Foi uma derrota anunciada. Quando a esquerda carioca se dividiu em cinco candidatos no primeiro turno da eleição da prefeitura: Jandira Feghali, do PC do B, coligado ao PSB; Alexandre Molon, do PT; Chico Alencar, do PSOL, numa aliança com o PSTU; Paulo Ramos, do PDT; e Eduardo Serra, do minúsculo PCB; subestimava os 16 anos de domínio da direita no Rio.

Privilegiaram-se interesses partidários e meramente parlamentares em detrimento da unidade democrática e popular.

A conta chegou rápida e bem amarga: a esquerda ficou fora do segundo turno enquanto dois candidatos de grandes esquemas políticos conservadores decidem a eleição. Eduardo Paes, hoje na banda mais conservadora do PMDB, em coligação com PP e PTB; e Fernando Gabeira, filiado ao PV, mas representante de fato do PSDB, e apoiado pelo PPS, partidos da oposição de direita ao governo Lula. Some-se a Gabeira, no segundo turno, o apoio do desgastado prefeito César Maia, do DEM, que apresentou candidata própria na primeira volta eleitoral.

Paes, o defensor de milícias
O melhor colocado na fase inicial da eleição, Eduardo Paes, com cerca de 32% dos votos válidos, é uma cria política do prefeito César Maia. Iniciou sua vida pública como subprefeito da região da Barra da Tijuca, com atuação benéfica à especulação imobiliária e oposta às comunidades pobres da área.

Hoje Maia e ele se detestam, o que não impediu que diversos vereadores ligados ao DEM já o apoiassem desde o primeiro turno. Os partidos não contam para Paes. Em dezesseis anos de vida pública, já trocou de siglas seis vezes, passou pelo PV, PFL, PSDB, PTB e agora está no PMDB. Considera os partidos um detalhe, a ponto de no seu “site” de campanha não haver sequer menção ao PMDB, mas apenas ao número 15, só porque imprescindível ao voto do eleitor.

É o candidato da despolitização, tudo se resume à gerência de demandas locais, atendidas de maneira clientelista. Apresenta-se numa embalagem ao gosto conservador, em que sisudez se confunde com “seriedade” e gestão pública com administração empresarial.

Mas Paes não se resume à aparência de bom-moço inodoro. Em entrevista ao RJ-TV, da Rede Globo, defendeu a ação de milícias, isto é, de grupos de extermínio: “como forma do Estado recuperar sua soberania, a polícia mineira trouxe tranqüilidade para a população”, disse enfático.

Na questão da segurança, Paes tem, portanto, identidade com o governador Sérgio Cabral, seu atual mentor e cabo eleitoral, promotor da criminalização da pobreza. É a política do “caveirão”, veículo policial blindado semelhante ao usado pelo “apartheid” na África do Sul. Estudo divulgado em setembro pela ONU aponta a polícia do Rio como a que mais mata no mundo, adepta da violência indiscriminada contra a população carente.

Apesar de defender execuções sumárias, Paes recebeu apoio oficioso e eficiente da hierarquia da Igreja Católica contra o senador Crivella, do PRB, coligado ao PR (ex-PL), mas de fato candidato de uma organização religiosa, a Igreja Universal, que chegou em terceiro, com aproximadamente 19% dos votos válidos. Na campanha do candidato de Cabral participam também grupos obscurantistas da Igreja Católica, como o Opus Christi.

O vice de Paes é um ex-militante de esquerda, com passagem pela luta armada, Carlos Alberto Muniz, há muito representante do ex-governador Moreira Franco no PMDB.

Gabeira, a fachada do PSDB
Existe uma onda Gabeira no Rio, que o levou ao segundo turno, com cerca de 25,6% dos votos válidos, e agora já o aponta na liderança das pesquisas. Quais as razões dessa onda?

Sem dúvida se deve a fatores diversos, mas joga papel principal a identificação de Gabeira como candidato contra os políticos. Imagem criada na sua maior parte pelo bate-boca entre ele e o então presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcante (PP-PE), difundida à exaustão pela Rede Globo, com inserções diárias no Jornal Nacional.

A cobertura generosa dada a Gabeira pela Globo fala por si só. Enquanto parlamentares com posições mais democráticas e vínculos populares são sistematicamente ignorados, a emissora – e, por extensão, a quase totalidade da mídia, de natureza conservadora – vende a idéia de que todos os políticos não prestam. À exceção, claro, de políticos salvadores da pátria, apresentados como não-políticos, a exemplo de Collor, “o caçador de marajás”, bordão veiculado de modo intenso.

O episódio Severino Cavalcante cumpriu função semelhante para Gabeira. Na sua propaganda eleitoral, ele reforçou o mote de apresentar-se contra os políticos, logo honesto. Soa como música aos ouvidos de um eleitorado em que se martela o tempo todo a mesma idéia pelos meios de comunicação.

O complexo de mídia Globo (integrado também na própria capital fluminense por televisão, rádios e jornais) se revelou igualmente importante na passagem do candidato ao segundo turno. Empenhou-se em fortalecer a tendência de que, para impedir o pastor Crivella, da Igreja Universal, dono de eleitorado grande e cativo, mas campeão de índices de rejeição, Gabeira seria a opção. Ele faz por merecer tanto apoio da Globo e de amplos setores de direita.

