Marcelo Netto Rodrigues
da Redação
Em entrevista, o historiador Christian Karam, estudioso da História do Islã, do Oriente Médio e do conflito palestino-israelense traça um raio-x cronológico sobre a origem do “Estado de Israel” e suas profundas implicações.
Karam explica que, apesar de outras regiões terem sido cogitadas para a instalação do “Estado de Israel”, em fins do século 19 – como Uganda (na África Oriental) e a Bacia do Rio da Prata – , a região da Palestina Otomana acabou se sobressaindo das demais em virtude principalmente das migrações massivas, a partir de 1917, incentivadas pelo governo britânico – que “via com bons olhos” imperialistas a criação de um “lar nacional judaico” na Palestina histórica (de maioria populacional árabe e islâmica).
Karam é formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) onde, durante a graduação, concentrou e aprofundou seus estudos acerca da História do Islã, do Oriente Médio e do conflito palestino-israelense. Além de possuir experiência em pesquisa acadêmica nessa área, foi conferencista e professor de cursos sobre a História do Islã e do Oriente Médio na Colômbia. No Brasil, já atuou como palestrante, participou de debates e entrevistas no rádio e na televisão e escreveu artigos sobre tais temas. Atualmente, finaliza uma temporada de cursos e palestras sobre a História do Islã e do Oriente Médio e a História do Brasil em Bogotá e dedica-se ao curso de Mestrado em História Social na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).
Sobre o desenrolar do conflito atual, Karam acredita que “a maioria dos governos dos países ocidentais que pertencem ao que, numa linguagem marxista, chamamos de “centro do sistema capitalista” (como o G-7, a Rússia e a Austrália), e também seus aliados da periferia, respaldará claramente Israel ou, em alguns poucos casos, levantará a bandeira da “paz” – conceito que, esvaziado de seu real sentido e propósito, tornou-se uma espécie de “moda pós-moderna politicamente correta” das relações internacionais”.
Porém, duvida “da adoção de medidas e sanções concretas contra o uso desproporcionado e ilegal da força militar por parte de Israel ao atacar a Faixa de Gaza e o Líbano nessas últimas semanas”. Para Karam, o massivo apoio interno que o Hezbollah tem recebido advém de “grupos sociais libaneses historicamente marginalizados (operários, classes médias urbanas e camponeses de maioria xiita) pela elite burguesa-liberal tanto cristã como muçulmana sunita de Beirute e das principais cidades do país”.
Brasil de Fato – O senhor poderia nos fazer um resumo sobre a origem do “Estado de Israel”.
Christian Karam– O termo “sionismo” foi criado em 1885 pelo escritor judeu-austríaco Nathan Birnbaum como uma alusão a “Sion”, um dos nomes bíblicos de Jerusalém (Al-Quds para os árabes e muçulmanos). Nessa época, “sionismo” basicamente significava uma resposta ao problema nacional judeu que advinha de dois principais fatos: da dispersão judaica em vários países e regiões do mundo; e da sua constituição, em cada um desses países, como uma minoria populacional, onde inclusive muitos judeus eram perseguidos, como era o caso da Europa anti-semita do século 19. Assim, a solução sionista pretendia acabar com essa situação, através do retorno a “Sion” (que hoje, conhecemos como um fenômeno histórico idealizado e concebido como o mito de origem fundador do nacionalismo judeu moderno), onde conformariam uma maioria populacional e uma entidade político-estatal independente. Assim, é nesse espectro que surge o sionismo político internacional fundado pelo jornalista judeu-húngaro Theodor Herzl (1860-1904) na Europa em fins do século 19 como um movimento nacionalista preponderantemente laico e secular que visava à fundação de um Estado nacional judaico. Para Herzl, o “problema judaico” (abordado no seu livro “O Estado judeu”, de 1896) não se resolveria através da assimilação a outras sociedades ou países, e nem era de origem econômica, social ou religiosa, mas sim nacional. Com isso, Herzl via como única solução possível o abandono da diáspora pelos judeus para a conquista de um território sobre o qual exerceriam uma soberania para organizar e estabelecer o seu próprio estado nacional.
