(Mariana de Oliveira Silvério)
“Yo tengo tantos hermanos que no los puedo contar y una hermana muy hermosa que se llama libertad”.
Entrevista concedida pelo consultor em Comunicação Paulo de Tarso Riccordi (53) a Mariana de Oliveira Silvério, estudante de Relações Públicas da UNESP de Bauru sobre comunicação intercultural. Paulo já participou como palestrante de dois cursos anuais do NPC. É bacharel em Comunicação Social (PUC-RS) e pós graduado em Ciência Política pela UFRGS-RS.
Mariana – Como você vê a questão da Cultura atualmente?Alguns autores defendem que estamos vivendo um período de choque entre civilizações, especialmente entre o Oriente e o Ocidente; outros prevêem fenômenos de tribalização da sociedade. Para você, em que sentido caminha a relação “entre culturas diferentes”?
Paulo de Tarso Riccordi – Putzgrila! É assunto para um livro! Estou te respondendo ao mesmo tempo em que ouço um velho disco dos Mutantes, o mais brilhante e revolucionário grupo musical que o país já assistiu, na passagem dos anos 60 para os 70. Absolutamente brasileiro e ao mesmo tempo universal, Os Mutantes. Acompanharam o Gilberto Gil no histórico Domingo no Parque, brasileiríssimo; compuseram a mais que genial Dom Quixote, totalmente avant garde, insuperável em sua mistura-síntese de muitos gêneros e muitas linguagens. Fez coisas líricas, fez o velho rock’n roll e também o rock mais pesado que poucos grupos ousavam fazer naqueles anos, juntando admiradores no mundo inteiro àquela época e hoje!! Esse grupo foi contemporâneo de Gil, Caetano, Chico Buarque, Elis Regina, MPB 4, Paulinho da Viola, Zé Keti, Maria Betânia de Carcará, Roberto e Erasmo Carlos. Ao mesmo tempo brasileiro, tropicalista, e absolutamente universal, up to date (na verdade, estavam adiante de seu tempo). Que caldo grosso deu essa fervura intercultural, multicultural, transcultural! Afinal, o que foram Os Mutantes?
Aqui na minha limitada visão, penso que as coisas só se dividem em Escolas, Eras, tendências para fins de categorização acadêmica. Na vida mesmo as coisas estão permeadas, coexistindo e coabitando culturas diversas, eras diferentes. De uma parte, grupos sociais de um mesmo território, como a cidade de São Paulo, vivem estágios econômicos diferentes e nunca atravessarão de um para outro – a pré-história econômica e cultural de muitas favelas paulistanas jamais “progredirão” a outros estágios do capitalismo. Essa exclusão (econômica, cultural, espiritual, comunicacional, etc.) faz parte e compõe o mesmo mundo dos Jardins e da página da Joyce Pastovich. Esse é o multiculturalismo capitalista, que se manifesta na apropriação, a seu modo e ao alcance das possibilidades econômicas dos indivíduos, de bens materiais e culturais como o vestuário. Acho que este sempre foi um grande exemplo disso – na mesma calçada há de todos os estilos de vestir. Não se trata de “releitura”, mas da apropriação possível a cada um, mantido o mesmo grau de utilidade e dignidade da peça original, em algo sempre reconhecível (às vezes caricaturalmente) em sua apropriação “popular” vendida nos camelódromos.
É um movimento permanente que reflui momentaneamente para a homogeneização no instante do lançamento de modas, produtos, comportamentos, para logo expandir-se para a heterogeneidade da apropriação possível e diversificada que cada pessoa e grupo social fazem daquela matriz. A propaganda gera, como subproduto na necessidade de produção e venda massiva, modelos “unos”, modas “universais”, que imediatamente após o bem entrar em circulação passa por essa múltipla apropriação individual, a lhe resignificar, a lhe dar diversidade dentro da massificação. Cada qual (pessoa, grupo ou país) necessita de sua identidade, precisa diferenciar-se para reconhecer-se, almeja perceber um quefazer próprio e exclusivo e isso serve para os bens e símbolos que apropria e incorpora – nos quais, para dizer quem é, põe sua marca. Mas, bem entendido, nada disso é estável; está no permanente movimento das marés: expansão para incorporação, refluxo para tradução, expansão para difusão e dispersão e novamente incorporação, etc., etc., etc.
O jazz é outra síntese poderosa disso tudo. Matricialmente música de expressão e identidade negra, manifestou-se como instrumento de lamento e protesto (até mesmo formal, do ponto de vista da quebra nas regras e normas musicais brancas) e foi adotada com esse mesmo sentido por brancos que sentem-se eles próprios marginais do mundo branco norte-americano; para adiante atravessar culturas de classes diferentes e antagônicas nos Estados Unidos e perder, como o jeans (e o penteado rastafari dos loiros filhos da elite paulistana de hoje…), sua carga “marginal” e ser incorporada pela elite americana, européia, japonesa e influenciar (e ser depois influenciada) por outras músicas nacionais – como modificou o samba para gerar a bossa nova e logo beber nesta nova fonte de realimentação do próprio jazz.
