[Katia Marko – Brasil de Fato/Porto Alegre] “Surpreendente seria a mulher – transformada em ‘bode expiatório’ – não temer as iniquidades de um golpe militar, esquecer a perseguição que sofria, as violências do DOI-CODI, do Parasar, CIA, CNS e todos esse horrores que se desencadeavam pelo Brasil a fora. O livro da fuga não é uma bíblia de mil páginas: é o medo absoluto. O terror total. Amores sempre rolaram na vida de um ser… passados e esquecidos já nem são amores. São o vazio e o nada.”

Assim começa a carta “O amor que fica”, que Jurema Finamour escreve à Editora Vozes. Ao opinar sobre os originais de seu livro de memórias, dizem: ‘É um livro de memórias políticas-profissonais… Lê-se com interesse. Há, no entanto, um surpreendente silêncio sobre a vida amorosa-afetiva da autora”.

Com essa carta, a jornalista e professora aposentada Christa Berger encerra a biografia Jurema Finamour – a jornalista silenciada, aventurando-se pela primeira vez no mundo literário. Com uma destacada vida acadêmica, já havia lançado A terra e o texto: campos em confronto, e organizado o livro O jornalismo no cinema. Mestre em Ciências Políticas, doutora em Ciências da Comunicação, foi professora-pesquisadora nas faculdades de Comunicação da PUCRS, UFRGS e Unisinos.

O livro de 300 páginas, resultado de pesquisa de quatro anos, foi editado também por uma mulher, Clô Barcellos, da Editora Libretos.

“Chegou o tempo em que o tempo me pertence (já criei filhos e garanti minha sobrevivência) e a curiosidade vaga sobre a Jurema Finamour e seu livro que li quando tinha 16 anos transformou-se em investigação – jornalística/acadêmica”, conta Christa, que pôs o projeto em ação durante a pandemia.

Segundo ela, a leitura dos 11 livros de Jurema Finamour a que teve acesso, depois de lidos exerceram sobre ela a questão recorrente que ouve de quem fica sabendo do seu livro: ‘Como eu nunca ouvi falar em Jurema Finamour? Como nunca vi referências a seus livros?’

“Dos livros fui aos arquivos de jornais para encontrar suas publicações. Escreveu em A Manhã, Diretrizes, Imprensa Popular, O Semanário e criou um jornal feminino não feminista – fazia questão de enfatizar -, chamado Mulher Magazine. As personalidades citadas em seus livros foram entrevistadas por ela e as entrevistas publicadas nesses jornais. Os arquivos digitais são maravilhosos para quem sabe usar ferramentas de busca e armazenamento, que não é o meu caso. Penei, aprendi um pouco e chamei a Juliana Lisboa, ex-aluna do doutorado, para me auxiliar nesse desafio”, conta Christa, que também agradece todo o auxílio dado pelo escritor Mario Magalhães, autor de Marighella – O Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo, com quem fez um curso sobre como escrever biografias durante a pandemia.

Nesta entrevista, em que recebeu o Brasil de Fato RS em sua casa, fala dessa mulher apagada da história, e que foi muito além do seu tempo. Jurema nasceu no dia 26 de janeiro de 1919, em São Paulo. Em 1937, muda-se para o Rio de Janeiro e tem seu registro de jornalista em 1942. Já em 1947, lança e dirige a revista Mulher Magazine, quando passa a usar o sobrenome Finamour. Sua última publicação é a autobiografia A mulher que virou bode e a reedição de Vais bem, Fidel como novo título, Contra toda expectativa, Cuba chega lá. Morre no dia 8 de setembro de 1996, aos 77 anos, e é enterrada dia 9 no cemitério do Caju, no Rio de Janeiro.