BF – A história que uma região na África havia sido especulada para receber os judeus pós-guerra confere?
Karam– Em fins do século 19, os sionistas haviam proposto a colonização judaica da Palestina Otomana, apesar de terem cogitado outras regiões, como Uganda (na África Oriental) e a Bacia do Rio da Prata. Assim, se em algum momento entre os dois “pós-guerras” (1918 ou 1945) especulou-se sobre outra região que não a Palestina para a imigração e colonização judaicas com vistas à formação de um Estado hebreu, isso foi em vão e sem sentido, pois, antes desses dois períodos históricos, a decisão pela Palestina já havia sido tomada e as migrações massivas já haviam iniciado, principalmente a partir de 1917, quando a Declaração Balfour britânica “via com bons olhos” a criação de um “lar nacional judaico” na Palestina histórica (de maioria populacional árabe e islâmica). Isso denota o claro apoio colonial e imperialista inglês à causa nacional sionista que, entre outros atores (como a ONU), determinou a partilha da Palestina entre um Estado árabe e outro judeu em 1947 e a criação do Estado de Israel em 1948.
BF – Como se portam os judeus não-sionistas? Li que eles criticam a criação do Estado de Israel por ter se baseado num conceito de “raça” – assim como os nazistas caracterizavam os judeus. O senhor poderia explicar isso melhor?
Karam – Creio que hoje em dia é um pouco difícil falar em “judeus não-sionistas”, porque o conceito político-nacional “sionista”, devido aos próprios fatos e processos históricos que experimentou ao longo do século 20, é hoje considerado quase como sinônimo de “conservadorismo” ou de uma “ideologia de direita e reacionária”, e acabou por abarcar, em linhas gerais, o termo étnico-cultural (e religioso) “judeu”. Assim, atualmente seria um pouco complicado separar um do outro, e dizer que há “sionistas” e que há “judeus” que não seriam sionistas.
Porém, historicamente isso não ocorreu assim. Como vimos, a principal corrente do sionismo (a “trabalhista”, que se opunha à “revisionista”, de direita) nasceu de um pensamento laico e secular e de uma ideologia com matizes político-filosóficos marxistas que, inclusive, não dava quase importância ao Judaísmo como tal e era contrário à via armada, opção defendida pelos revisionistas para a conquista territorial e a fundação de um Estado. O que ocorreu foi que a corrente “revisionista” de direita quase que sequestrou os ideais e a estratégia de ação dos pais fundadores do sionismo da primeira metade do século 20 após a criação do Estado de Israel em 1948 (para alguns, até antes, nos anos 1930-40, quando vemos o endurecimento da investida sionista na Palest
ina, cuja retaliação foi a revolta árabe-palestina de 1936-39) e, principalmente, depois da Guerra dos Seis Dias de 1967, fenômeno que se alastra até hoje. Isso não significa que atualmente não exista todo um espectro político-ideológico progressista e de esquerda em Israel (embora enfraquecido), que é pacifista e pró-palestinos, mas que não deixa de ser também “sionista”, se considerarmos esse termo na sua acepção original e histórica.
BF – Mas quem seriam os judeus não-sionistas de hoje?
Karam– Se formos considerar o que tu chamas de “judeu não-sionista”, acredito que essa expressão então deveria ser entendida como equivalente aos atuais judeus de esquerda e pacifistas. Ademais, devemos assinalar que os chamados “judeus ortodoxos”, que na acepção atual seriam o melhor exemplo de “sionistas”, são, paradoxalmente, contrários à própria existência do Estado de Israel, justamente porque ele é fruto de um projeto laico e secular, que não teria aguardado o regresso do Messias, o único encarregado de realizar tal façanha segundo a chamada visão “fundamentalista” judaica.