Desse modo, o mesmo bem, o jazz, foi tanto foi manifestação de identidade negra sulista, quanto de identidade dos out side norte-americanos de todas as raças, quanto de identidade de bom gosto e sofisticação musical em todo o mundo, quanto de identificação de uma elite de sofisticados padrões de consumo simbólico (tanto pela raridade e preço dos shows, quanto dos preços das gravações, quanto por sua presença na publicidade de bens de alto custo). Quantas categorias temos aqui?
Penso que em cada aproximação do zoom encontraremos uma categoria explicativa. Interculturalismo, num sentido, transculturalismo logo adiante, multiculturalismo a operar em campos de diversidade cultural para logo após revelar diálogos interculturais (ouça Stan Getz, Edú Lobo). E Tom Jobim, Egberto Gismonti, Naná Vasconcelos são o quê? Nacionais? Interculturais? Transculturais? Tudo isso a seu tempo?
Cultural masculina, cultura feminina, rural e urbana, intelectual e braçal, juvenil e sênior, autóctone e mundial estão todas aqui, neste edifício, eventualmente convivendo sob dominação de uma, convivendo na diversidade, interpenetrando-se e modificando-se, mantendo sua matriz e buscando elementos do outro, transitando de um para outro campo cultural; para logo depois mover-se novamente feito a água, ela mesma sob muitas formas.
A única coisa que eu acho que tenho certeza é que os movimentos de homogeneização da cultura, visíveis na publicidade e na mass midia, não resistem por muito tempo a seu enunciado inicial. Em seu próprio tempo de consumo são apropriados de modos diferenciados por pessoas e culturas diferentes, que produzem terceiras coisas. Acredito que neste campo (no sentido dado por Pierre Bourdieu) não há antíteses e sínteses, mas mediações e movimentos de aproximação e distanciamento, incorporação e recusa, nos limites do, então, possível entre as culturas.
“As coisas estão no mundo o que
eu preciso é aprender” (Paulinho da Viola, se não me engano).
Mariana. Você acha que a sociedade está preparada para conviver com a diversidade cultural?
Paulo de Tarso Riccordi – Não se trata de “estar preparada”. A realidade é essa. São Luiz do Paraitinga ou Jacareí, no final do século XVIII, a cultura rural e cabocla, com o tempo ainda marcado pela luminosidade solar, já conviviam com a cultura européia, para quem os caipiras extraiam o ouro e as pedras preciosas. Convivemos com muitas culturas e muitos “tempos”. Aqui na Paulicéia Desvairada convivem no mesmo momento, em espaços contíguos (às vezes único), períodos históricos e econômicos originalmente separados por séculos. Há quem diga – e eu concordo – que isso não se trata de estágios diferentes da “evolução”, mas características diferentes do mesmo processo, o capitalismo, que vive disso mesmo: da profunda diversidade, qualidade e quantidade da produção e da apropriação de bens e cultura.
Mesmo a indústria cultural e seus mass media – a porem instantaneamente em contado grupos humanos (aparentemente) diferentes e a disponibilizarem quase imediatamente (muitas vezes simultaneamente) o mesmo produto em todos os quadrantes do mundo – não tem conseguido eliminar a diversidade cultural, que corresponde aos diferentes modos de vida que coexistem. A homogeneização cultural é impossível. Significaria a hipótese do fim da história, o não movimento, a não necessidade de identidade, a despersonalização. O mundo de Metrópolis.
Mariana.Como tem sido a sua experiência no relacionamento com culturas diferentes da sua?
Paulo de Tarso Riccordi -Nasci em Bagé, Rio Grande do Sul, a dez minutos da fronteira do Uruguai. Tenho tia e primas lá, como muita gente da fronteira tem família binacional (ou trinacional, uma vez que a Argentina está ali na frente de Uruguaiana, na outra esquina do Rio Grande). E sempre senti que tanto temos identidade com os demais brasileiros por um lado, quanto temos identidade com os gauchos do Prata[1], pelo outro, embora goianos nada tenham a ver com os uruguaios. Vá ver os austríacos – em quê se diferenciam dos alemães ou dos húngaros?