“Escrever este livro me ajudou a me aproximar da Jurema, ora Yari Ferreira, ora Finamore, ora Finamour, sem idealizações. Solitária, intransigente, culta, movendo-se entre grande exposição nos anos 1940 e 1950; fugitiva e exilada nos 1960; nos 1970 brigando e lutando para voltar ao seu cargo como funcionária pública; fazendo terapia e escrevendo para exorcizar suas vivências e lembranças, como disse no livro A Mulher que Virou Bode: ‘escrevo para me livrar das lembranças que mesmo passado tempo tão largo ainda doem e incomodam, com as consequências, embora também divirtam com a farsa e o ridículo que realmente foram insuperáveis’.

Confira a entrevista.

Brasil de Fato RS – Como surgiu a ideia de escrever sobre a jornalista Jurema Finamour?

Christa Berger – A ideia surge dentro desse contexto de muitas mulheres estarem pesquisando e trazendo à tona história de mulheres. É um pano de fundo, de certo modo, da minha vontade de falar sobre a Jurema, mas tem uma curiosidade pessoal. É uma jornalista que li, nas férias escolares – verão de 1966 – em Ijuí (RS), o livro Vais bem, Fidel, trazido da casa da amiga onde livros “subversivos” eram emprestados com recomendação de discrição. Eu tinha 16 anos! Pouco se falava sobre Cuba e deve ter deixado em mim algum tipo de impressão. Algum resquício de jornalista em mim, não sossegou por quase 50 anos.

Acho que se junta a isso uma curiosidade pessoal, eu jornalista, professora de jornalismo, nunca tinha ouvido falar nela. Achava que ela tinha só este livro talvez ou não fosse muito importante. Durante todos esses anos, olhava numa biblioteca, ia para um congresso, perguntava, se falava em história das jornalistas e nunca (aparecia) o nome dela. Comecei a pesquisar e fiquei muito impressionada com o material que encontrei.

BdF RS – Mas também tem relação com uma história do teu passado…

Christa – Sim, essa história só vou encontrar mesmo muitos anos depois. A melhor amiga minha, Marília Freitas, tinha muitos livros em casa. O (pai dela) seu João Cândido Freitas – foi delegado e, em 1965, era do Grupo dos 11, ligado ao Brizola, talvez fosse do Partido Comunista – estava lotado em Rosário do Sul onde Jurema foi presa e deu de presente para ele, muito tempo depois, o livro Vais Bem, Fidel. Li esse livro e devo ter ficado impressionada. É uma reportagem sobre Cuba, onde ela já enfatiza questões da mulher. Quando descobri tudo isso, o seu João já tinha morrido. Teria sido tão lindo falar com ele sobre isso.

Ela descreve ele como uma pessoa fundamental que a protegeu quando foi presa em Rosário e teve que ser devolvida para Santana do Livramento. Ela está no trem, sente que tem alguma movimentação de polícia e, de repente, entra o seu João e diz: ´A senhora está presa`. Ele diz: ´A senhora está nervosa, desce`. Na delegacia, ele fecha uma cortina e diz: ´Também estou sendo perseguido. Estou só aguardando a minha aposentadoria. Se a senhora confia em mim e tiver alguma coisa preciosa, deixa comigo`. E ela fica espantada – é ela quem descreve isso – deixa uma mala de mão onde estão as coisas mais importantes, ele esconde e leva para Ijuí. Tem essa história dele que só fico sabendo agora ao ler o livro de memórias dela que se chama A Mulher que Virou Bode. Ali está a descrição do seu João, que era uma pessoa discreta, singela, e hoje sei que foi uma pessoa muito importante na resistência, na luta no período da ditadura.

Quando é presa e depois enviada ao Dops, aqui em Porto Alegre, em 1965, é que ela foge. Talvez ela não precisasse ter saído do Brasil, mas todos os jornais chamam: ´Polícia está buscando Jurema Finamour, secretária do Brizola, secretária do Prestes`. Chamam assim porque era muito vinculada a eles, mas não era militante. Não teve essa proteção, não era filiada ao partido. Aí ela pega um ônibus e se manda do Brasil. Vai primeiro pro Uruguai. Fica junto com o grupo do Brizola em Montevideu.

