João Alexandre Peschanski, de Porto Alegre (RS), para o Brasil de Fato. Entrevista realizada em janeiro de 2005, durante o V Fórum Social Mundial. Na foto, Ignacio Ramonet entre Noam Chomsky e Olívio Dutra, arquivo da Z Magazine do Fórum Social Mundial de 2002.

As pessoas e os movimentos sociais que se identificam com o altermundialismo e vão a Fóruns Sociais Mundiais deveriam elaborar uma Carta Social Mundial. No documento, deveriam ser listados os pontos essenciais e comuns dos participantes dos encontros contra a globalização, como a anulação da dívida externa, a retirada de tropas militares que ocupam países e a interrupção da privatização de serviços públicos e recursos naturais. A avaliação é do jornalista Ignacio Ramonet que, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, fez um balanço do 5° Fórum Social Mundial, que se encerrou no dia 31 de janeiro, em Porto Alegre (RS).

Nessa última edição do evento, a Carta não foi produzida, apesar de a criação de um documento que unifique os objetivos dos participantes do Fórum ter sido apoiada por integrantes de diversas entidades. Para Ramonet, a falta de uma pauta de propostas para o encontro leva ao surgimento de críticas em relação ao formato do evento. “Algumas pessoas chegam a se perguntar se o Fórum não se transformou em uma grande feira ou festival, que não incomodaria ninguém. Como se fosse puro entretenimento”, afirmou.

O jornalista diz que os participantes do Fórum têm uma grande responsabilidade, pois representam toda a humanidade, e conquistaram, desde a primeira edição do evento, em 2001, muita influência no cenário político internacional. Segundo ele, o altermundialismo se transformou em uma hiperpotência, fundamentada em uma visão social do mundo, que se confronta com a hiperpotência militar estadunidense.

Brasil de Fato – Encerra-se o 5º Fórum Social Mundial, o quarto em Porto Alegre. Qual é o balanço do evento, considerando os que o precederam?

Ignacio Ramonet – É um pouco cedo para estabelecer qualquer tipo de balanço, pois o Fórum acaba tendo repercussão a longo prazo. É certo, entretanto, que se evolui no sentido de criar articulações e campanhas orientadas para ações e propostas mais diretas. Fazendo o balanço dos cinco Fóruns, pode-se dizer que um novo ator surgiu no campo internacional. Um ator tão importante que algumas pessoas o chamam da segunda hiperpotência. Há os Estados Unidos, que são uma hiperpotência militar, e a segunda seria então a portadora de uma visão social, constituída pela humanidade que se reúne no Fórum Social Mundial. No início, este ator foi alvo de muita curiosidade – e ainda é. Há, por exemplo, 6 mil jornalistas inscritos para cobrir a quinta edição do evento, dos quais 3 mil são ligados a meios da grande imprensa.

BF – Quais foram os principais impactos do encontro desde 2001, quando de sua primeira edição? 

Ramonet – Muitas idéias que nasceram em Porto Alegre cresceram e tomaram importância no cenário político. No dia 26 de janeiro, o presidente francês, Jacques Chirac, fez uma declaração no Fórum Econômico Mundial, em Davos, Suíça, defendendo a criação de uma taxa internacional para erradicar a fome, que é uma idéia do Fórum Social Mundial. O presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, também a defendeu na Organização das Nações Unidas (ONU). Parece haver um acordo entre diversos governos de que a taxa precisa realmente ser criada. Por conta disso, e outros elementos, o balanço dos encontros é muito positivo. O que se pode questionar é a continuidade desses Fóruns. Quando surgiu, o evento estava envolto em grande entusiasmo, representando muita esperança. Hoje, o entusiasmo continua? A esperança continua? Há vários observadores do Fórum que acreditam que este está menos inovador. Mais repetitivo. Obviamente, há o fato de que o evento não faz mais uma irrupção na paisagem política, e isto faz com que haja menos surpresas, menos novidades. Algumas pessoas chegam a se perguntar se o Fórum não se transformou em uma grande feira ou festival, que não incomodaria ninguém. Como se fosse puro entretenimento. Esta é uma leitura excessivamente pessimista. O que se pode dizer é que, em um contexto internacional mais grave, marcado não só pela globalização como pela guerra, já que estamos em tempos de guerra no momento, o Fórum parece algo pouco eficaz, como se mantivesse uma prática de um período anterior à situação de guerra, que massacrou pessoas no Afeganistão, Iraque e pode agora atingir o Irã.

BF – A hiperpotência estadunidense está na ofensiva, já que se trata de um período de guerras. Qual é a estratégia das pessoas que resistem contra o império, e que se reúnem no Fórum?