Vivi seis anos como professor-visitante do Centro Internacional de Estudios Superiores en Comunicación Para América latina (Ciespal), em Quito, no Equador. Lá reuníamos a um só tempo equipes de televisão e profissionais e professores de rádio do Caribe, América Central e do Sul, a trabalhar, pensar, conviver por um mês. O que aprendi nessa experiência riquíssima? a) que dominicanos são diferentes de chilenos; b) que chilenos e dominicanos são diferentes de alemães; c) que professores dominicanos e chilenos são diferentes de cameramen dominicanos e chilenos; d) que repórteres cubanos e cameramen de esquerda brasileiros são diferentes de editores não-comunistas cubanos ou panamenhos; e) que editoras peruanas e equatorianas são diferentes de editores brasileiros e bolivianos; f) que brasileiros, cubanos, dominicanos, panamenhos, peruanos, bolivianos são diferente de macacos e girafas; g) e que todos esses são diferentes de pedras e de árvores. Mas árvores, peruanos e abelhas são diferentes de pedras, cadeiras e água… (risos, muitos risos)
Uma síntese? Que mulheres têm identidades entre si, intelectuais entre si, pessoas de esquerda entre si, latinos entre si; do mesmo modo em que essas mesmas pessoas tecem outras identidades com pessoas de outros subgrupos. Enfim, com todos é possível encontrar identidades e heterogeneidades.
Uma vez traduzidos, os livros não servem a qualquer pessoa, de qualquer nacionalidade?
“O leite branco da mulher branca, da mulher vermelha, da mulher negra, é o mesmo leite branco. O sangue vermelho do homem vermelho, do homem negro, do homem branco, é o mesmo sangue vermelho. Deus pôs dentro de homens e mulheres tão diferentes o mesmo leite branco, da cor da paz, o mesmo sangue vermelho, da cor da paixão” (JG de Araújo Jorge, citado de memória, pode haver palavras trocadas aí, mas o sentido é esse mesmo).
Mariana – Como jornalista (comunicador) você tem contato com diversos países e suas culturas, ou pelo menos teve durante o Fórum Social Mundial. Na sua opinião, quais países possuem mais afinidades culturais com o Brasil? Em que países as diferenças culturais constituem-se em problemas para o relacionamento com o Brasil?
Paulo de Tarso Riccordi – minha mãe, uma típica mulher da elite rural, que viajou quase nada, quando eu retornava depois de mês e meio no exterior, me perguntava: “e como eles são?” Depois de tanta e tão intensa convivência (inclusive amorosa) com pessoas de várias nacionalidades, acredito que qualquer pessoa pode integrar-se com outra de qualquer nacionalidade e encontrar identidades suficientes para integrar-se. E por uma razão básica: compartilhamos dos mesmos instintos vitais, que podem ser exercitados com outros seres humanos, independente da nacionalidade: amor, ódio, inveja, solidariedade, fraternidade, empatia, desejo, repulsa.
Não creio ser possível fazer essas sínteses quando se fala de povos. Dizer que este ou aquele povo ou grupo social tem esta ou aquela característica dá a falsa idéia de que seja possível a homogeneidade e a fala idéia da possibilidade de pertencimento exclusivo a um grupo.
Já conviveste com brasileiros em Buenos Aires ou Miami? Este brasileiro em férias argentinas ou americanas acaso tem alguma coisa em comum com o brasileiro a trabalho em São Paulo? “Em Roma como os romanos”, diz o ditado. As pessoas buscam as proximidades, as afinidades com o grupo em que estão naquele momento. Até as guerras são assim. Quem reforça as identidades entre nós contra as diferenças com os outros são os interessados nos combates – militares, esportivos, políticos -, quando necessitam fortalecer a unidade inquestionável destes contra aqueles. “Nós somos iguais, temos objetivos comuns; ele são diferentes, eles são a ameaça a nós” (um monte de meninos com medo de morrer, nos dois lados…).
Vejo afinidades em algumas coisas entre uruguaios e gaúchos – vivemos sob o mesmo clima, a mesma economia, a mesma geografia, a mesma tradição histórica. Minha língua se parece mais com o castelhano que se fala na cidade uruguaia de Melo do que com o português de Propiá, em Sergipe. Já um pernambucano dança mais parecido com um cubano do que com um catarinense. Um dominicano do litoral pensa como um catarinense de Florianópolis, tão diferente de seu irmão de Blumenau quanto de membro da colônia austríaca do Paraguai. Quando vejo cubanos, penso que são baianos. Vejo índios da Amazônia peruana e penso que são acreanos. Vejo equatorianos da serra e penso que são peruanos andinos. Vejo hondurenhos e penso que são mexicanos. E mesmo assim estou generalizando demasiadamente.
Encontros internacionais de duração de vário
s dias, a ponto de permitir convívio cotidiano têm essa virtude: apontam não para as diferenças, mas para as semelhanças. Parece início de namoro: os motivos para a aproximação são mais valorizados e exibidos do que o oposto. O Fórum Social Mundial, por exemplo, mostra que lá estamos com o mesmo propósito: promover o encontro da vontade solidária, mudar o mundo. Nos países de todos os participantes do FSM ficaram os que discordam disso. Meu irmão é um canadense de uma ONG que promove a não-violência contra as crianças; meu adversário é um brasileiro que financia grupos de extermínio.
“Yo tengo tantos hermanos que no los puedo contar y una hermana muy hermosa que se llama libertad”.
[1] Do Prata = Rio da Prata, o rio que banha as capitais do Uruguai e da Argentina.