Depois vai pro Chile, fica na casa do (poeta Pablo) Neruda, depois vai pra Alemanha, onde fica vinculada à Ana Zeguer, que é uma grande escritora do partido comunista alemão. Vai pra Paris buscando um lugar e fica na casa do (geógrafo exilado) Josué de Castro. Fica pensando o que fazer. Ela tem uma estrutura familiar muito importante pro pai dela, pro irmão dela que estão sendo perseguidos. O irmão perde o emprego, o pai está com dificuldades, ela é exonerada. Eles moram no Rio de Janeiro, mas no Interior. Alcalis é o nome da empresa onde o irmão trabalhava, e ela, que era funcionária pública, é exonerada imediatamente em 1964. Então diz: ´Eu tenho que voltar e correr o risco`.

O que ela tinha eram os livros sobre a China, a União Soviética, a Coreia e Cuba. E estes livros imediatamente, principalmente o da China, tiveram uma repercussão (a ponto de) serem buscados na casa. Ela diz: ´O que mais sinto não são que os meus livros estão sendo incinerados ou recolhidos da editora e das livrarias. É que quando a polícia chega na casa de alguém, encontra os meus livros com dedicatória, e tantas coisas que eu fiz nos sindicatos, falei sobre o livro e teve autógrafos, que eu fico triste com o que as pessoas vão passar por terem meus livros`.

Jurema foi uma perseguida. Pelo que escreveu. Volta pro Brasil, correndo esse risco, e é presa. Quando está aqui no Dops, quem é que informa que ela está presa? Ela é a primeira mulher a ser presa no Rio Grande do Sul. Nem em Rosário, nem em Santana do Livramento, sabiam o que fazer com ela. E quem informa para as agências internacionais é o seu João. É ele. E aí sai a notinha na Última Hora (hoje Zero Hora). E a Maria Helena Correia Pires lê essa notinha. Ela já conhecia a Jurema de quando ela lançou o livro sobre Cuba em Porto Alegre, no Teatro de Equipe. Quando a Maria Helena Correia Pires, a Heleninha, lê que ela está presa, vai no Dops e acha um jeito de ter contato com Jurema. Então foi assim: o seu João mandou para a Associated Press e a France Presse e a notícia foi publicada na Última Hora que a Helena leu e, logo, começou a trabalhar.

BdF RS – Maria Helena já era advogada nessa época?

Christa – Não, era uma estudante. Conta que foi inclusive na casa do Erico Verissimo. E o Erico buscou também defender a Jurema, conhecia os livros dela. Conta que o Erico a recebeu e que teria ajudado. O responsável pela prisão dela foi o (secretário da Segurança Pública/RS, coronel João Osvaldo Leivas) Job, que depois entra na lista da Operação Condor (acordo entre as ditaduras do Cone Sul para prender e eliminar adversários políticos). Possivelmente ali no Dops ainda estão aprendendo o que fazer com uma prisioneira mulher e dão acesso à Heleninha, que vai lá todo o dia, leva comida… Depois de 50 dias, que é o prazo que alguém podia ficar preso, ela é mandada para o Rio de Janeiro de volta.

BdF RS – E por que a importância de resgatar essa história?

Christa – Acho que em todas essas histórias, primeiro pelo fato de ser mulher, tem um apagamento, uma amnésia de gênero, uma amnésia sexista. Ela foi apagada como mulher. Escreveu muitos livros, tem uma presença na imprensa brasileira muito grande, em 1944 ela entrevista o Pablo Neruda no Chile, viajando sozinha. É uma mulher muito à frente do seu tempo. Como nada disso ficou registrado? Como não há nenhum lugar onde se diz o nome da Jurema, que foi a primeira a entrevistar o Pablo Neruda para o Diretrizes (importante revista, depois jornal, fundada em 1938 por Samuel Wainer)?