Posições políticas conservadoras
Já se alinha a posições políticas conservadoras há bastante tempo. Votou pelo fim do monopólio estatal do petróleo. Não à toa um dos dirigentes da sua campanha é David Zilberstein, ex-genro de FHC, e ex-Diretor-Geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP). Quando no cargo, Zilberstein convocou executivos das multinacionais. Ao terminar seu discurso no encontro, fez questão de provocar o povo brasileiro, dirigiu-se aos executivos e proclamou: “O petróleo é vosso!”.

Gabeira apóia privatizações com freqüência. Votou também a favor da contra-reforma da Previdência, que retirou direitos dos trabalhadores. Considera um modelo a gestão tucana de Aécio Neves em Minas. A permanente e exacerbada oposicionista de direita Lúcia Hipólito vai ao delírio, qualifica Gabeira de “a face mais avançada da esquerda mundial”. E Veja, o panfleto de direita em forma de revista semanal, o chama “um guerrilheiro da lucidez, a materialização das utopias”.

O teor dos disparatados elogios é reproduzido orgulhosamente no “site” de campanha.

Como se vê, a conversão na prática de Gabeira aos tucanos não é episódica, casual, sintetiza na verdade o alinhamento com o conservadorismo político, escamoteado pelas posições dele sobre comportamento e toda a ação da mídia por trás de sua candidatura.

Rede Globo impede debates no primeiro turno
No Rio, segunda cidade brasileira, a Globo, de maneira inédita, com desculpas fabricadas, impediu a realização de debates televisivos entre os candidatos no primeiro turno. Sem dúvida ato contra o esclarecimento da população, de influência no resultado das urnas. Comparável em termos de golpe, numa escala menor, à tentativa de fraude da Proconsult, patrocinada pela mesma Globo na eleição de Brizola, em 1982.

A ausência de debates se repetiu em outras nove grandes cidades do país, inclusive a maior delas, São Paulo, e outras três capitais. Dá o que pensar: a Globo é uma concessão pública do governo ou é o contrário, o governo é que é uma concessão da Globo?

A inexistência de debate no Rio só favoreceu ainda mais a despolitização da eleição e o reforço do sentimento de que Gabeira é o cara (para usar a gíria carioca) contra os políticos. Ele é o candidato da coligação PV-PSDB-PPS. Está no PV, mas já foi do PT, ficou sem partido e pulou de novo para o PV.

Um PV aliado da direita
Além de simpática, a causa ecológica
é imprescindível. Mas o PV, no Brasil, tem estranhas características. Em geral, no resto do mundo, os verdes se unem à esquerda, aqui as alianças preferenciais ocorrem com a direita conservadora.

O verde Syrkis participou do secretariado de César Maia e foi um dos seus defensores mais ardorosos. Agora em Natal, Agripino Maia (aquele senador do DEM que acusou a ministra Dilma de não falar a verdade sob tortura) acaba de ganhar a eleição para a prefeitura com a fachada de uma fantoche “verde”, a Mi Carla. Agripino Maia é a cara escarrada do DEM (nome de fantasia do velho PFL), o coronelismo mais retrógrado do Nordeste.

O deputado federal Chico Alencar , do PSOL, também candidato no primeiro turno à prefeitura carioca, observa de maneira irônica: “Não há como negar que a candidatura Gabeira é ecológica. Salvou os tucanos do Rio da extinção”.

Os outros dois partidos da coligação de Gabeira, PSDB e PPS, fazem parte da oposição de direita ao governo Lula, agora unidos a César Maia e ao DEM no segundo turno. Numa tentativa de minimizar as críticas às suas atuais posições políticas, agradáveis aos conservadores, voltou a falar de seu remoto, antes negado, perdido no túnel do tempo, passado de esquerda, de participação no seqüestro do embaixador americano.

Na primeira página, O Globo chegou a mostrar foto dos 15 presos políticos libertados no seqüestro, destacar a figura de Vladimir Palmeira, e apontar sua “ingratidão” a Gabeira: como atual dirigente do PT, Vladimir recomendou apoio a Paes no segundo turno. Quem diria… O Globo, sempre empenhado em defender a ditadura, caluniar revolucionários, apresentar o seqüestro sob ângulo positivo.

Milionária campanha tucana
A campanha milionária de Gabeira em nada fica a dever à campanha de Paes. Bancada pelos tucanos, empreiteiras e bancos, tem nada menos que o especulador Armínio Fraga -recordista da elevação da taxa de juros quando ex-presidente do Banco Central no governo FHC – como seu garoto-propaganda no horário eleitoral. O ex-governador Marcello Alencar, do PSDB, rei das privatizações no Estado do Rio – feitas em parceria com o ex-presidente da Assembléia Legislativa, o atual governador Sérgio Cabral – indicou o seu ex-vice, Luiz Paulo, também tucano, para vice de Gabeira.

A oposição de direita ao governo Lula aposta suas fichas em Kassab, em São Paulo, e em Gabeira, no Rio. O senador pernambucano Sérgio Guerra, presidente nacional do PSDB, espera infligir grandes derrotas ao governo Lula com vitórias eleitorais nas duas maiores cidades do país.

Publicado originalmente no portal da Agência Carta Maior (www.cartamaior.com.br)