Leonardo Nascimento de Araújo, 36 anos, um dos maiores craques da história do futebol, com uma carreira fulminante, campeão da Copa do Mundo em 1994 e famoso por sua atuação filantrópica no Brasil e no mundo, amado em três continentes. Como encontrá-lo para uma entrevista? De férias em Niterói, cidade onde nasceu? Estava, mas já embarcara de volta à Itália onde vive há nove anos e atualmente dirige o Milan.
Liguei para a Fundação Gol de Letras, entidade educativa dirigida por ele e por seu melhor amigo, Raí, outro craque nosso. Sugeri aos assessores uma entrevista por correio eletrônico para não incomodar muito. Achei que receberia umas dessas respostas escritas, muitas vezes até pelos próprios assessores. Nada disso. Leonardo quis mesmo foi falar por telefone. “Por correio eletrônico é muito burocrático, você não acha? Por telefone podemos conversar mais e fica muito melhor, não é?” “É, é claro que é!” – respondi agradecida e um tanto sem jeito. Assim, no dia 3 de fevereiro, às 12h30 no Brasil e quase 16h, na Itália, pelo telefone, em sua casa, Leonardo concedeu a entrevista que segue.
Entrevista de Leonardo Nascimento de Araújo a Stela Guedes Caputo, março de 2006
Stela Guedes – Você é um apaixonado pelo futebol desde pequenininho. Como é fazer de um sonho realidade?
Leonardo – Eu tinha o sonho de menino como todo menino acho que tem. Era o sonho de jogar e de brincar, mas não sonhava em ser jogador profissional. Isso era uma coisa tão distante, tão impossível que por isso não foi uma coisa para qual me preparei, mas que aconteceu. Não havia alguém também me estimulando para pensar nisso de maneira mais forte, mais objetiva. O sonho era ver, era ir ao Maracanã, era seguir o Flamengo do Zico. O sonho era ligado à paixão que eu tinha pelo futebol e por jogar na escola ou no meu bairro. Não era, ainda, o desejo de ser realmente jogador profissional de futebol. Por sorte (e a sorte sempre está presente), acabei tendo a oportunidade de fazer um teste. Isso já aos 14 anos, o que é, teoricamente, um pouco tarde para se começar. Fui aprovado e menos de quatro anos depois estrearia no profissional.
Stela Guedes – E estreou, aos 17 anos, no Flamengo, o time que você amava…
Leonardo – Então, viver isso talvez tenha sido o período mais bonito da minha vida profissional. Era um sentimento completamente natural, espontâneo e fortíssimo. Eu via uma foto minha junto com o time que eu amava e que tinha torcido por tanto tempo. Estreei no time que eu seguia, que adorava e que já fazia parte da minha identidade. Foi o momento mais bonito da minha carreira, com certeza.
Stela Guedes – Se esse menino, que amava o futebol, não esperava ser jogador profissional que dirá se tornar ídolo em três continentes…
Leonardo – Realmente eu nunca pensei em viver o futebol dessa maneira. Eu só queria viver o futebol, de algum modo, como muitos de nós vivemos. Mas o futebol é maravilhoso por isso, ele é tão popular e reúne tanto as pessoas. Algumas para pensar a brincadeira na praia ou na rua, outras vão para o profissional. É um esporte que está sempre presente e eu não imaginava que ele me daria tanto mais do que eu esperava dele.
Stela Guedes – Dentro e fora do campo?
Leonardo – É, ele não me deu só as emoções dentro do campo. Tive a oportunidade de conhecer outras línguas, outras culturas, outras pessoas. Até hoje eu vivo no futebol dessa maneira. Hoje estou na Itália, em uma realidade completamente diferente da brasileira e onde o futebol talvez seja até mais vivido que no Brasil, parece que não, mas o futebol é muito forte na cultura dos italianos. Não jogo mais, e continuo vivendo o futebol de outra maneira. A relação que estabeleci com as pessoas é que me faz continuar aqui e realizar coisas que jamais imaginei.
Stela Guedes – O que o futebol te proporcionou de mais positivo? E que valores se pode tirar da experiência com o futebol?
Leonardo – Acho que a emoção do campo, ganhar ou perder e o fato de você se preparar para o jogo. Agora que parei o que sinto falta é justamente disso, de buscar o rendimento máximo. Isso é maravilhoso. Mas, há muitas outras coisas positivas no futebol. Uma das mais importantes é que ele quebra barreiras, quebra qualquer protocolo, ele te aproxima das pessoas e com ele você se comunica de um modo muito fácil e isso sempre foi um grande desafio, ou seja, chegar em um lugar, começar do zero e estabelecer relações profundas com as pessoas e com o próprio lugar.
Stela Guedes – E negativo? Da mesma forma, que sentimentos negativos podem ser vividos no futebol?