Folheio os jornais (da época) e fico impressionada. É matéria dela todo dia. Os livros que escreveu e, antes dos livros, as matérias. Ela entrevistou (o presidente Arturo) Frondizi na Argentina, quando ele venceu as eleições, Fidel Castro… Ela foi muito importante pelo que fez como mulher naquele período e isso não era comum. Por outro lado, viveu intensamente com o Rio de Janeiro, com essa cultura carioca. Foi amiga do Vinícius de Moraes, morava na rua Nascimento e Silva, do lado da casa do Tom Jobim. A casa dela era conhecida como ´a casa da mesa sempre posta`, porque adorava receber. O Jorge Amado dizia: ´Eu não deixo nenhum comunista chegar no Rio de Janeiro sem que eu o convide para comer a feijoada da Jurema`.

Tudo isso mostra uma mulher que circulava em ambientes importantes, e isso dentro de uma discussão, de uma compreensão de gênero. Por outro lado, acho que é muito interessante observar um caminho político: como era forte essa história das mulheres, o Partido Comunista, a presença disso até 1964, esses anos que antecedem o golpe militar, eles são de uma riqueza… Quando leio aqueles manifestos pela cultura brasileira, os encontros, os congressos dos escritores, os encontros dos juristas pela paz. É um conjunto de mobilizações no país que é muito rico. Tem muita coisa escrita sobre esse período que antecede o golpe, que também vale olhar do ponto de vista dela, essa mulher muito avançada.

Ela é companheira do Letelba Rodrigues de Brito, advogado muito importante do PC. É o advogado do Prestes. Tem um hotel em Itatiaia, e a Anita Prestes diz que eles foram lá e que foram dias muito felizes do pai dela, de poder descansar. É personagem do Jorge Amado na literatura. Reconheço esses pedaços do livro do Jorge Amado (onde aparece) o Letelba Rodrigues de Brito – e ela não é casada com ele, ela é a companheira dele – e a Jurema diz: ´Não vou me filiar ao Partido Comunista por ser a mulher dele. Quero ter a liberdade de, sendo de esquerda, sendo feminista, não ter nenhuma filiação`. Ela tem uma singularidade para aquele momento.

BdF RS – As obras da Jurema são livros-reportagem e, na universidade, já dissestes que, mesmo como professora, nunca ouviras falar nela. Quando estudamos jornalismo literário, a gente conhece o João do Rio, mas nada sobre ela.

Christa – Sim, tenho colegas que estudam livros-reportagem, a professora Beatriz Marocco que fez uma cronologia desses livros. Claro, são livros datados, reportagens sobre esses países que estão fazendo esse ingresso como comunistas, mas nessa medida também são importantes para serem resgatados e lidos. Ao mesmo tempo, ela tem esse livro que eu gosto muito Bem Te Vi, Amazônia, que Jurema escreve quando volta. Ali, por volta de 1966, ela tem dificuldade de conseguir trabalho, não retorna logo para a condição de funcionária pública. Trabalha com muitas coisas nesse período e ganha um dinheiro com uma proposta para uma coleção de autores latino-americanos. Propõe isso para a (editora) Brasiliense. Ela traduz, prefacia e tem uma intimidade com esses livros.

Quando recebe esse dinheiro resolve ir para a Amazônia. É uma repórter com esse sonho de conhecer a Amazônia. Fica muitos meses lá. Vai de navio e escreve esse livro que ninguém edita na época. Gosto muito desse livro. Seria legal as faculdades usarem como referência para pensar livro-reportagem.

