No dia 26 de maio, O portal Conexões Periféricas-RP, com o apoio do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) propuseram um diálogo sobre a organização e luta das trabalhadoras e trabalhadores informais e por aplicativo.

Cabe salientar, que três dias após esse debate, no dia vinte e nove, sucederam copiosas manifestações por todo o país. Centenas de milhares de pessoas demostraram suas indignações para com o governo de Jair Bolsonaro (sem partido). Aceleração do ritmo da vacinação, valorização da educação e do sistema único de saúde (SUS), políticas públicas contra o desemprego, melhores condições de trabalho para trabalhadoras(es) informais e por aplicativo. Foram algumas das reinvindicações propostas nas passeatas.

Em decorrência das pautas socias da atualidade, o tema proposto para o debate, mostra-se imprescindível para as classes de trabalhadoras e trabalhadores contemporâneos. Para dialogar sobre possíveis avanços para essas categorias, convidamos a integrante do movimento unidos pelos camelôs (MUCA) Maria dos camelôs, o trabalhador por aplicativo Rafael MT, o motorista por aplicativo Livio e o trabalhador por aplicativo Rennan Resende.

Repressão como política de Estado

Maria dos camelôs, inicia sua explanação apresentando as dificuldades diárias vivenciadas por essas trabalhadoras(es), destacando as medidas repressivas utilizadas corriqueiramente pelas forças de segurança do Estado. Além de evidenciar a importância dos movimentos sociais no auxilio e representatividade para essas pessoas.

Sobre isso, asseverou Maria dos camelôs:

Trabalho nas calçadas da cidade há 26 anos, sou coordenadora do (MUCA) que é o movimento unidos pelos camelôs, que passa a existir a partir de 2003, depois que eu sou agredida pela guarda municipal. Após eu ter tido um parto cesariana e ter ficado nove meses na rua trabalhando grávida, eu engravidei em 2002 e meu filho nasceu em 18 de março de 2002, 15 dias após a esse parto, eu fui agredida pela guarda municipal. Fiquei muito machucada, depois a gente organizou o (MUCA) que esse ano, completa 18 anos.

Ainda no que concerne a repressão imposta pelo Estado, Maria dos camelôs salienta o aumento das medidas repressivas com a chegada dos grandes eventos esportivos na cidade. Quanto a isso, Maria dos camelôs verbaliza:

A gente passou por várias coisas nesse tempo, de perseguição mesmo. Começou com o governo César Maia, uma perseguição muito grande contra os camelôs. Depois, entra o Eduardo Paes com o choque de ordem, nós tivemos muitos eventos no Rio de Janeiro, tivemos o panamericano que foi uma limpeza mesmo da cidade, depois a copa do mundo no Brasil e olimpíadas no Rio de Janeiro. Então, nós fomos atacados, o Eduardo Paes entra massacrando os trabalhadores(as), sem respeitar as pessoas e a gente sempre batendo de frente. Eu costumo dizer que se não fosse o movimento unidos pelos camelôs, que a gente realiza há 18 anos, o Eduardo Paes tinha exterminado os camelôs dessa cidade. E depois entrou o Crivella, também com uma perseguição muito grande.

Outro participante desse diálogo, foi o trabalhador por aplicativo Rennan Resende Fernandes, que expôs as incertezas desse modelo de trabalho, a vulnerabilidade desses trabalhadores(as) e a inexistência de qualquer tipo de assistência. Além de relatar uma situação de violência realizada pelo Estado contra esses entregadores(as).

Quanto a isso, Rennan Resende retratou:

Eu trabalho com aplicativo atualmente, sou entregador há pouco mais de um ano. E depois de certos acontecimentos, eu comecei a lutar por mais direitos para os entregadores(as). Pegando a fala da Maria, sobre a guarda municipal, eu sempre via o descaso com os camelôs, mas nunca pensei que isso aconteceria também com os entregadores e trabalhadores(as) de aplicativo, foi uma ocorrência que aconteceu no Catete, no Largo do Machado. Final de noite, por volta de 22:00 horas, a guarda municipal chegou e começou a multar os entregadores(as) por conta das bicicletas que estavam no meio do caminho, atrapalhando a passagem. Eu super entendo, mas o que falta a prefeitura é a infraestrutura de onde colocar as bicicletas, possuir bicicletários públicos nos locais. Aconteceu uma discussão, entres os entregadores e a guarda municipal e foi respondido a porrete, gás lacrimogêneo, dois entregadores foram presos e muitos multados. Eu fiz toda a gravação do ocorrido e sai ferido.

Tais considerações, apontam para uma política estrutural de repressão. Diferentes governos, com diferentes lideres, adotam políticas públicas parecidas, trabalhadores(as) de distintas categorias relatam situações correlativas. O debate proposto, expressa a realidade de trabalhadoras(es) que convivem diariamente com essa estrutura repressiva, um diálogo reflexivo e construtivo visando modificar essa estrutura de precarização e cerceamento.

