado nelas até o pescoço, porque são vendidas como naturais, lógicas e democráticas.
Devemos destacar a atualidade de Sérgio Buarque de Hollanda para entendermos um pouco do horror e do ódio cordial , que mantêm no Brasil, em pleno século 21, estruturas colonialistas de favorecimentos e sentimentos reativos em relação aos que não fazem parte da casa grande de Gilberto Freire. Poucos de nós possuímos condições de nos deitar na rede da varanda ao entardecer, com mucamas nos coçando as costas — mas como estamos arraigados nesse sonho! Como adoramos ter empregadas domésticas a quem tratamos como bestas de carga, como adoramos nos sentir diferentes e pertencentes a uma suposta casta superior. Como é fácil jogar com essas ilusões como um mecanismo fundamental de contenção, a fim de que nossos corpos sejam dóceis e nossas mentes sintonizadas nos confins do universo, que nos dará tudo aquilo que mentalizarmos com fé e perseverança… Como somos idiotas!
Uma crise social gravíssima que não ser minimizada com objetos de consumo e promessas de bem-estar restrito
O alvo de todas essas maquinações é sempre a parcela PID da classe média, que vive hoje, no Brasil, um processo de profundo esgotamento, capturada nas estruturas de mídia que vendem qualquer tipo de sonho em seis, doze e até trinta prestações. Igualmente enfrenta o colapso de seus valores materiais e morais mais caros, tais como o emprego estável, a casa própria, o carro do ano e o fato de ser um grupo formador de opinião, o sustentáculo de um pensamento que os muito ricos nunca tiveram e os muito pobres já não almejam. Desvalorizado e iludido com a promessa do paraíso do consumo, este setor da classe média se estupidifica a passos largos, em sua tentativa de resguardar o poder moral de ser o baluarte de uma cultura que já não permite construções sólidas em todos os sentidos, vide o conceito desenvolvido pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman de “Modernidade Líquida”.
As dificuldades cada vez maiores de inserção profissional e obtenção de ganhos pecuniários necessários a uma sobrevivência digna orquestram-se com o espetáculo das ofertas de produtos dispensáveis, que acabam tendo como efeito o consumir-se no próprio consumo, negligenciando e até mesmo ridicularizando outras formas de vida que ensaiam uma crítica e uma saída desse círculo vicioso. O pensamento torna-se cada vez mais escravo de teorias esdrúxulas e opiniões formatadas na mais pura tendenciosidade daqueles que se julgam aptos a diagnosticar as idiotices de quem ousa pensar para além de uns poucos clichês repetidos ad nauseum pelos representantes da Lumpem-Inteliggentzia de nossos tempos.
Só deixaremos de pertencer à casta do “Perfeito Idiota de Direita Latino Americano” no momento em que conseguirmos olhar para nós mesmos da forma como realmente somos, tarefa necessária, mas nem sempre agradável. E o que realmente somos é um somatório histórico de lutas e conquistas dentro de uma América Latina em que as esquerdas tiveram e ainda têm um papel fundamental com seus erros e acertos nas últimas décadas. Todos estes fatores estarão presentes por muito tempo em nosso continente e os inadaptados famélicos e todos os que estão na periferia do capitalismo continuarão a fazer ouvir a sua queixa, às vezes de forma incisiva, para muito além do admirável mundo novo dos profetas de gabinete que preconizam um darwinismo social excludente e cada vez mais sem disfarces. Há uma crise social gravíssima que não pode mais ser ignorada ou minimizada com objetos de consumo e promessas de um bem-estar restrito a grupos cada vez menores e temerosos de seus semelhantes.
Que Plínio Apuleyo Mendoza, Álvaro Vargas Llosa e Carlos Alberto Montaner, nossos companheiros latino americanos, representem o que existe hoje de mais atrasado em reflexão política e econômica internacional é algo preocupante. Que fornecem subsídios ao conformismo e à conivência das elites e de quem orbita em torno delas, com a desinformação cínica sobre o abismo econômico que atravessa os agrupamentos sociais contemporâneos, isso é um fato consumado. E é preciso ser um perfeito idiota de direita latino americano para não ver isso.
Mais:
Cláudio César Dutra de Souza e Sílvia Ferabolli são colaboradores do Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique.
Edições anteriores:
Por que ainda somos diferentes
Apoiado no fim do “socialismo real” e em certo desencanto com o governo do PT, o pensamento conservador alardeia o fim das fronteiras entre esquerda e direita. E no entanto, elas ressurgem em toda parte: por exemplo, na resistência ao Bolsa Família, às cotas nas universidades e à ação do MST
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Por que o Ocidente despreza o Islã
Nas simplificações grosseiras sobre o mundo árabe, a vítima oculta somos nós mesmos. Ao projetarmos sobre o outro nossa visão de atraso, intolerância e fundamentalismo, não enxergamos como estão sob ameaça os melhores valores de nossa civilização
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[1] Carnívoros e Vegetarianos são distinções que os autores utilizam a fim de escalonar os “graus de idiotice” observados na América Latina. Chavez e Morales, por exemplo, seriam “carnívoros”, pelo radicalismo de suas posições, ao passo que Lula e Michele Bachelet, atual presidente do Chile, seriam “vegetarianos” por terem, na concepção dos autores, se distanciado do esquerdismo mais radical e assimilado algumas regras fundamentais da economia de mercado.
[2] Nada do que foi escrito até agora supera o famigerado Segredo. Na chamada de tão auspiciosa obra lemos: “Ele viajou através dos séculos. Ele resistiu à passagem do tempo. Ele chegou até você”. Cremos que poucas obras superam essa em termos de boçalidade e exaltação a um individualismo pequeno-burguês. O grande segredo consiste em saber que nós e apenas nós somos responsáveis por todos os acontecimentos dessa vida; que nosso destino é habitar o nirvana capitalista; e, se isso não ocorre, adivinhem, a culpa é toda nossa! O livro, bem como o filme, tem pérolas do tipo “você não vai mudar o mundo, mas pode mudar a si mesmo” e outras babas do gênero, todas balizadas pelos testemunhos de eminentes sábios de todos os tempos que, supostamente, teriam posto em prática tão complexa sabedoria – obviamente todos mortos, a fim de não gerar processos judiciais…