[Por Sheila Jacob – NPC] “Continuam abertas as veias da América Latina?”. Essa foi a pergunta que orientou os debates da mesa de abertura do 23º Curso Anual do NPC, que ocorreu no dia 22 de novembro. E a resposta a essa questão foi a mesma: Sim. As veias da América Latina ainda estão abertas, e mais ainda do que antes. Foi isso que afirmaram os seguintes palestrantes: o Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães; o professor Igor Fuser (UFABC); o engenheiro e sindicalista Olímpio Alves (Senge-RJ); a pesquisadora chilena Anita Barriento; e o jornalista Carlos Alberto Almeida. De forma geral, eles recuperaram a importância de governos progressistas que foram eleitos em diversos países do continente no início do século 21. Também ressaltaram o atraso que significa a recente eleição de presidentes de direita em vários deles. Destacaram, por fim, formas de luta e resistência que mostram que o povo não tem sido passivo frente à retirada de seus direitos e à violência que lhe vem sendo imposta.
Samuel Pinheiro Guimarães faz uma retrospectiva da história do continente
O Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães fez um retrospecto dos últimos vinte anos do continente sul-americano. Ele lembrou que, com o apogeu dos Estados Unidos no final do século XX, durante a Guerra do Golfo e a queda da União Soviética, ganhou força, nos países latino-americanos, um movimento neoliberal. Foi quando elegeram-se figuras como Fernando Collor (Brasil), Carlos Menem (Argentina), Sánchez de Lozada (Bolívia), dentre outros. Todos governos que procuravam reduzir direitos dos trabalhadores, diminuir os salários e aumentar os lucros das empresas. “Esses governos, do ponto de vista das sociedades, foram fracassos extraordinários. No Brasil, por exemplo, foi o tempo da privatização, da defesa dos interesses do capital, do aumento das desigualdades”. Essas medidas, devido à sua impopularidade, foram derrotadas nas urnas. Foram eleitos, então, governos opostos, preocupados com a redução das desigualdades, o fortalecimento do Estado como promotor do desenvolvimento e uma política externa soberana, voltada à integração e à cooperação regionais.
Frente a essa onda progressista, segundo Guimarães, houve uma articulação dos interesses do capital para desestabilizar esses governos e recuperar a hegemonia da direita na América do Sul. “Ocorre em nosso continente um esforço de mudança de regime, o que é um nome sofisticado para ‘golpes de Estado’. Ou seja, eles derrubam governos que incomodam seus interesses através de movimentos de massa por eles financiados”. Em sua avaliação é isso que vem ocorrendo na Venezuela e foi o que houve no Brasil em 2013, com as chamadas “jornadas de junho”. Para ele, as grandes mobilizações de rua que ocorrem quatro anos atrás não foram fruto da reivindicação legítima da sociedade. “Era tudo orquestrado por eles”, afirmou. Depois desse momento, voltamos, de acordo com o Embaixador, à defesa de programas ultra neoliberais, pautados na venda e destruição do capital nacional e suas fontes de financiamento, como, no caso do Brasil, a destruição sistemática do BNDES. “E a Lava Jato serviu de instrumento auxiliar desse processo”, ressaltou.
É por isso que ele considera que as veias da América Latina estão ainda mais abertas. “O que está em jogo é o futuro da sociedade brasileira e possibilidade de construção de um país justo, democrático, desenvolvido e soberano”, concluiu.
Igor Fuser lembra histórias de luta e resistência
O professor Igor Fuser (UFABC) começou lembrando um episódio bastante simbólico. Ele recordou que o livro de Eduardo Galeano ao qual o título da mesa faz referência, “As veias abertas da América Latina”, foi dado de presente por Hugo Chávez para Obama. Concordando que esse título ainda é bastante atual, ele citou uma notícia recente publicada pelo “The Guardian”. O jornal estrangeiro dizia que o ministro do Comércio inglês fez lobby, junto ao governo brasileiro, para facilitar os interesses das empresas multinacionais nos leilões do pré-sal. A reivindicação foi atendida com regras mais favoráveis à exploração estrangeira, como a eliminação da exigência da compra de conteúdo local. “Alguém aqui nesse curso viu essa notícia no Jornal Nacional? É claro que não! A Globo não deu essa informação. Para sabermos o que ocorre de fato no Brasil precisamos ler os jornais estrangeiros ou a mídia progressista”, afirmou. Com essa reunião, segundo ele, as veias do continente se abriram ainda mais.
