[Por Euro Mascarenhas*]

Em programa sobre a luta das associações de bairros e moradores na década de 1980, o Quintas Resistentes recebeu duas grandes figuras que sintetizam bem o que foi este período: Almir Paulo; ex-presidente da Federação das Associações de Moradores do estado do Rio de Janeiro (Famerj) – 1987 a 1989; e Paulinho da Rocinha; ex-dirigente da Associação de Moradores da Rocinha e que atuou na reconstrução da Faferj entre 1977 e 1979.

A condução ficou com as apresentadoras Jéssica Santos e Gabriela Gomes, que juntamente aos entrevistados passearam pelas memórias de luta e resistência das organizações de favelas, que mesmo entre os anos 1970 e 1980 tinham que lidar com a opressão da ditadura.

As primeiras movimentações

Almir e Paulinho explicaram o contexto que as organizações de moradores precisavam lidar em 1975, quando o Estado do Rio de Janeiro era governado por Chagas Freitas, aliado da ditadura, e colocava interventores nas associações das favelas. “A gente lá na Rocinha se ligou que tinha de fazer alguma coisa, porque a associação de moradores não fazia absolutamente nada”, comenta Paulinho. Ele também comenta como passou a se engajar na luta comunitária, e também como se filiou ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), “um amigo me deu uma revistinha e queria saber o que eu achei, ele só pediu o favor de que eu queimasse, rasgasse, sumisse com a revista depois de ler. Eu falei: gente! O que isso!? (risos)”.

Nesta época as favelas já lidavam com problemas de remoção, incêndios criminosos e até mesmo controle de água por parte de milícias. Almir vai iniciar sua militância na Cidade de Deus, um engajamento que envolvia teatro e futebol, “o pessoal virou para mim e falou: aqui ninguém nunca foi ao teatro, então alguém tem que ir para saber como funciona o teatro, e tem que ler sobre teatro. E aí sobrou para mim”, afirmou. A decisão do grupo levou Almir a escrever e dirigir peças, e na sua busca por saber como se faz, ele foi até uma biblioteca e descobriu o livro “1001 maneiras de se fazer teatro”, de Augusto Boal.

Ao criar a Famerj em plena ditadura as associações de moradores nas favelas passam a ser um canal expressivo de participação política, mas também um viés de conscientização e formação dos próprios moradores, “quando você começa a lutar para asfaltar uma rua, criar uma creche, ter saneamento, tampar um buraco, esse momento é significativo na história porque é a hora que você começa a perceber o seguinte: por que eu não tenho isso?”, afirmou Almir.

Por conta da sua atuação na Rocinha, Paulinho perdeu as contas de quantas vezes chegou a ser levado para a delegacia do Dops no Rio de Janeiro, no entanto, contava com a ajuda de advogados, como o famoso Sobral Pinto. Estas perseguições ao grupo não impediam que eles fossem adiante no propósito de gerar melhorias para a comunidade. Nas assembleias da associação de moradores local conseguiam reunir mais de 500 pessoas, na busca de soluções para os seus problemas, “a presença do Estado na favela em 1970 era uma, e a presença do Estado na favela em 2021 é mesma! Se você traçar um paralelo entre esses dois períodos, e perguntar aos moradores qual é a presença do Estado, eles vão te responder: a Polícia e a sua forma de atuação truculenta. É a mesma forma de agir, pior, se ampliou o racismo nessas ações”, comentou Paulinho.

Comunicação popular: um braço importante    

A preocupação em tornar o processo de tomada de decisão dentro dos movimentos comunitários transparente, em oposição ao que fazia a ditadura, criar experiências de comunicação popular foi uma base importante deste processo. Paulinho falou sobre o jornal Tagarela, porta voz das ações do grupo na Rocinha, e que se tornou uma inspiração para as gerações seguintes de comunicadores populares da favela. “Era a nossa forma de proteção, a gente precisava dialogar com o povo, falava a realidade da favela, a linguagem da favela, com muita crítica a condição de abandono que a gente vivia”, afirmou.

O jornal era rodado em mimeógrafo e despertava o interesse dos moradores que queriam receber em suas casas, ele também contava com apoio da Organização Fase. O Tagarela convocava as pessoas para as reuniões da associação, divulgava as quermesses feitas pela igreja, o torneio de futebol local, campanhas de saúde que alertavam os moradores sobre iniciativas de esterilização das mulheres.

Ainda hoje, vale à pena apostar na comunicação popular como um braço importante da luta comunitária. Atualmente uma das principais formas de militância de Almir é levar adiante o jornal Abaixo-Assinado, veículo que se mantem há 16 anos, voltado para as comunidades da Baixada de Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio. “Eu me orgulho muito de participar do jornal. É um desafio permanente colocar esse jornal na rua todo o mês”, falou Almir. O Abaixo-Assinado é fruto de militantes da região, mostrando as principais questões que os coletivos locais enfrentam no seu dia a dia.

Para Paulinho é preciso questionar: onde nos perdemos na comunicação popular? “Eu me ressinto muito hoje desse debate nas comunidades, a gente perdeu o debate sobre a disputa pela terra, pelo projeto de urbanização, sobre a cidade que queremos”, declarou. Ele também reforça a necessidade de voltar o trabalho de comunicação dentro das favelas a fim de retomar estes territórios.

Veja a entrevista completa:

[Euro Mascarenhas é jornalista e membro da Rede de Comunicadores Populares do NPC]