Ramonet – O altermundialismo, em toda a sua diversidade, precisa continuar acreditando que o mundo como está não pode durar. O mundo é tão injusto e tão ilegal, há tantas pessoas na miséria, que não se pode duvidar, em momento algum, que o mundo como está não tem que acabar. É também preciso ter em mente que ele não vai mudar sozinho. Todos têm que ajudar na mudança. Já há indícios que mostram que as coisas estão mudando. O altermundialismo, a doutrina do outro mundo possível, precisa ter uma lista de propostas para o planeta.

BF – Integrantes de movimentos sociais, antes de participar do Fórum, defendiam um evento mais propositivo. Isto ocorreu? O que foi decidido?

Ramonet – A idéia era construir um conjunto de propostas de ação que seria acatado por todos os participantes e organizações do Fórum. Seria preciso fazer um manifesto, com 5 ou 10 objetivos que se deve atingir, custe o que custar. Independentemente das estratégias mais locais, é preciso criar uma plataforma comum, como um evangelho do Fórum Social Mundial, como uma carta sagrada do evento, à qual o conjunto das organizações aderiria. Até o momento, isto não existe. O termo altermundialismo não define concretamente uma proposta, fica muito vago. Deve-se agregar os movimentos com base em uma lista de objetivos mais definidos.

BF – Quais seriam os objetivos comuns que estariam na Carta Social Mundial?

Ramonet – Os movimentos sociais e as entidades certamente estariam de acordo para colocar pontos como a anulação das dívidas externas de todos os países, a criação de uma taxa internacional sobre as grandes transações financeiras para financiar políticas sociais, o fim da privatização dos recursos naturais… É preciso lembrar que morrem, todos os dias, 30 mil crianças por conta do consumo de água contaminada. Haveria também união dos movimentos para criar uma série de dispositivos para impedir guerras. Isto não se daria só pelo princípio, mas por algo mais concreto: impedir a construção de bases militares, principalmente dos Estados Unidos, em países estrangeiros. É preciso interromper as privatizações do setor público. A carta, acho, não seria difícil de elaborar, pois há muitas lutas comuns, tendo em vista que os grandes temas da globalização mobilizam muita resistência.

BF – Os objetivos seriam então fáceis de estabelecer, mas como construir um plano de ação mundial para os participantes do Fórum?

Ramonet – O plano de ação consiste na realização de operações e mobilizações em escala mundial, como as que ocorreram na véspera da guerra do Iraque, em fevereiro de 2003, quando 20 milhões de pessoas saíram às ruas de diversos países para protestar contra a ofensiva estadunidense. Acho que, hoje, temos condições de lançar planos de ação planetários sobre a questão da anulação das dívidas, mobilizando e conscientizando pessoas. Isto serviria para lembrar constantemente aos governos que construir um mundo mais justo não é tão complicado. Deixaria claro para eles que há meios claros, e que conhecemos, para construir um mundo melhor. E quem aceitar o mundo como está é preciso ser visto como cúmplice de crimes contra a humanidade, crimes econômicos contra a humanidade.

BF – No campo das mídias, a humanidade é vítima da tirania da comunicação, de acordo com um termo que o senhor criou, destacando a elaboração de mecanismos que impõem uma forma de pensamento único. Nesta frente de batalha, como se deve lutar?

Ramonet – Em relação a isso, acho que os movimentos já fazem muito, pois estão mobilizados. Os grupos alternativos de contrainformação fazem um trabalho muito bom. No Fórum de 2005, há 3 mil comunicadores alternativos, ligados a rádios comunitárias, redes alternativas, jornais de contra-informação, de páginas na internet com conteúdo diferente. Tudo está indicando que outro tipo de comunicação é possível, que responda mais às necessidades da população do que aos interesses das grandes empresas. Neste caso, poderia pensar-se em um meio de coletar toda essa informação que é produzida e disseminá-la de modo mais efetivo. Quando cada um trabalha por si, somos muitos fracos, é preciso que todos trabalhemos em conjunto. Não se pode esquecer que o Fórum Social Mundial representa toda a humanidade, seis bilhões de pessoas, enquanto o outro lado representa algumas centenas de pessoas, evidentemente com muitos recursos. Nós temos a massa da humanidade de nosso lado e uma responsabilidade destas precisa ser levada a sério.
 

Quem é
Diretor do jornal francês Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet é da coordenação internacional do Fórum Social Mundial. Formado em história na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, França, ele é especialista em geopolítica, assunto sobre o qual presta consultoria à Organização das Nações Unidas (ONU). É autor de dezenas de livros, alguns dos quais estão traduzidos para o português, como Geopolítica do Caos (1998) e A Tirania da Comunicação (1999), publicados pela Editora Vozes.