“Quem abriu as veias do continente primeiro foram os estrangeiros, depois foram as elites locais, a serviço dos interesses internacionais. Mas há também a tradição dos que não aceitam: quilombolas, indígenas, negros. Temos o exemplo da Revolta da Chibata, no Brasil; da Revolução Mexicana; das greves de 1917 no Rio e em São Paulo. Essas forças foram subjugadas, mas alguma coisa fica do passado”. Fazendo referência aos governos progressistas citados pelo Embaixador, como o de Chávez, ele ressalta que pela primeira vez a busca por se fechar essas veias foi uma política conjunta, e não isolada como no caso do Chile de Salvador Allende nos anos 1970. “Na Venezuela, a PDVSA, que é a empresa dona do petróleo, estava à beira de ser privatizada, mas Chávez não deixou. Ele dizia que a riqueza do país tinha que ser entregue aos seus verdadeiros donos, o povo, em forma de educação, saúde, moradia… O povo venezuelano sabe disso e por isso tem resistido bravamente”. Ele ainda ironizou, dizendo que se não estamos vendo mais notícias sobre a Venezuela nos principais jornais, isso significa que “algo de bom [para o povo] está acontecendo. A Venezuela sumiu do noticiário porque o governo está derrotando a direita”.
Segundo Fuser, a ameaça, antes identificada como dos Estados Unidos, hoje vem sendo representada por vários países, “uma matilha de predadores”, que não reconhecem limites como leis ambientais, a proteção aos indígenas e qualquer medida protecionista. A experiência recente deve servir de lição para o futuro. “Especialmente no Brasil, aprendemos que não basta implementar políticas públicas se não forem acompanhadas do ganho de consciência. É preciso travar luta de ideias, voltada à formação de valores, princípios, e à apropriação do saber pelo povo brasileiro”. Outra lição que fica, de acordo com Fuser, é a de que não dá para esperar nada das classes dominantes. “Não é porque os empresários estão lucrando como nunca que isso os vai levar a uma postura mais civilizada na conduta política. Eles sabem que qualquer governo que incorpora em suas políticas benefícios à classe trabalhadora incomoda o capital. E o que eles querem é explorar até o fim o trabalhador, aumentando, assim, seus lucros”, concluiu.
Olímpio Alves afirma que estamos sendo recolonizados
Segundo o presidente do Sindicato dos Engenheiros do Rio de Janeiro (Senge-RJ), Olímpio Alves, com os governos do PT houve um esboço de construção de uma nação soberana. Mas agora, segundo ele, estamos voltando a ser recolonizados. Em sua intervenção, o engenheiro apresentou dados para comprovar essa observação, a começar pela diminuição dos índices de emprego no país. “O desemprego está explícito nas ruas do Rio de Janeiro, onde vemos um alto número de pessoas abandonadas, em estado de desesperança”. No caso do Estado do Rio, uma das causas da diminuição do emprego é a destruição da cadeia de petróleo e gás e da indústria naval. “A Lava Jato, em vez de penalizar as pessoas, destruiu as empresas. E isso teve um impacto negativo na qualidade de vida no Estado”, ressaltou. Também houve uma queda das despesas com ciência e tecnologia, incluindo o programa Ciências sem Fronteiras. Isso, segundo ele, “compromete o futuro de qualquer país que não deseja ser colônia”.
O palestrante destacou, ainda, a entrega das riquezas minerais a grupos estrangeiros; a perda do pré-sal; a venda de empresas estatais; a redução da participação do Estado na oferta de serviço públicos; e o esvaziamento da política de conteúdo local no setor de petróleo e gás, facilitando a entrada de engenheiros estrangeiros no país. Para ele, a oligarquia brasileira perdeu a vergonha de fingir que é democrata e de aparentar que defende os bens públicos. “A resposta a esses ataques é entender o problema e nos organizar para reagir à altura a essas novas formas transnacionais de Imperialismo”, concluiu.