Como é muito boa cozinheira e precisa de dinheiro – e esse livro que imaginava que seria bem sucedido nem foi editado – escreve três livros de culinária. Um deles com prefácio da Rachel de Queiroz, em outro o Carlos Drummond de Andrade fez uma crônica linda sobre ela cozinheira, e, para o Antônio Houaiss, em duas enciclopédias ela faz o verbete ´Culinária`.  Fui aqui na Biblioteca Pública e quando li aquilo: Jurema Finamour, páginas e páginas do verbete sobre culinária, pensei ´Como é que essa mulher não é conhecida no Brasil?` São verbetes que circularam, Antônio Houaiss a convidou para fazer esse, e depois, claro, o livro talvez mais polêmico, que trata do Neruda.

BdF RS – Conta um pouco dessa história.

Christa – Ela gostava de poesia, talvez gostasse de ter sido até poeta. Ela faz umas pequenas imersões na poesia. Mas não encontrei o único livro dela, assim rudimentar, que escreveu de poesia. E aí ela consegue ir ao Chile em 1945 e entrevista o Neruda. Vai porque o embaixador do Chile no Brasil organiza (o encontro) para ela. E a (poeta) Gabriela Mistral é consulesa no Brasil e fica amiga dela também. É uma viagem definidora. É a primeira viagem para o exterior…

BdF RS – Ela estava trabalhando num veículo?

Christa – Ela faz para o Diretrizes. Leio notícias dessa visita ao Chile e é impressionante como gostam dela, como ela circula e tal. E aí, quando o Neruda passa a vir ao Brasil também, ele sempre vai na casa dela. Ele é, inclusive, senador pelo Partido Comunista Chileno, e vem ao Brasil para congressos de escritores. O PCB era muito forte nessa área da cultura e da literatura, como a expressão artística hegemônica daquela época é a literatura e eles fazem os congressos, o Neruda vem diversas vezes.

Em 1964, quando ela sai do Brasil, e ele sabe que ela está em Montevideu, o Neruda está lá também. E aí ele a convida para ir trabalhar com ele, Neruda, e ela até diz: ‘a primeira vez em que aceito ser secretária, é para organizar a festa de 60 anos do Neruda’. Ele já é casado com a Matilde, e aí ela tem uma experiência muito ruim com ele. Acho que ela idealizou, como sendo amiga dele, que ele ia lá trabalhar e, quando chega, ela é tratada como uma empregada. E uma empregada como os outros empregados que já se queixam de que o Neruda era o (patrão) que pagava pior. (Os Neruda) são mesquinhos com as coisas de comer, ele é superexigente, e ela se decepciona profundamente. Ela diz que ele faz tudo só como marketing: escreve o mesmo artigo, manda o mesmo artigo, tem uma preocupação em ser todo o dia reconhecido, ´e me usa para fazer isso e eu não queria`.

Ela volta para o Brasil, passa todo esse tempo, e escreve o livro Pablo e Dom Pablo. E o Dom Pablo é esse macho latino-americano que trata mal as mulheres. Esse livro vem num mau momento, justamente quando está acontecendo o golpe chileno e o Neruda morre. Há essa questão sobre se ele foi assassinado ou se morreu de morte natural. Ele não pode ter um enterro digno da sua condição. Salvador Allende, grande amigo do Neruda, é morto.

Então, naquele momento, a Jurema lança um livro falando mal, digamos, entre aspas, do Neruda. É uma das razões que eu levanto como hipótese para ela ser apagada, silenciada, esquecida. E o que eu diria como singularidade da Jurema é o fato dela ser muito independente, fazer do seu jeito as coisas sem pensar mais estrategicamente. Se não, ela não teria publicado esse livro. Diria que, apesar da repercussão muito crítica ao livro, poucas pessoas, acho que a Rachel de Queiroz e mais um outro crítico, vão dizer que os mitos precisam ser enfrentados. Muitos anos depois, quando ela escreve seu livro de memórias, faz um capítulo sobre o exílio no Chile e conta do mesmo jeito que escreveu em 1975.