BF – Desde a criação do Estado de Israel, quais territórios principais eles ocuparam? Quando falamos em Palestina, devemos considerar a Faixa de Gaza e a Cisjordânia juntas e só isso?
Karam – Segundo a partilha da Palestina histórica, proposta e aprovada pela ONU, o Estado árabe deveria ficar com aproximadamente 43% do território, enquanto que, ao Estado judeu-sionista, competiria controlar 56%. Os restantes 1%, Jerusalém, seriam colocados sob um mandato internacional administrado pela ONU. Essa divisão respeitava muito pouco dois fatores essenciais – a ocupação das terras e a maioria populacional – pois a maioria do território seria controlada por uma minoria judaica (30%). Segundo o estudioso Henri Cattan, os sionistas “não respeitaram nem antes nem depois os limites fixados pela resolução de partilha da ONU”, pois, antes da fundação de Israel e da primeira guerra árabe-israelense, os judeus, através de sua superioridade econômica e militar (e paramilitar das milícias de direita), já tinham comprado 6% das terras e invadido a maior parte delas, expulsando a população civil árabe-palestina. Assim, após a primeira guerra árabe-israelense de 1948-49, a ocupação sionista da Palestina havia ascendido a mais de 70% do território, deixando aos árabes as piores terras de cultivo para sobreviver. Após a Guerra dos Seis Dias de 1967, quando Israel conquista a Cisjordânia à Jordânia, a Faixa de Gaza e a Península do Sinai (esta seria devolvida depois) ao Egito e as colinas de Golã à Síria, aprofunda-se ainda mais o fenômeno da “direitização” e militarização do sionismo, pois, segundo o historiador israelense Shlomo Ben-Ami, “o sionismo se redefinia perigosamente (…) devido ao encontro dos israelenses com as ‘terras bíblicas’ da Judéia e Samaria (…)”, numa alusão à perda de legitimidade histórica e política de Israel em manter os territórios ocupados, situação que persiste na Cisjordânia, Faixa de Gaza e nas colinas de Golã, o que hoje representa quase 80% do território da Palestina histórica sob controle e administração israelense. Assim, aquilo que os palestinos hoje reivindicam para constituir seu Estado soberano nada mais é do que 20% das terras originais do mandato britânico, um valor bem menor do que os 43% do plano de partilha de 1947.
BF – O objetivo de Israel é derrubar o governo do Hamas?
Karam – Eu diria que, a curto prazo, o objetivo de Israel é enfraquecer o democraticamente eleito e, portanto, legítimo governo palestino do Hamas, para talvez tentar conduzi-lo à queda a médio e longo prazos. O problema é que o próprio Estado de Israel e a política externa dos EUA são culpados pela eleição do Hamas ao terem debilitado politicamente e atacado (inclusive militarmente) as instituições do governo anterior da al-Fatah de Arafat, facção centrista da OLP, que também vinha sofrendo um desgaste interno e enfrentando acusações de corrupção, principalmente por parte dos integristas islâmicos e da esquerda palestina, que ainda não teve a oportunidade de governar. Diz-se que o atual dilema norte-americano e de seu aliado israelense na região é ter de escolher entre governos civis laicos esquerdistas (às vezes não tão democráticos) e um islamismo político religioso e reacionário (e às vezes democrático), este tendo constituído um fenômeno em grande medida apoiado e difundido pelos EUA e por Israel durante a Guerra Fria, mas que jamais poderiam imaginar que se voltaria contra eles e que chegaria ao poder.
BF – O assassinato do primeiro-ministro libanês, pró-EUA, Hariri pode ser considerado o início de tudo?