Aplicativos e o cotidiano de incertezas

Outro aspecto fundamental para esse debate, é a relação entre o trabalho e direitos. Com o surgimento dessas novas plataformas, as relações empregatícias passam por notáveis transformações. Acompanhamos um processo de corrosão da legislação protetora do trabalho, garantias e direitos estão sendo preenchidos pela avidez da exploração. Diante de todo esse cenário, Rennan Resende explica a maneira que ele e outros entregadores(as) encontraram para reivindicar melhorias.

Referente a isso, Rennan Resende asseverou:

Eu e um grupo de colegas trabalhadores(as), fundamos a associação de entregadores do RJ, visando a categoria de bicicleta. Hoje em dia, eu procuro junto a prefeitura uma infraestrutura melhor, começando do pouco, do básico. Seriam mais ciclovias, mais bicicletários, para não acontecer o que acontece quase todos os dias, que é entregador sendo multado nas ruas, entregadores(as) sendo linchados e ninguem vendo. Uma tenda em praça pública em nome dos entregadores(as), para que em dias de chuva nós tenhamos onde ficar. Imagina o medo do entregador(a): Você ver a tempestade chegando, você quer ficar na sua casa, num lugar quente, uma roupa confortável. Mas você precisa ficar ali, no escuro, à noite, fazendo entregas para longe, as vezes você não tem nem equipamento para isso, você não tem uma roupa adequada para pegar chuva, você fica resfriado. São coisas que eu tento diariamente mudar.

Pandemia e o aumento da precarização

Inquestionavelmente a pandemia causada pela covid-19 afetou todos os setores da sociedade, um vírus letal, com um alto poder de contagio. O que certamente iria transformar as relações pessoais e trabalhistas. Somado ao negacionismo e descaso promovido pelo governo federal, algumas categorias foram diretamente impactadas com o agravamento da precarização trabalhista. Ralf MT explicita a luta sistemática contra iniquidades: 

Parei de trabalhar nas feiras e fui trabalhar como motoboy, assim que eu entrei, bem antes da pandemia, era razoável. A gente já via injustiças, principalmente em relação a acidentes, no qual nenhum entregador tem direito a nada. E eu já fui buscando esse lado de luta, entrou a pandemia, cada aplicativo fez uma campanha diferente, campanhas iguais, mas com nomes diferentes. Com o intuito de só prejudicar a vida do entregador, estamos na luta para tentar mudar esse quadro. Infelizmente, há uma desunião imensa entre os próprios entregadores(as), os aplicativos amam essa desunião.

Outro convidado para esse diálogo, foi o motorista por aplicativo Lívio, ele menciona o objetivo de todos os presentes no debate, apresentando uma causa comum entre as diferentes categorias, enaltecendo a busca por melhores condições de vida e trabalho, a aquisição e execução de direitos.

Sobre isso, Lívio explana: 

A gente pode perceber, que a luta dos camelôs e entregadores(as) é a nossa luta, não estamos pedindo nada demais, a Maria começou falando de direitos, o Rennan falou de direitos, o Ralf falou de direitos, é isso que a gente busca. Direito a um trabalho digno, direito a saúde física mesmo, pois os camelôs estão expostos ao sol e a chuva e ainda vem a guarda municipal agredir com cassetete.

Livio continua sua participação destacando as dificuldades de se organizar um movimento coeso. Fiquemos com Lívio:

A gente luta hoje, é muito difícil organizar a categoria, porque a gente luta contra uma propaganda muito forte. Na sociedade como um todo com a propaganda é feita para fidelizar as pessoas, as marcas acabam virando sinônimos do próprio serviço. E nós sofremos bombardeios diários, como se nós fossemos camaradas de luta dos diretores da Uber, para a gente organizar motoristas é uma batalha muito grande, porque precisamos faze primeiro esse processo de desconstrução. A Uber não é nossa companheira, a Uber nos trata como colaboradores o tempo todo, não somos colaboradores da Uber, somos trabalhadores da Uber.

Exploração vendida como empreendedorismo

Um dos principais atrativos usados pelas plataformas de aplicativos, seria o benefício da “liberdade”, agora, os trabalhadores(as) deixariam o status de empregados e passariam para empreendedores, essa fabulação foi imensamente propagada pelas empresas. Contudo, ao longo desse serviço, trabalhadores(as) perceberam que não era muito bem isso.

Sobre essa temática, Ralf MT discorreu:

Nós, entregadores e motoristas de aplicativos, fomos enganados por esses aplicativos. A principal campanha de todos os aplicativos é: Venha ser seu próprio patrão, trabalhe a hora que quiser, login a hora que quiser, rejeite quantas corrida ou entregas quiser e ficou durante algum tempo assim. Muitos trabalhadores abandonaram seus serviços de CLT e foram trabalhar com aplicativos. 

