Texto: Euro Filho.

Talvez, apenas descrever como foi o encerramento das atividades do curso anual de 2020 não seja suficiente, levando-se em conta todo o estado de poesia que transcorreu ao longo da programação. Além de todas as reflexões necessárias sobre mundo do trabalho, memória das lutas populares e as emergências políticas, os participantes foram premiados com muita música, e uma última mesa que chegou perto de um sarau. 

Obviamente que escutar o debate entre o economista Marcio Pochamann, o sociólogo Giovanni Alves e o cineasta Renato Prata, sobre a condição atual dos trabalhadores, teve um peso gigante. Assim como foi igualmente gratificante ouvir as experiências da jornalista do Conselho Indigenista Missionário, Adi Spezia, sobre o jornal O Porantim, e a importância da documentação histórica das lutas populares, com a historiadora Paula Salles e a jornalista Ana Valim. 

Paula Salles e Ana Valim do Centro de Pesquisa Vergueiro, e Adi Spezia da Conselho Indigenista Missionário na mesa “História, memória e comunicação popular”, mediada por Jéssica Santos.

Entretanto, o dia não seria o mesmo se não tivesse começado com a inspiradora participação musical da cantora e musicoterapeuta Manon Galisteo, que entoou a clássica canção de Violeta Parra, “Gracias a la Vida”, um verdadeiro momento de sublimação dos ouvidos, alma e corações. 

A mesa que fechou toda a programação foi composta por Mauro Iasi, professor da Escola de Serviço Social da UFRJ, Ana Bartira, assistente social e diretora do Ceabir, Gustavo Barreto, jornalista, Luiz Arnaldo, cineasta. O tema “Comunicação e Estado de Emergência” foi trazido de volta para debate, mas nesta ocasião teve a poesia de Iasi, o axé de Ana, a sensibilidade de Gustavo e a criatividade de Arnaldo. 

Uma mesa que não seria especial se não contasse com o jogral feito pelos organizadores do curso, que recitaram um texto escrito pelo jornalista e colaborador do NPC Moisés Ramalho, o mesmo texto que foi parar na Agenda 2021 do NPC. Inspirado na luta pela terra e dos povos tradicionais, destacam-se os versos: “a afinidade da humanidade com a terra, com o solo é tão profunda que está na origem de seu próprio nome, as palavras latinas: homo, hemo e humanus se originam de húmus (terra fértil) ”.

O ambiente lírico que tomou conta da sala virtual, inspirou até mesmo os participantes do curso a abrirem suas câmeras e recitarem poesias próprias, como foi o caso de Clarice Weisheimer, que declamou um verso inspirado na luta feminista, e outro inspirado nas discussões da mesa, “aqui quem vos fala é a juventude oprimida, o trabalhador explorado, a classe sofrida. A vítima da fome e a mulher agredida, aqueles que morreram e os que lutam ainda”. 

Também houve a participação do músico Zé Martins (Unamérica), que fez lembrar mais uma vez, que com todas as lutas e disputas, é preciso dar “Gracias a la Vida”, pois como diz a própria canção, “obrigado à vida que tem me dado tanto, me deu o som do alfabeto, e com ele as palavras que eu penso e declaro: mãe, amigo e irmão”.

Abaixo segue o texto de Moisés Ramalho lido no jogral:

A nossa casa é o nosso maior bem, é o que nos faz viver.  

A afinidade da humanidade com a terra, com o solo é tão profunda que está na origem de seu próprio nome, as palavras latinas: homo, hemo e humanus se originam de humus (terra fértil). 

Na mitologia ioruba (povo que vive na Nigéria, Benin e Togo) que inspirou nosso Candomblé, Obatalá, o primeiro orixá criado por Olodumaré, em quatro dias construiu Ayê, o mundo em que vivemos tal qual ele é hoje. 

Antes, na Terra só existiam água e pântanos e era um lugar inabitado. Para povoar o lugar, Obatalá, contando para tanto com a ajuda de Nanã — avó de todos os deuses, que rege a lama —, modelou os humanos no barro, dando-lhes vida com seu sopro.

Da cosmogonia guarani, também tiramos a mesma lição de que a humanidade é filha da Terra: Nhanderuvuçu, o que tudo criou, contando com a ajuda de Araci (Lua), desceu à Terra onde hoje é o Paraguai e, a partir dali, concebeu o mundo que hoje conhecemos e também os guaranis. Esculpindo estátuas de argila, misturando a ela várias outras substâncias, Nhanderuvuçu fez Rupave, o pai de todos os povos, e Sypave, a mãe de todos. 

Confirmamos ainda esta relação vital no Antigo Testamento. Adão provém de Adamah, terra em hebreu. Em Gênesis 3:19 lemos “No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás”.

No entanto, hoje, os laços que unem os homens e mulheres à sua casa, a Terra, são outros que o de filiação.

Usurpada e recortada pelo latifúndio e suas infindáveis cercas, espoliada e violada pelo agronegócio, com sua monocultura e pesticidas, agredida e sangrada pelos megaprojetos de barragens e mineração, a mãe terra vai ficando cada vez mais escassa para os que a têm como sua morada: os povos indígenas, as comunidades quilombolas e tradicionais, assim como aqueles que vivem da água, como os pescadores artesanais. A nossa casa, nua, envenenada e ardendo em chamas pede socorro!

Mais do que nunca, temos que ouvir seu apelo: é ela, e somente ela, que nos faz viver, que nos acolhe, que nos alimenta, que mata a nossa sede e que nos oferece tudo de que necessitamos para nossa existência. Nossa morada, este mundo em que vivemos, a biosfera, é um ser vivo e como tal deve ser tratado.