Karam – Não. O assassinato do ex-primeiro-ministro libanês representa mais um fato de todo esse processo que envolve a causa palestina e a ocupação israelense de terras árabes e a ressonância e influência que ambas vêm tendo na região nas últimas décadas. Esse é o caso da ramificação sírio-libanesa do conflito, em que o Hezbollah libanês pró-sírio e apoiado pelo Irã tem obtido, no âmbito político-social, um massivo apoio interno de grupos sociais libaneses historicamente marginalizados (operários, classes médias urbanas e camponeses de maioria xiita) pela elite burguesa-liberal tanto cristã (notadamente maronita) como muçulmana sunita de Beirute e das principais cidades do país. Externamente, o Hezbollah constituiu-se, para as massas árabes e muçulmanas, como o grande vencedor ao infligir, após 18 anos de enfrentamentos, uma derrota a Israel (que, em 2000, retirou suas tropas ocupantes da então chamada “zona de segurança” do sul do Líbano). Assim, o Hezbollah e outros grupos guerrilheiros e de resistência (alguns fundamentalistas, outros não) e os próprios países do Oriente Médio (Líbano, Síria, Irã, etc.) que representem um projeto político-econômico oposto ou que sejam simplesmente uma voz dissonante em relação à política externa norte-americana (e de seu quase Estado-vassalo, Israel) são e serão considerados como parte de um plano mais amplo de reestruturação geopolítica, econômica e militar, que já vem ocorrendo no Oriente Médio e na Ásia Central, como é o caso do Iraque e do Afeganistão, e cujo objetivo é impor a “” à região de acordo com as normas do “” neoconservador de Washington.
BF – E o islamismo nisso tudo? A união das correntes deve perdurar até quando?
Karam – Nos casos específicos do Hezbollah libanês e do Hamas palestino não penso que possamos formalmente falar de uma “união das correntes”. O que há é uma espécie de solidariedade e apoio indireto mútuo entre esses grupos, mesmo porque o islamismo político do Hamas difere daquele do Hezbollah (por exemplo, este grupo é xiita e, aquele, sunita). Porém, uma semelhança estratégica da luta de ambos que poderíamos apontar, como o faz o especialista no tema, o francês Olivier Roy, seria a incorporação da defesa de um nacionalismo árabe e/ou islâmico ao discurso islamista/fundamentalista do Hamas e do Hezbollah, numa alusão meramente tática (mas não de uma ideologia marxista ou comunista) ao que propunham ou faziam os nacionalismos das esquerdas pan-árabe
s e socialistas dos anos 1950-70, os reais grandes perdedores dessa verdadeira “batalha” político-ideológica e sócio-econômica pelo controle do poder estatal no Oriente Médio e nos países árabes nos últimos 30 anos.
BF – Como os governantes do mundo ocidental vão se posicionar se a guerra adquirir contornos mais dramáticos? Quem seriam os “Aliados” e o “Eixo” de uma terceira guerra?
Karam– Ora, a maioria dos governos dos países ocidentais que pertencem ao que, numa linguagem marxista, chamamos de “centro do sistema capitalista” (como o G-7, a Rússia e a Austrália), e também seus aliados da periferia desse sistema (alguns países da Europa Oriental, América Latina, Ásia Oriental, África Subsaariana e do próprio Oriente Médio) respalda e respaldará claramente Israel ou, em alguns poucos casos, até criticará Israel e levantará a bandeira da “paz”, conceito que, esvaziado de seu real sentido e propósito, tornou-se uma espécie de “moda pós-moderna politicamente correta” das relações internacionais. Porém, duvido muito da adoção de m
Marcelo Netto Rodrigues
da Redação
Em entrevista, o historiador Christian Karam, estudioso da História do Islã, do Oriente Médio e do conflito palestino-israelense traça um raio-x cronológico sobre a origem do “Estado de Israel” e suas profundas implicações.
Karam explica que, apesar de outras regiões terem sido cogitadas para a instalação do “Estado de Israel”, em fins do século 19 – como Uganda (na África Oriental) e a Bacia do Rio da Prata – , a região da Palestina Otomana acabou se sobressaindo das demais em virtude principalmente das migrações massivas, a partir de 1917, incentivadas pelo governo britânico – que “via com bons olhos” imperialistas a criação de um “lar nacional judaico” na Palestina histórica (de maioria populacional árabe e islâmica).