Leonardo – De ruim acho que a correria da vida. A competição e a exigência de uma reposta imediata te dá muita tensão e isso te mina um pouco, mas as coisas positivas são tão mais gigantescas que as negativas nem aparecem. Não lembro onde li, acho que no “O mundo de Sophia”, do Gaarder, não tenho certeza, mas a idéia é a de que o ser humano pode estar em três estados diferentes. No estado estético, no estado ético e no espiritual. Acho que quando somos crianças ou ainda muito novos, somos egoístas, vaidosos e, com o passar do tempo, vamos aprendendo uma determinada ética que faz com que nos adaptemos à sociedade em que vivemos. Pode-se até viver fora dessa ética, mas seremos criticados e até julgados por isso. O outro estado é o espiritual onde passamos a viver essa ética de forma mais natural. Isso está em todos os lugares, não apenas no futebol, mas na sociedade em que vivemos. A vaidade, o egoísmo, o orgulho excessivo são sentimentozinhos que temos independente do que façamos e precisamos aprender a dosá-los. Nesse sentido, acho que o futebol é um instrumento educativo.
Stela Guedes – Como o futebol poderia ajudar mais a juventude brasileira?
Leonardo – A idéia de base é a saúde, é o jovem se empenhar para o rendimento no esporte. É respeitar uma disciplina para se obter o seu rendimento, cada um respeitando seus próprios limites e os limites do outro. O esporte nos dá isso desde muito cedo, ou seja, é um grande aprendizado para se lidar com pessoas. As regras nos ajudam se não para lidar com o sistema, mas, pelo menos no momento do jogo. É uma escola de vida. A essência está nos 90 minutos e na preparação para esses 90 minutos, isso ensina
muito de grupo, de solidarie
dade, de equipe. A gestão, a estrutura é velha e por isso não dá toda contribuição que ele poderia dar. Se ele se organizasse melhor, se encontrasse um modelo de gestão mais sustentável, mais equilibrado, a contribuição do futebol seria menos confusa e mais positiva ainda. Falo do futebol profissional. Em todos os níveis o futebol poderia contribuir para uma comunidade, reunindo com ela o poder público e as empresas, isso ajudaria muito mais a juventude e a uma comunidade como um todo. Imagina o que um Flamengo poderia alavancar dessa forma com todo seu potencial econômico e de comunicação. Mas, devido a complexidade da gestão do futebol hoje, existem apenas times que disputam campeonatos e não conseguem participar da sociedade de forma mais abrangente.
Stela Guedes – Depois de conhecer tantas cidades em tantos países, Niterói continua sendo sua cidade predileta?
Leonardo – Tem uma frase do Neruda que eu adoro, ele dizia: “Meu relacionamento com o Chile não era sentimental. Meu relacionamento era físico. Quando estou no Chile meu corpo é diferente e eu me sinto muito melhor”. É assim que me sinto com o Brasil. E Niterói tem uma parte muito forte nisso. É onde me sinto eu. Onde está minha identidade original. Onde estão pessoas que conheço, a praia de Itacoatiara, a escola que freqüentei. É meu refúgio, minha identidade. Mas o fato de viver em outros lugares também me fez me sentir muito dentro deles. Deixar Milão vai me doer pelas relações que criei aqui.
Stela Guedes – E você vai deixar Milão e voltar para o Brasil?
Leonardo – Eu penso muito em voltar para o Brasil. Para fazer isso será uma decisão sentimental, do tipo eu quero voltar e viver minha vida no Brasil. Quando acontecer, pego minha família e volto. Se não for assim não volto e, somando tudo, são 14 anos vividos fora do Brasil. Na Itália já são 9, ao todo. É difícil saber o que é certo ou errado nesse caso, mas eu gostaria muito de voltar e reconstruir minha vida no Brasil. É tanto tempo fora que já falo em reconstruir.
Stela Guedes – Torcedores e a mídia mundial apontam o Brasil como favorito da Copa. Em que medida esse favoritismo pode prejudicar a seleção brasileira?
Leonardo – O Brasil é o favorito da Copa. O mundo inteiro quer ver o Brasil. Não é apenas a minha opinião. É unânime. Todo mundo quer bater palma para o Brasil. A verdade é essa. O Brasil hoje tem uma geração não só de talentos, mas de um grande carisma. As pessoas adoram os jogadores brasileiros. Os últimos anos confirmaram essa hegemonia mundial. E não tem jeito, o Brasil precisa assumir a condição de favorito e é difícil administrar isso. É muita pressão, mas os jogadores que o Brasil têm hoje vivem em grandes clubes e já são cobrados e pressionados cotidianamente, não é uma coisa nova para eles. Jogar como favorito não é fácil até porque o adversário sabe disso e é muito prudente.
