Na madrugada do dia 12 deste mês, faleceu na França o filósofo e militante revolucionário Georges Labica, vitimado por uma hemorragia cerebral. O enterro será no dia 17 de fevereiro, no cemitério de Le Pecq, pequena cidade próxima a Paris, onde ele e sua mulher, Nadya, residiam.


Para mim, ainda é muito difícil falar sobre isso. Seu desaparecimento me toca de maneira muito profunda. Ele foi meu orientador de pesquisas, um enorme e carinhoso amigo, um mestre e um marxista consistente, um militante revolucionário de todas as causas populares, em todo o mundo.


Nascido em 1930, Georges Labica era um intelectual de primeira linha no campo do marxismo. Filósofo, foi durante muitos anos professor de filosofia política e de teoria marxista em Nanterre, na Universidade de Paris X. Dirigiu um grupo de pesquisa: o Laboratório de Filosofia Política, econômica e social – apoiado pelo Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), cujo perfil era extraordinário. Reunia professores e pesquisadores de diversas áreas e promovia cursos, pesquisas e debates sobre temas centrais para a
Filosofia Política.

 

Tive a felicidade de participar desse grupo de maneira direta durante quatro anos e, indiretamente, depois de meu retorno ao Brasil. Conservo desse período aprendizados fundamentais e uma das mais ricas experiências de minha vida. Georges Labica acolhia também estudantes. Algumas vezes, como no meu caso, sem exigir sequer uma ligação formal institucional, apenas pela proximidade intelectual entre as pesquisas. Nesse Laboratório, sob a direção de Georges Labica, aprendi que era possível fazer um trabalho coletivo. Não era fácil nem simples, até porque remávamos contra a corrente de um neoliberalismo agressivo e destrutivo.

 

A coordenação que Labica imprimia ao trabalho da equipe permitiu prolongar a existência desse espaço internacional de resistência e de luta. Assim, assegurou a permanência de um horizonte comum, de um campo teórico e prático coletivo – o marxismo – onde os debates eram francos, abertos e diferentes concepções se afrontavam. O rigor e a seriedade intelectuais eram pré-condições, sem concessões para ecletismos facilitadores que começavam a entrar na moda.


Sua generosidade era enorme e, da mesma forma como me abrigou no Laboratório, me abriu as portas de sua casa. Assim, pude conhecer e tornar-me amiga de Nadya Labica, sua bela e corajosa mulher, e de Pierre e Thierry Labica, seus filhos. Imagino a dor que experimentam nesse momento e o único consolo que posso lhes oferecer é o de que muitos, como eu, choram com eles essa perda em todo o mundo.


Labica foi um pesquisador ao longo de toda a sua vida. Um pesquisador com coragem para enfrentar o desafio do rigor conceitual, jamais perdendo entretanto a reflexão histórica. Suas primeiras e portentosas pesquisas – infelizmente ainda não traduzidas para o português – foram sobre Ibn Khaldum, pensador muçulmano nascido em Túnis em 1332 e falecido no Cairo, em 1406, autor de uma das mais formidáveis obras de ciências sociais – os Prolegômenos – e sobre Ibn Tufayl, sábio e literato nascido em Granada no século XII que, após ter sido secretário do governador de Granada, tornou-se amigo, médico e vizir do segundo soberano da dinastia dos almôadas, em Marrakesh (Marrocos).

 

Labica consolidava então as batalhas que já travara diretamente contra a dominação francesa na Argélia, estreitando os laços que conservaria toda a sua vida: um profundo respeito intelectual que não se limitava às fronteiras européias. A clareza de que o universalismo que o marxismo exige é mais
amplo e extenso do que o colonial-imperialismo no qual se comprazem as classes dominantes de todo o mundo, embaladas por seus epígonos.


Pesquisador, intelectual, filósofo sim. Mas sempre engajado no combate por uma sociedade sem classes e por uma prática coerente com o pensamento revolucionário. Publicou mais de quinze livros, dentre os quais o mais conhecido no Brasil é “As teses sobre Feuerbach de Karl Marx”, publicado pela editora Jorge Zahar. E também o portentoso dicionário, organizado por ele e G. Bensussan: “Dictionnaire Critique du Marxisme” (Dicionário Crítico do
Marxismo), sem tradução.

 

Organizou, dirigiu e coordenou mais de 50 livros, sem falar de uma enorme quantidade de artigos publicados em livros, revistas e em sites da internet. Um de seus últimos artigos, impactante, O Mini-mercado (La Supérette), está disponível em português em http://www.odiario.info/articulo.php?p=1008&more=1&c=1.