Karam é formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) onde, durante a graduação, concentrou e aprofundou seus estudos acerca da História do Islã, do Oriente Médio e do conflito palestino-israelense. Além de possuir experiência em pesquisa acadêmica nessa área, foi conferencista e professor de cursos sobre a História do Islã e do Oriente Médio na Colômbia. No Brasil, já atuou como palestrante, participou de debates e entrevistas no rádio e na televisão e escreveu artigos sobre tais temas. Atualmente, finaliza uma temporada de cursos e palestras sobre a História do Islã e do Oriente Médio e a História do Brasil em Bogotá e dedica-se ao curso de Mestrado em História Social na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).
Sobre o desenrolar do conflito atual, Karam acredita que “a maioria dos governos dos países ocidentais que pertencem ao que, numa linguagem marxista, chamamos de “centro do sistema capitalista” (como o G-7, a Rússia e a Austrália), e também seus aliados da periferia, respaldará claramente Israel ou, em alguns poucos casos, levantará a bandeira da “paz” – conceito que, esvaziado de seu real sentido e propósito, tornou-se uma espécie de “moda pós-moderna politicamente correta” das relações internacionais”.
Porém, duvida “da adoção de medidas e sanções concretas contra o uso desproporcionado e ilegal da força militar por parte de Israel ao atacar a Faixa de Gaza e o Líbano nessas últimas semanas”. Para Karam, o massivo apoio interno que o Hezbollah tem recebido advém de “grupos sociais libaneses historicamente marginalizados (operários, classes médias urbanas e camponeses de maioria xiita) pela elite burguesa-liberal tanto cristã como muçulmana sunita de Beirute e das principais cidades do país”.
Brasil de Fato – O senhor poderia nos fazer um resumo sobre a origem do “Estado de Israel”.
Christian Karam– O termo “sionismo” foi criado em 1885 pelo escritor judeu-austríaco Nathan Birnbaum como uma alusão a “Sion”, um dos nomes bíblicos de Jerusalém (Al-Quds para os árabes e muçulmanos). Nessa época, “sionismo” basicamente significava uma resposta ao problema nacional judeu que advinha de dois principais fatos: da dispersão judaica em vários países e regiões do mundo; e da sua constituição, em cada um desses países, como uma minoria populacional, onde inclusive muitos judeus eram perseguidos, como era o caso da Europa anti-semita do século 19. Assim, a solução sionista pretendia acabar com essa situação, através do retorno a “Sion” (que hoje, conhecemos como um fenômeno histórico idealizado e concebido como o mito de origem fundador do nacionalismo judeu moderno), onde conformariam uma maioria populacional e uma entidade político-estatal independente. Assim, é nesse espectro que surge o sionismo político internacional fundado pelo jornalista judeu-húngaro Theodor Herzl (1860-1904) na Europa em fins do século 19 como um movimento nacionalista preponderantemente laico e secular que visava à fundação de um Estado nacional judaico. Para Herzl, o “problema judaico” (abordado no seu livro “O Estado judeu”, de 1896) não se resolveria através da assimilação a outras sociedades ou países, e nem era de origem econômica, social ou religiosa, mas sim nacional. Com isso, Herzl via como única solução possível o abandono da diáspora pelos judeus para a conquista de um território sobre o qual exerceriam uma soberania para organizar e estabelecer o seu próprio estado nacional.
BF – A história que uma região na África havia sido especulada para receber os judeus pós-guerra confere?
Karam– Em fins do século 19, os sionistas haviam proposto a colonização judaica da Palestina Otomana, apesar de terem cogitado outras regiões, como Uganda (na África Oriental) e a Bacia do Rio da Prata. Assim, se em algum momento entre os dois “pós-guerras” (1918 ou 1945) especulou-se sobre outra região que não a Palestina para a imigração e colonização judaicas com vistas à formação de um Estado hebreu, isso foi em vão e sem sentido, pois, antes desses dois períodos históricos, a decisão pela Palestina já havia sido tomada e as migrações massivas já haviam iniciado, principalmente a partir de 1917, quando a Declaração Balfour britânica “via com bons olhos” a criação de um “lar nacional judaico” na Palestina histórica (de maioria populacional árabe e islâmica). Isso denota o claro apoio colonial e imperialista inglês à causa nacional sionista que, entre outros atores (como a ONU), determinou a partilha da Palestina entre um Estado árabe e outro judeu em 1947 e a criação do Estado de Israel em 1948.
BF – Como se portam os judeus não-sionistas? Li que eles criticam a criação do Estado de Israel por ter se baseado num conceito de “raça” – assim como os nazistas caracterizavam os judeus. O se
nhor poderia explicar isso melhor?
Karam – Creio que hoje em dia é um pouco difícil falar em “judeus não-sionistas”, porque o conceito político-nacional “sionista”, devido aos próprios fatos e processos históricos que experimentou ao longo do século 20, é hoje considerado quase como sinônimo de “conservadorismo” ou de uma “ideologia de direita e reacionária”, e acabou por abarcar, em linhas gerais, o termo étnico-cultural (e religioso) “judeu”. Assim, atualmente seria um pouco complicado separar um do outro, e dizer que há “sionistas” e que há “judeus” que não seriam sionistas.
Porém, historicamente isso não ocorreu assim. Como vimos, a principal corrente do sionismo (a “trabalhista”, que se opunha à “revisionista”, de direita) nasceu de um pensamento laico e secular e de uma ideologia com matizes político-filosóficos marxistas que, inclusive, não dava quase importância ao Judaísmo como tal e era contrário à via armada, opção defendida pelos revisionistas para a conquista territorial e a fundação de um Estado. O que ocorreu foi que a corrente “revisionista” de direita quase que sequestrou os ideais e a estratégia de ação dos pais fundadores do sionismo da primeira metade do século 20 após a criação do Estado de Israel em 1948 (para alguns, até antes, nos anos 1930-40, quando vemos o endurecimento da investida sionista na Palestina, cuja retaliação foi a revolta árabe-palestina de 1936-39) e, principalmente, depois da Guerra dos Seis Dias de 1967, fenômeno que se alastra até hoje. Isso não significa que atualmente não exista todo um espectro político-ideológico progressista e de esquerda em Israel (embora enfraquecido), que é pacifista e pró-palestinos, mas que não deixa de ser também “sionista”, se considerarmos esse termo na sua acepção original e histórica.
BF – Mas quem seriam os judeus não-sionistas de hoje?
Karam– Se formos considerar o que tu chamas de “judeu não-sionista”, acredito que essa expressão então deveria ser entendida como equivalente aos atuais judeus de esquerda e pacifistas. Ademais, devemos assinalar que os chamados “judeus ortodoxos”, que na acepção atual seriam o melhor exemplo de “sionistas”, são, paradoxalmente, contrários à própria existência do Estado de Israel, justamente porque ele é fruto de um projeto laico e secular, que não teria aguardado o regresso do Messias, o único encarregado de realizar tal façanha segundo a chamada visão “fundamentalista” judaica.
BF – Desde a criação do Estado de Israel, quais territórios principais eles ocuparam? Quando falamos em Palestina, devemos considerar a Faixa de Gaza e a Cisjordânia juntas e só isso?
Karam – Segundo a partilha da Palestina histórica, proposta e aprovada pela ONU, o Estado árabe deveria ficar com aproximadamente 43% do território, enquanto que, ao Estado judeu-sionista, competiria controlar 56%. Os restantes 1%, Jerusalém, seriam colocados sob um mandato internacional administrado pela ONU. Essa divisão respeitava muito pouco dois fatores essenciais – a ocupação das terras e a maioria populacional – pois a maioria do território seria controlada por uma minoria judaica (30%). Segundo o estudioso Henri Cattan, os sionistas “não respeitaram nem antes nem depois os limites fixados pela resolução de partilha da ONU”, pois, antes da fundação de Israel e da primeira guerra árabe-israelense, os judeus, através de sua superioridade econômica e militar (e paramilitar das milícias de direita), já tinham comprado 6% das terras e invadido a maior parte delas, expulsando a população civil árabe-palestina. Assim, após a primeira guerra árabe-israelense de 1948-49, a ocupação sionista da Palestina havia ascendido a mais de 70% do território, deixando aos árabes as piores terras de cultivo para sobreviver. Após a Guerra dos Seis Dias de 1967, quando Israel conquista a Cisjordânia à Jordânia, a Faixa de Gaza e a Península do Sinai (esta seria devolvida depois) ao Egito e as colinas de Golã à Síria, aprofunda-se ainda mais o fenômeno da “direitização” e militarização do sionismo, pois, segundo o historiador israelense Shlomo Ben-Ami, “o sionismo se redefinia perigosamente (…) devido ao encontro dos israelenses com as ‘terras bíblicas’ da Judéia e Samaria (…)”, numa alusão à perda de legitimidade histórica e política de Israel em manter os territórios ocupados, situação que persiste na Cisjordânia, Faixa de Gaza e nas colinas de Golã, o que hoje representa quase 80% do território da Palestina histórica sob controle e administração israelense. Assim, aquilo que os palestinos hoje reivindicam para constituir seu Estado soberano nada mais é do que 20% das terras originais do mandato britânico, um valor bem menor do que os 43% do plano de partilha de 1947.
BF – O objetivo de Israel é derrubar o governo do Hamas?
Karam – Eu diria que, a curto prazo, o objetivo de Israel é enfraquecer o democraticamente eleito e, portanto, legítimo governo palestino do Hamas, para talvez tentar conduzi-lo à queda a médio e longo prazos. O problema é que o próprio Estado de Israel e a política externa dos EUA são culpados pela eleição do Hamas ao terem debilitado politicamente e atacado (inclusive militarmente) as instituições do governo anterior da al-Fatah de Arafat, facção centrista da OLP, que também vinha sofrendo um desgaste interno e enfrentando acusações de corrupção, principalmente por parte dos integristas islâmicos e da esquerda palestina, que ainda não teve a oportunidade de governar. Diz-se que o atual dilema norte-americano e de seu aliado israelense na região é ter de escolher entre governos civis laicos esquerdistas (às vezes não tão democráticos) e um islamismo político religioso e reacionário (e às vezes democrático), este tendo constituído um fenômeno em grande medida apoiado e difundido pelos EUA e por Israel durante a Guerra Fria, mas que jamais poderiam imaginar que se voltaria contra eles e que chegaria ao poder.
BF – O assassinato do primeiro-ministro libanês, pró-EUA, Hariri pode ser considerado o início de tudo?
Karam – Não. O assassinato do ex-primeiro-ministro libanês representa mais um fato de todo esse processo que envolve a causa palestina e a ocupação israelense de terras árabes e a ressonância e influência que ambas vêm tendo na região nas últimas décadas. Esse é o caso da ramificação sírio-libanesa do conflito, em que o Hezbollah libanês pró-sírio e apoiado pelo Irã tem obtido, no âmbito político-social, um massivo apoio interno de grupos sociais libaneses historicamente marginalizados (operários, classes médias urbanas e camponeses de maioria xiita) pela elite burguesa-liberal tanto cristã (notadamente maronita) como muçulmana sunita de Beirute e das principais cidades do país. Externamente, o Hezbollah constituiu-se, para as massas árabes e muçulmanas, como o grande vencedor ao infligir, após 18 anos de enfrentamentos, uma derrota a Israel (que, em 2000, retirou suas tropas ocupantes da então chamada “zona de segurança” do sul do Líbano). Assim, o Hezbollah e outros grupos guerrilheiros e de resistência (alguns fundamentalistas, outros não) e os próprios países do Oriente Médio (Líbano, Síria, Irã, etc.) qu
e representem um projeto político-econômico oposto ou que sejam simplesmente uma voz dissonante em relação à política externa norte-americana (e de seu quase Estado-vassalo, Israel) são e serão considerados como parte de um plano mais amplo de reestruturação geopolítica, econômica e militar, que já vem ocorrendo no Oriente Médio e na Ásia Central, como é o caso do Iraque e do Afeganistão, e cujo objetivo é impor a “” à região de acordo com as normas do “” neoconservador de Washington.