Anita Barrientos diz que Brasil vai pelo mesmo caminho do Chile
A pesquisadora chilena Anita Barrientos relatou a primeira vez que o clássico de Eduardo Galeano chegou em suas mãos. “Aquela história cruel e terrível, que é invisível na história oficial, me fez acordar para a realidade. Sim, as veias estão cada vez mais abertas”, pontuou. Ela lembrou que seu país natal teve o primeiro presidente socialista escolhido de maneira democrática, Salvador Allende, ao qual se seguiu uma das ditaduras militares mais cruéis, encabeçada por Augusto Pinochet. Os tempos de exceção deixaram consequências, pois, como explica a palestrante, a atual Constituição chilena foi feita durante a ditadura, em 1980. Ela lembrou que o Chile também serviu de experimento neoliberal para o continente. “Lá instaurou-se um modelo de desenvolvimento baseado no extrativismo, na mineração de cobre, e na exploração de outros bens comuns, como a água e recursos naturais do setor pesqueiro”.
Anita lembrou que a água doce em seu país é privatizada, “está nas mãos das hidrelétricas, dos interesses privados”. Ela também citou a Lei de Pesca de 2012, que favorece o setor industrial e prejudica os pescadores artesanais de seu país. “Sete famílias controlam 76% da capacidade pesqueira do Chile”, afirmou. O mesmo ocorre, segundo ela, com a mineração, cuja exploração não é 100% estatal. Outra forte consequência da ditadura chilena foi enxergar os direitos sociais como mercadoria, como a privatização da educação. Como ela explicou, a educação, lá, é paga, inclusive nas universidades públicas. “O único jeito de conseguir estudar é pela dívida, através de banco privado, com altos juros”. Outros impactos foram nos contratos temporários e péssimas condições de emprego, além da previdência privada. “Quando vejo a atual situação do Brasil, sinto que vai pelo mesmo caminho que o nosso, e isso não é nada bom”.
Apesar de todos esses ataques, há respostas como as manifestações de massa nas ruas. Um conhecido exemplo é a chamada “Revolução pinguina” dos estudantes, que colocou na agenda política o tema do direito à educação e vem inspirando movimentos semelhantes em outros países.
Movimentos de resistência foram destacados por Beto Almeida
O jornalista Carlos Alberto Almeida preferiu resgatar vários exemplos históricos de luta por libertação e emancipação no continente. Ele lembrou a Revolução Haitiana, quando no final do século 18 os negros se emanciparam e decretaram a independência. Também citou o exemplo de Simón Bolívar, que acreditou na união das repúblicas do continente e deixou sementes replantadas pelo comandante venezuelano Hugo Chávez, para quem o “conceito de democracia era dar a maior taxa de felicidade para o povo”. Ele também citou o importante caso do Paraguai, que buscou eliminar o analfabetismo, criou uma lei avançada e desenvolveu uma siderurgia própria para a construção de seu país. “Essa experiência também foi esmagada. A cada tentativa de emancipação, vem um ataque”, ressaltou. Nesse momento, destacou as contribuições do historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira, que faleceu recentemente, mas não recebeu a devida menção nos veículos da mídia comercial.
O jornalista lembrou ainda duas experiências, inclusive reconhecidas pelo revolucionário soviético Trotsky quando esteve no México, em 1938. Trata-se dos governos de Lázaro Cárdenas, do México, e Getúlio Vargas, do Brasil. “Ambos cumpriram programas que interessavam aos trabalhadores, como o controle sobre o petróleo e a garantia dos direitos trabalhistas. No México, houve ainda experiências da reforma agrária”, lembrou. Ele citou, ainda, os feitos de Perón, na Argentina, como a expansão dos direitos trabalhistas, previdenciários e a defesa do voto das mulheres. Fez questão, por fim, de ressaltar que não há saídas isoladas da América Latina. “Por isso é importante que a gente defenda a revolução bolivariana da Venezuela e outros governos de esquerda, como na Nicarágua, El Salvador e Bolívia. A hemorragia exigirá providências. Não podemos permitir que a vontade do povo seja desrespeitada mais uma vez, e não podemos desperdiçar a oportunidade da eleição no ano que vem, nem no Brasil, nem na Argentina. O voto popular consciente é fundamental para retomar o caminho que começamos a trilhar”, finalizou.