Mais adiante, Ralf MT explica como funciona a organização das empresas por aplicativos:

Quando tem pouco motoristas na Uber, tem pouco entregadores nos aplicativos, eles pagam bem mesmo, trabalham a promoção de indique e ganhe, pra você trazer mais entregadores. Quando entrou a pandemia, ficou uma galera desempregada, eles se alertaram que poderiam retornar um dinheiro para os seus investidores. O intuito de todos os aplicativos foi liberar o cadastro para o maior número de pessoas possível. E por que? Como muitos trabalhadores desempregados, com a pandemia, era grande chance de diminuir os valores, pois sempre tem quem aceite.

Outro mito que foi desmistificado por Ralf MT, foi a falsa promessa de livre trabalho, que os entregadores(as) realizariam por vontade própria seu horário de expediente.

Sobre isso, Ralf MT comenta:

Eles realizam várias campanhas para que os entregadores(as) fiquem logados de 12 a 14 horas, eles possuem estratégias pra fazer você ficar ali e possuindo muitos entregadores, já é uma condição que você precisa ficar, você vai precisar levar o pão para casa. Eu indico até um filme que se chama “você não estava aqui”. Ali explica muito do que eu estou falando, já é a ideia de o aplicativo colocar muitos entregadores(as) na rua, porque isso causa mais rivalidade também, um quer fazer mais entrega do que o outro. Muita gente na rua, eles conseguem colocar o preço que quiserem, é a real escravidão moderna.

Rennan Resende argumenta sobre a influência social na organização desses trabalhadores(as), dissertando sobre os traumas do cotidiano que impactam na adesão de pessoas na luta por direitos. 

Sobre essa abordagem, Rennan Resende Verbaliza:

Eu falei no início da live, que cerca de 80% dos entregadores(as) são de favelas e muitos são do Nordeste. Pessoas que viram nos aplicativos uma oportunidade de melhora, a pessoa está na comunidade dela, a pessoa tem entre 16 a 25 anos, porque na categoria de bicicleta, você não precisa ter a CNH pra trabalhar. Só precisa ser maior de 18 anos e mesmo assim, eu já vi uma quantidade altíssima de entregadores(as) menores de idade. A pessoa começa a trabalhar como entregador, tendo na cabeça como a melhor oportunidade da vida dela, ele vai trabalhar 16 horas por dia, mas vai ganhar R$ 3.000 por mês, a mãe dele não vai ganhar esse valor, o pai também não, ele vai achar que é uma oportunidade ótima. Ele vai defender o aplicativo até o último minuto.

Livio termina sua participação mencionando a regulamentação de alguns pontos de apoio aos motoristas e entregadores(as) de aplicativos, uma forma de melhorar as condições que trabalho no cotidiano.

Sobre essa pauta, Lívio argumentou:

Seriam três pontos de apoio por cada região administrativa da cidade, esses pontos de apoio seriam para os trabalhadores(as) esquentarem uma comida, um banheiro decente, pontos para recarregarem os celulares, que é nosso meio de trabalho. Mas há uma rejeição dos aplicativos, para eles interessa esse distanciamento, eles não querem que a gente consiga sentar no mesmo ambiente e falar sobre o nosso trabalho, eles querem uma competição louco entre a gente.

Nessas semelhanças de dificuldades vivenciadas por camelôs e trabalhadoras(es) de aplicativos, Maria dos camelôs evidencia essa realidade, relatando situações do seu âmbito familiar análogos aos descritos pelos participantes entregadores.

A minha filha também trabalha por aplicativos, trabalha de bicicleta, aí…sabe, a gente vê a precarização do trabalho, ela saia aqui da Tijuca pra ir a Copacabana, ficava o dia inteiro esperando corrida, ela tinha folga apenas na segunda, todos os dias ela fica de 2 as 10 da noite, tinha dia que não realizava uma corrida. Ela dizia que tinha gente da baixada, que gastava muito dinheiro de passagem e não conseguia uma corrida, com filho pequeno, aluguel para pagar, uma exploração muito grande. 

Essa realidade nos remete a idade média, podemos realizar uma analogia entre a situação enfrentada pelos entregadores(as) de aplicativos, com a suserania e vassalagem que vigorou no âmbito do feudalismo, em que o suserano fornece os meios para o vassalo exercer o trabalho, cedendo terras e ferramentas, mas quem ficava com a recompensa é o suserano. Semelhante ao que acontece no século XXI, os trabalhadores(as) executam o trabalho e os aplicativos oferecem as ferramentas para a atividade trabalhista, mas recebem uma boa parte do valor relativo ao esforço do trabalhador(a).