Por Janio de Freitas, agosto de 2005, na Folha de S. Paulo

Já é noite em 5 de agosto. Harry Truman, na presidência dos Estados Unidos por morte de Roosevelt ao iniciar o quarto mandato, prepara-se para jantar na sua cabine em um navio da Marinha, enquanto aguarda a informação sobre o lançamento da bomba atômica, na manhã japonesa de 6 de agosto de 1945. 

Foi assim também três semanas antes, quando, durante a conferência com Churchill e Stalin em Potsdam, Truman recebeu no dia 17 de julho esta breve mensagem: “Bebê nasceu bem”. Bebê, não mais que uma palavra, era o único vestígio de humanidade no êxito, informado pela mensagem, da explosão experimental em Alamo Gordo, deserto do Estado americano do Novo México, da primeira bomba atômica. 

A história da Segunda Guerra mudou muito desde as revelações que inundaram os dois a três primeiros anos de paz, escritas por testemunhas ou pelos próprios personagens dos fatos. As revelações feitas então foram substituídas pelo silêncio, a redução e a fraude. Com o início da Guerra Fria e a Guerra da Coréia, a imprensa dos Estados Unidos e da Europa, tanto a de periódicos como a de livros, tornou-se arma primordial na nova guerra. Os depoimentos e levantamentos ficaram asfixiados na poeira do arquivo morto de jornais, revistas e em livros retirados de circulação. Não podiam chegar à história consagrada, como não podia sobreviver o depoimento publicado por um oficial que, no seu navio, recebeu uma mensagem-rádio de rendição do Japão, no entanto deliberadamente ignorada pelos Estados Unidos que, constatou ele semanas depois, já se preparavam para lançar a bomba atômica sobre Hiroshima. 

Um relato da situação militar em julho de 45 diz que “a 3ª Frota do almirante Halsey cruza praticamente sem oposição toda a costa oriental japonesa, e bombardeia os portos, as fábricas e outras instalações. As esquadrilhas dos porta-aviões do almirante Mitscher afundam embarcações, destroem aeródromos, abatem aviões. Em uma série de raides devastadores sobre as bases navais de Kure e Yokosuka, afundam ou inutilizam praticamente tudo o que restava de navios da Armada do Japão. As superfortalezas voadoras do general Curtiss Le May continuaram a reduzir as grandes cidades japonesas ao estado de ruínas.” 

O gabinete de governo japonês é derrubado para perder as influências ainda militaristas. O novo governo busca a mediação da URSS, para saber o que significaria na “Proclamação ao povo japonês”, feita por Truman em 26 de julho, a expressão “capitulação incondicional” em relação ao destino de Hiroito, o imperador sagrado. O próprio imperador e parte do Conselho aceitaram “em princípio” a capitulação, mas concordaram com os relutantes em aguardar esclarecimentos sobre a dura proclamação de Harry Truman. 

A ordem de utilização das duas bombas atômicas já prontas, hoje atribuída ao propósito de dispensar o desembarque americano no Japão, foi dada por Truman em 3 de agosto. A sorte traiu Hiroshima, escolhida entre os quatro possíveis objetivos estabelecidos com antecedência, por critérios não propriamente militares: interessava sobretudo a densidade demográfica, para que a devastação ferisse mais a psicologia japonesa. A bomba caiu na manhã de 6 de agosto, e o hoje esquecido relatório do representante da Cruz Vermelha, Marcel Junot, assim conclui a narração daquele dia: “Ao fim da tarde, o fogo começou a baixar, e não tardou a extinguir-se. Nada mais havia a queimar. Hiroshima tinha deixado de existir.” 

Na semana entre a “Proclamação” de Truman e a bomba de Hiroshima, já um gigantesco bombardeio de Tóquio, decidido pelos mesmos critérios, em uma só noite fizera 90 mil mortos – na maior parte, crianças, mulheres e idosos. Mais do que os 80 mil mortos imediatos da bomba-A em Hiroshima -na grande maioria, de crianças, mulheres e idosos. Três dias depois de Hiroshima, a segunda bomba-A fez 75 mil mortos imediatos em Nagasaki -na maior parte, crianças, mulheres e idosos. Um resultado insatisfatório: a configuração do terreno não permitiu que os efeitos da bomba fossem tão devastadores como previsto. 

Na Europa não fora diferente. Seis meses antes de Hiroshima, por exemplo, em uma só noite, a de 13 de fevereiro de 45, os ingleses destruíram Dresden e aniquilaram sua população -na maioria, crianças, mulheres e idosos. Hamburgo foi bombardeada durante cinco dias seguidos, por ingleses à noite e americanos de dia, até que em 25/7/43 era uma vastidão de destroços habitados por 42 mil cadáveres -na maioria, de crianças, mulheres e idosos. De Colônia, só restou de pé a sua catedral, a mais famosa da Alemanha. Integrante da equipe que pesquisou os efeitos dos chamados bombardeios estratégicos de americanos e ingleses na Europa, John Kenneth Galbraith revelou o que os arquivos oficiais não deixaram passar à história consagrada da Segunda Guerra: a indústria bélica alemã foi prejudicada por falta de matérias-primas, mas não foi atingida pelos bombardeios diuturnos de americanos e ingleses, que foram despejados sobre as populações civis. 

O critério que lançou as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, e com bombardeios convencionais dizimou populações civis na Europa e na Ásia, é exatamente o critério do terrorismo. Os alemães o iniciaram, com os bombardeios a cidade inglesas, primeiro por aviões e, depois, pela bomba-voadora que tinha a finalidade estrita de aterrorizar a população. Americanos e ingleses desenvolveram a aplicação do critério. A bomba atômica veio a ser um avanço nos métodos da criação de terror. E Hiroshima é um símbolo do grande terrorismo, que é obra de chefes de Estado e oficiais-generais. 

Harry Truman recebeu por telefone especial a notícia da mensagem, tão simples, transmitida à base de Tinian do céu de Hiroshima, pelo comandante do bombardeiro: “Vi a cidade, está destruída”. Harry Truman retomou o seu jantar.