 

Seus dois últimos livros são  Démocratie et Révolution (Democracia e Revolução), de 2002 e Théorie de la Violence (Teoria da violência), de dezembro de 2007. Neles, reafirma sua profunda convicção democrática. Mas não se deixa distrair ou enganar por uma forma política na qual a democracia é apenas uma possibilidade, onde predominam a violência e a repressão, sufocando e reprimindo os movimentos verdadeiramente democráticos.


Labica afirma a inexistência de contradição entre democracia e revolução e conclui assim seu último livro: a mundialização, como associação de malfeitores e de malfeitorias pode ser
vencida. Um pouco de prospectiva: de sua derrota, sairá a democracia que, se ela não significa, e não pode significar, o fim de toda a violência, reduzirá consideravelmente, senão totalmente, o ciclo violência/sofrimento/violência que permitiu sua realização. Para esse fim, revolução e democracia têm de se impor como indissociáveis: a democracia, a nossa por exemplo, injusta e desigual, levada até a revolução e a revolução, nesse papel inédito, realizada até uma democracia de produtores iguais. Se impõem nessa direção, e isso constituiu o fio de meu propósito geral, algumas medidas, que somente parecerão utópicas aos ricos satisfeitos, aos assujeitados voluntários e aos que perderam a força de lutar: fim de toda a ocupação de territórios, fim das ingerências políticas, militares ou humanitárias; supressão das forças armadas; fechamento das prisões. Em outras palavras, a paz libertadora no lugar da violência sistêmica. (Theorie de la Violence, Nápoles, La Città del Sole e Paris, J. Vrin, 2007, p. 261).

Militante coerente, em muitos momentos assumiu suas divergências com o Partido Comunista Francês, no qual militou durante muitos anos. Assim foi em 1968, quando considerou a direção do partido incapaz de compreender o que ocorria na França; em 1979, quando publicou juntamente com Etienne Balibar, Guy Bois e J.-P. Lefebvre o livro “Ouvrons la fenêtre, camarades!” (Abramos a janela, camaradas!) como intervenção ao XXIII Congresso do PCF. Finalmente, o que restava do PCF não mais comportava um intelectual como Labica e ele, para sempre um comunista, quedou, como muitos outros, sem partido. Prosseguia, entretanto, na luta revolucionária: na atuação permanente contra a atuação do imperialismo, na defesa da Palestina, do Iraque, da América Latina, da África. Tinha a clareza que somente na luta contra o capital haveria a possibilidade do florescimento de uma verdadeira democracia.


Mas não apenas. Para além do âmbito universitário e do PCF, Georges organizou e participou da organização de inúmeras atividades, na França e em inúmeros países, denunciando os massacres sobre as populações e criticando a ingerência violenta e destrutiva dos países imperialistas no mundo. Jamais se furtou a socializar seu enorme conhecimento e participou de inúmeras atividades de formação, de debates, defendendo as posições revolucionárias nos mais variados quadrantes do mundo. Apenas como exemplo, foi um dos organizadores do formidável encontro, em Paris, que anunciou a retomada de Marx – os 150 anos do Manifesto do Partido Comunista, em 1998.

 

Contribuiu para a formação do Espaço Marx, infelizmente de curta duração, com o objetivo de assegurar um debate amplo, aberto e rigoroso, em torno das diversificadas expressões do marxismo mundial. Seria impossível listar todas as suas intervenções nos mais diversos países
do mundo. Me limito a mencionar aquelas onde nos encontramos – em Cuba, na Venezuela, na Itália, na França, no Rio de Janeiro.

Veio ao Brasil diversas vezes, apresentando conferências em diferentes universidades, sindicatos e movimentos sociais. Esteve na Universidade Federal Fluminense três vezes, a primeira em 1996, apresentando uma conferência sobre a questão democrática. Em 1999, quando realizou palestra em evento internacional organizado pelo Departamento de História. E, dois anos depois, participou de debate organizado pela Associação Docente da Uff, Aduff. Além de outras atividades com movimentos sociais, realizou memorável conferência na inauguração da Escola Nacional Florestan Fernandes-MST, em 2005, expondo sua experiência na formação de quadros.


O mundo perde um grande homem, pela erudição, pela coragem, coerência, por sua enorme produção intelectual e por sua prática em defesa do comunismo. Uma pessoa de rara afabilidade, de enorme capacidade de compreensão e de amizade, com enorme gosto pela vida. Sua memória será conservada em todas as lutas que travamos.