A atitude de Jurema de não submissão aos homens e aos padrões comportamentais da época, e a coragem de registrar sua indignação com o que viveu ou viu acontecer expondo homens com seus nomes próprios como fez com Pablo Neruda e Luiz Carlos Prestes, a transformam em uma feminista antes do tempo dos movimentos feministas organizados. E, como outras mulheres de seu tempo, que ousaram desobedecer, a consequência foi seu “cancelamento” como diríamos na linguagem atual.

BdF RS – E ela veio a morrer logo em seguida?

Christa – Em 1996. Dois anos depois do livro de memórias.

BdF RS – Esse livro de memórias teve repercussão um pouco melhor?

Christa – Não. Ela já estava muito esquecida, ela se recolheu. Deve ter mudado (de endereço) algumas vezes. Aqui, a família Guillon deve ter sido muito legal com ela. Em 1964, quando a polícia vai lá (na casa), eles conseguem fazer com que ela entre e pegue os seus documentos. A polícia está na frente e ela consegue fazer uma mala para sair. Uma noite, o doutor Guillon, ele era um advogado, vê a luz acesa (na casa de Jurema) e, de manhã, aquela mesma luz ainda está acesa. Ele entra e vê que ela está jogada no chão. Deve ter tido um AVC. Ela fica oito meses hospitalizada. Quem cuida dela é a Maria Helena, a amiga que permaneceu amiga. A lembrança que um filho do doutor Guillon – que descobri pelo Facebook – é de que ela era uma pessoa muito discreta.

Mesmo com 70 anos ainda quis aprender a usar o computador. Ou seja, não deixou de escrever. E uma coisa que fez neste período – não sei onde ela publicava – são uns cadernos sobre Cuba. Continuava muito próxima de Cuba. Faz três panfletos. Tem nome de editora e tudo. É a residência dela. Então, trabalhava muito, escrevia, pensava, publicava, mas não queria mais contato com muita gente.

Foi cancelada, escanteada. Teve um período que foi para um sítio, fez terapia, e diz: ´Eu precisei me recolher e entender tudo isso que aconteceu`. Não tem filhos. Tem dois meio-irmãos, acho que mais distantes, e dois sobrinhos, que são os herdeiros desse patrimônio dela. Mas não quiseram falar, não quiseram dar depoimento.

BdF RS – Qual a importância de resgatar essa história, tendo em vista tudo que a gente está passando no país nos últimos anos, a questão da militarização ainda muito presente, e de toda essa história vivida antes do golpe militar, com o golpe militar, essa rica história que foi apagada, ao lembrarmos os 59 anos do golpe?

Christa – Tudo que estamos vivendo foi porque não demos suficiente importância a pensar os fatos políticos. Deixamos relegado a um segundo plano como sociedade, como partidos políticos, como esquerda, o que aconteceu. Então não sei. Quando a gente vê, por exemplo, um filme como Argentina, 1985, diz: `E nós, fizemos o quê? Quem foi punido de fato entre os militares? E o que eles fizeram?` Tem uma carência de memória, uma ausência de punição que seria fundamental sim.

Talvez tudo o que estamos vivendo também seja fruto e resultado que a gente viveu. Acho que nunca é tarde para fazer aquilo que faltou fazer. Lembrar para não voltar a deixar acontecer, para não acontecer de novo. Não podemos botar no nosso horizonte a possibilidade de voltar a uma situação como a que vivemos com Bolsonaro. Acho que a educação é fundamental nesse sentido, desde o curso primário até os cursos de jornalismo.

Penso nesses dois lugares, a educação e a comunicação, que também ficaram muito carentes. Não acho que o meu livro vá modificar isso, mas é um exemplo do que a gente deve fazer. Trazer as histórias do que aconteceu. Acho muito linda essa história de um delegado que se solidariza com uma perseguida que, estando na prisão, recebe o apoio do Erico Verissimo. É uma história muito legal para a gente recuperar como necessária em todos os momentos.

Confira roda de conversa com Christa Berger no Espaço Amelie, organizado pelo coletivo Querela – Jornalistas Feministas: