Tese de doutorado mostra que a charge foi uma importante ferramenta de denúncia e análise das contradições no mundo do trabalho. Por Mário Camargo, maio de 2005, para o Boletim NPC

Rozinaldo Miani, autor da tese, é jornalista, doutor em História pela Unesp de Assis-SP, professor da disciplina de Comunicação Comunitária e Popular na Universidade Estadual de Londrina e coordenador do curso de Especialização em Comunicação Popular e Comunitária na mesma universidade. Sua tese de doutorado aborda a influência da charge no sindicalismo brasileiro, mais especificamente no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC durante a década de 90. E é sobre esse assunto que o NPC foi conversar com ele.

Boletim do NPC – Do que trata exatamente a sua tese?

Rozinaldo Miani.  O título do é: as transformações no mundo do trabalho   um olhar atento da charge na imprensa sindical no sindicato dos Metalúrgicos do ABC.  A preocupação foi poder mostrar como que na década de 90 o movimento sindical, particularmente a imprensa sindical do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC apresentou na suas várias perspectivas as transformações que ocorreram no mundo do trabalho. E a partir dessa contextualização a preocupação foi buscar entender como o movimento sindical, através da sua imprensa, e particularmente da charge como que as questões como o desemprego estrutural, as novas formas de organização da produção como sistema just in time, células de produção, como todas essas inovações organizacionais que se promoveram no interior da lógica produtiva como isso apareceu na imprensa sindical e na charge. E como o movimento de flexibilização de direitos, flexibilização dos salários e flexibilização emprego, como isso apareceu dentro do sindicato e como ele apresentou isso para a categoria.

Boletim do NPC.Qual a razão de você ter optado pela charge?

Rozinaldo. O reconhecimento de que a charge se coloca como um importante instrumento de comunicação para o trabalhador. Pela sua natureza lúdica, pela sua natureza de humor ela consegue ser um transmissor bastante efetivo de idéias e valores e até mesmo de contradições desenvolvidas pela imprensa sindical. O texto, normalmente tem um controle um pouco maior na sua elaboração e a charge acaba tendo um espaço um pouco mais amplo de revelação, de antagonismo. E era essa a nossa preocupação de pensar tudo aquilo que faz parte de uma cultura sindical. Uma cultura sindical permeada por conflitos, por antagonismos, por uma mudança de postura política das direções sindicais. Todos esses aspectos poderiam ser apresentados pela charge de uma maneira mais livre, mais lúdica, com mais humor.

Boletim do NPC. Você faz um recorte do seu estudo a partir da década de 1990. Isso é uma opção metodológica ou a influência da charge não era tão grande em outras épocas?

Rozinaldo. Como o trabalho foi apresentado na área de história esse recorte temporal é uma exigência metodológica. Essa foi a primeira condição que exigiu esse recorte. A questão do recorte temporal nem está na charge, mas está justamente no movimento de transformações do mundo do trabalho. E como no Brasil a gente pode perceber uma mudança bastante significativa com a posse do Collor e durante toda a década de 90 os desdobramentos dessa gestão patrocinada pelo Collor, então o recorte se fez principalmente em função disso. Esse foi um período que marcou significativamente as mudanças no mundo do trabalho e a charge, que já tinha tido uma participação bastante importante como expressão comunicativa dos sindicatos, continuou presente no movimento sindical nesse período.

Boletim do NPC. Você deve ter feito um resgate histórico das lutas dos trabalhadores no Brasil. Como é a presença da charge antes do início do seu estudo?

Rozinaldo. Realizei antes desta tese um trabalho de mestrado na área da comunicação. Nesse momento fiz esse estudo um pouco mais aprofundado da presença da charge na imprensa sindical.  Com o advento no Novo Sindicalismo e com a necessidade de uma reformulação, de uma nova percepção e construção de uma nova linguagem para essa comunicação sindical, a charge apareceu como um elemento fundamental, como um elemento definidor dessa nova linguagem. Esse período da década de 80, a charge se efetivou como um elemento quase que natural da imprensa sindical. Esse talvez tenha sido o momento de consolidação da charge.

Não que as imagens não tenham sido usadas em outros momentos da historia da imprensa. O Movimento Anarquista usou bastante a imagem nos seus jornais. A charge que foi utilizada na imprensa alternativa teve uma importância bastante significativa. Então todas essas experiências anteriores ajudaram a perceber a importância de também na imprensa sindical a gente explorar essa forma de comunicação.  E durante a década de 90 ela se consolidou. Infelizmente hoje ela já não tem essa presença tão significativa, mesmo nos sindicatos que tradicionalmente trabalharam com charge. Mas ainda acredito que ela é bastante constitutiva dessa linguagem da imprensa sindical. 

Boletim do NPC. Você notou muitas transformações na charge da imprensa sindical no período do seu estudo?

Rozinaldo. O Movimento mudou enquanto produção da sua imprensa. Ele deixou de valorizar aspectos mais políticos e ideológicos e passou valorizar outros aspectos mais do cotidiano do trabalhador. Não que isso seja bom ou ruim. E quanto ao movimento sindical, esse sim notadamente abandonou sua perspectiva anticapitalista, de origem da CUT, de origem dos sindicatos que constituíram a trajetória do Novo Sindicalismo. Isso se fez presente de mane

ira muito flagrante na imprensa. A imprensa é efetivamente um espaço em que se pode perceber essa mudança. A charge nesse contexto é capaz de nos mostrar isso por sua natureza de humor, por sua natureza lúdica e também por sua natureza intertextual, que é uma característica da charge. Ela dialoga com outros textos, e outros textos entendidos não apenas como texto que está impresso, mas o texto dos discursos que transitam no interior do Movimento Sindical.  Ele revela todas as contradições e as polêmicas, as dúvidas.

Então tem charge que revela uma situação de luta anticapitalista que o próprio discurso do movimento não revela. Esse potencial da charge se fez bastante significativo para o nosso estudo. Para mostrar que na cultura política sindical desse período da década de 90, mesmo considerando o movimento sindical de natureza essencialmente propositiva e longe de uma perspectiva anticapitalista, ainda existe na constituição dessa frente de luta chamada Movimento Sindical. Existem valores que clamam, que gritam por seu espaço de denúncia e também de valores anticapitalistas. A charge se mostra ambivalente. Ela não está presa a um discurso único e unilateral de uma direção sindical.

“tem charge que revela uma situação de luta anticapitalista que o próprio discurso do movimento não revela”

Boletim do NPC. Parece que a charge está na Vanguarda do discurso sindical. Você acha que ela ajuda o próprio discurso sindical a mudar. Ou ela é mais influenciada pelo Movimento Sindical e se adapta a ele?

Rozinaldo. É preciso considerar o conjunto de forças que atuam no processo de produção da charge. Você tem o chargista que é o mediador de inúmeras idéias que circulam naquele espaço. Você não pode desconsiderar os compromissos e os ideais políticos desse chargista. Mas não é isso única e exclusivamente o que determina a construção de uma charge. As relações gerais estabelecidas com jornalistas e diretores sindicais atuam de maneira efetiva na produção de uma charge. Reconheço um potencial bastante significativo da charge. Continuo acreditando que a charge é um espaço que ainda existe na cultura da política sindical hoje como espaço de resistência. A charge é um espaço em que isso se mostra com mais efetividade, por toda sua natureza de humor.

O humor é um elemento de subversão. Então essa condição do humor permite que na charge você possa exercer isso e por sua condição de ambivalência. Ela não é um instrumento unilateral. Você pode exercitar várias idéias, vários valores num mesmo espaço gráfico. Então eu tendo a achar que a charge tem esse potencial. Agora quando nós temos um sindicato que atua sobre a sua imprensa de uma maneira bastante controladora essa margem fica diminuída. E o que eu percebi foi um pouco isso. Houve uma tentativa de cerceamento da charge, tentar transformar a charge num produto unilateral, mas ainda assim ela tem esse potencial de encontrar momentos de resistência.

Boletim do NPC. Então é possível dizer que esse controle sobre a charge a afastou das páginas da tirou da imprensa sindical?

Rozinaldo. A ação criativa do chargista do chargista não está emana exclusivamente do chargista. Mas de todo o contexto que ele está inserido.

“Continuo acreditando que a charge é um espaço que ainda existe na cultura da política sindical hoje como espaço de resistência. A charge é um espaço em que isso se mostra com mais efetividade, por toda sua natureza de humor. O humor é um elemento de subversão”

..O sindicato também tem a sua intervenção. Com o cerceamento que se faz da charge a ação do chargista fica mais difícil. O chargista acaba se tornando um mero reprodutor, através do traço, de uma idéia que não é dele. Então se desloca parte do processo de criação do chargista para um conjunto de outros atores que busca cercear essa perspectiva mais lúdica, mais de resistência que a charge pode constituir. Por isso eu acho que a charge também deixou de ser esse instrumento tão valorizado. Importantes sindicatos que sempre tiveram em seus quadros funcionais chargistas trabalhando hoje priorizam a foto. Os programas de computador vieram para detonar os profissionais da charge. Há ainda na mentalidade de alguns dirigentes sindicais, eu diria que da grande maioria, que a imagem é tão somente para dar leveza ao texto. Ela não cumpre grandes funções. Os sindicatos que ainda reconhecem na charge uma função polítizadora, formadora, reflexiva, esses ainda insistem e continuam com o uso dela.
 

Boletim do NPC. Se é possível concluir uma tese, como que você concluiria seu trabalho?

Rozinaldo. O mundo do trabalho no Brasil na década de 90 passou por transformações significativas. Acompanhou o movimento da internacionalização da economia, nesse movimento identificado como mundialização do capital. Sofreu todas as agruras do ideário neoliberal implantado aqui de maneira avassaladora e em sintonia com todos os pressupostos do consenso de Washington. O mundo do trabalho sofreu efetivamente esse impacto aqui no Brasil. O Movimento Sindical abandonou de uma maneira hegemônica, não plena.

“Há ainda na mentalidade de alguns dirigentes sindicais, eu diria que da grande

maioria, que a imagem é tão somente para dar leveza ao texto. Ela não cumpre grandes funções.”

..A hegemonia no Movimento Sindical se define por um sindicalismo propositivo, de cooperação, de consertação social. A luta anticapitalista desse Movimento Sindical foi na sua maioria abandonada e isso se expressa de maneira bastante efetiva na imprensa sindical e a charge participa desse processo, reforça esse processo obviamente. Mas ela também indica que existem detalhes, existem tensões que não estão plenamente resolvidas. Não estão resolvidas porque elas revelam essa ambivalência desse discurso sindical. Ela mostra que no interior de um discurso sindical há ainda valores que estão muito mais identificados com a luta anticapitalista, que estão presente num discurso de um sindicato propositivo que não visa mais mudança da sociedade. Não tem uma perspectiva transformadora.