BF – E o islamismo nisso tudo? A união das correntes deve perdurar até quando?
Karam – Nos casos específicos do Hezbollah libanês e do Hamas palestino não penso que possamos formalmente falar de uma “união das correntes”. O que há é uma espécie de solidariedade e apoio indireto mútuo entre esses grupos, mesmo porque o islamismo político do Hamas difere daquele do Hezbollah (por exemplo, este grupo é xiita e, aquele, sunita). Porém, uma semelhança estratégica da luta de ambos que poderíamos apontar, como o faz o especialista no tema, o francês Olivier Roy, seria a incorporação da defesa de um nacionalismo árabe e/ou islâmico ao discurso islamista/fundamentalista do Hamas e do Hezbollah, numa alusão meramente tática (mas não de uma ideologia marxista ou comunista) ao que propunham ou faziam os nacionalismos das esquerdas pan-árabes e socialistas dos anos 1950-70, os reais grandes perdedores dessa verdadeira “batalha” político-ideológica e sócio-econômica pelo controle do poder estatal no Oriente Médio e nos países árabes nos últimos 30 anos.
BF – Como os governantes do mundo ocidental vão se posicionar se a guerra adquirir contornos mais dramáticos? Quem seriam os “Aliados” e o “Eixo” de uma terceira guerra?
Karam– Ora, a maioria dos governos dos países ocidentais que pertencem ao que, numa linguagem marxista, chamamos de “centro do sistema capitalista” (como o G-7, a Rússia e a Austrália), e também seus aliados da periferia desse sistema (alguns países da Europa Oriental, América Latina, Ásia Oriental, África Subsaariana e do próprio Oriente Médio) respalda e respaldará claramente Israel ou, em alguns poucos casos, até criticará Israel e levantará a bandeira da “paz”, conceito que, esvaziado de seu real sentido e propósito, tornou-se uma espécie de “moda pós-moderna politicamente correta” das relações internacionais. Porém, duvido muito da adoção de medidas e sanções concretas contra o uso desproporcionado e ilegal da força militar por parte de Israel ao atacar a Faixa de Gaza e o Líbano nessas últimas duas semanas. Não acredito na propagação do conflito para além das fronteiras do Oriente Médio de uma guerra que, na verdade, é até sub-regional (o que não envolveria o Irã), porque já há outras duas frentes de batalhas na área (Iraque e Afeganistão), mas principalmente porque o que Israel está fazendo é servir a sua potência protetora e financiadora ao pôr em prática o projeto geopolítico republicano da administração Bush dirigido a reorganizar as forças políticas do Oriente Médio, ainda que, neste caso, seu alcance e objetivo sejam, pelo menos num primeiro momento, de nível sub-regional (Palestina, Líbano e, indiretamente, Síria).
edidas e sanções concretas contra o uso desproporcionado e ilegal da força militar por parte de Israel ao atacar a Faixa de Gaza e o Líbano nessas últimas duas semanas. Não acredito na propagação do conflito para além das fronteiras do Oriente Médio de uma guerra que, na verdade, é até sub-regional (o que não envolveria o Irã), porque já há outras duas frentes de batalhas na área (Iraque e Afeganistão), mas principalmente porque o que Israel está fazendo é servir a sua potência protetora e financiadora ao pôr em prática o projeto geopolítico republicano da administração Bush dirigido a reorganizar as forças políticas do Oriente Médio, ainda que, neste caso, seu alcance e objetivo sejam, pelo menos num primeiro momento, de nível sub-regional (Palestina, Líbano e, indiretamente, Síria).