Stela Guedes – Você aprova o esquema do técnico Parreira?
Leonardo – Aprovo. Acho que o Parreira optou por esse quadrado (o futebol é engraçado também por isso, a gente pode falar de várias formas dele). O quadrado é formado por quatro jogadores mais ofensivos, sendo dois atacantes e dois jogadores de meio-campo também muito ofensivos, no caso o Kaká e o Ronaldinho. Então eu aprovo sim. Eu na frente colocaria o Kaká, Ronaldinho, Ronaldo e Adriano.
Stela Guedes – Escala o time completo.
Leonardo – Eu escalaria meu time assim: Dida, Cafu, Lúcio Juan e Roberto Carlos. Emerson e Juninho Pernambucano, Kaká, Ronaldinho, Ronaldo e Adriano. Com a possibilidade do Serginho, que vive um momento maravilhoso na lateral esquerda e que há um tempo atrás ele tinha optado por não jogar mais na seleção.
Stela Guedes – O que o Brasil pode fazer para evitar vexames como os que foram revelados nos casos das máfias de juízes? Em que isso prejudica a imagem de um país como o nosso?
Leonardo – Acho que esse problema não é uma coisa do futebol. São vexames políticos. Não acho que os juízes estejam em esquemas como esses que envolveram uns dois ou três.O problema é estrutural ele perpassa vários setores de nossa sociedade e define um modelo de comportamento político no Brasil. A falta de ética e a corrupção está na base desse modelo, é uma mentalidade que passa pelo executivo, pelo parlamento e se reflete em tudo, inclusive no futebol.
Stela Guedes – Quais foram seus objetivos ao criar a Fundação Gol de Letra e como vem se saindo?
Leonardo – Começamos com 100 crianças e hoje temos 1.150, nos dois centros, um em São Paulo e outro no Rio, em Icaraí. Fomos reconhecidos pela UNESCO como modelo mundial de assistência à crianças em risco social e isso pra gente foi uma grande surpresa pela rapidez com que conseguimos fundamentação e reconhecimento de nosso trabalho. Não é o reconhecimento que define, mas ele também é um termômetro importante. A Fundação nasceu para contribuir para uma mudança social através da educação que é papel do Estado, mas ele não chega realmente no foco do problema social. Há um crescimento desequilibrado que faz com que exista um grande número de crianças fora do sistema escolar e a um sistema escolar muito deficitário. O que fazemos é um apoio à escolarização através de atividades com arte, esporte, informática, língua portuguesa, dança e cultura. Queremos dar às crianças instrumentos para uma formação para um futuro melhor. Isso tem acontecido e pra gente é uma grande responsabilidade assumir uma parte dessa formação.
Stela Guedes – Na Fundação, em que posição de importância entra o futebol na formação das crianças?
Leonardo – Ele entra na mesma posição que a música, do teatro, do cinema, da fotografia, do vídeo, do português, da informática. Ele não é mais ou menos importante. O processo de formação se dá através dessas atividades, seja o futebol ou outra qualquer.
Stela Guedes – Por que existe um estereotipo de que jogador de futebol não precisa estudar?
Leonardo – Uma coisa que contribui é que o sistema educacional e o sistema de formação esportiva são completamente distante um do outro. Muitas vezes, para se fazer uma formação esportiva e chegar a ser profissional do esporte praticamente você precisa abandonar sua formação escolar. Isso impede que a pesso
a consiga as duas coisas. Fica difícil incentivar uma criança que tenha chance de estudar a ser dedicar ao esporte. Não devia ser assim, as duas formações podem e devem caminhar juntas.
Stela Guedes – Amanhã eu vou fazer uma matéria com o Bragança Futebol Clube, um time amador de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, dirigido por uma mulher e com crianças e jovens que passam muitas dificuldades, mas que, assim como você, são apaixonados por futebol. Muitos sonham em jogar profissionalmente. Posso levar um recado seu para eles?
Leonardo – As pessoas têm, na verdade, uma grande carência de oportunidade. O sistema em que vivemos deixa essas pessoas à margem de processos de educação, de trabalho e de se auto-conhecer. Se nunca tivermos contato com uma atividade, como podemos conhecer nossos talentos? Muitas pessoas sequer têm a chance de descobrirem seus talentos. O que mais acontece é isso, e em diversas áreas. Saber escrever um texto, por exemplo, não é só ter a capacidade de escrever, mas de se ter uma auto-estima que reconheça em você a capacidade de escrever. Isso dá força para você viver, para você se reconhecer cidadão. Isso todos nós devemos buscar. Se eles estão buscando esse papel com o futebol na comunidade, que busquem realmente o aprendizado e não só aprender a cabecear, chutar ou dominar a bola, mas o que o futebol tem de mensagem educacional.