Virgínia Fontes

Queria agradecer ao Núcleo de Comunicação do P-Sol e aos amigos Sergio Domingues e Ana Cristina o convite para participar desse debate, junto com o grande amigo Dênis de Moraes, a quem prezo enormemente e por quem tenho enorme carinho. Antes de começar, porém, gostaria de fazer uma pequena homenagem a um grande pensador, precocemente falecido em 2003 aos 57 anos, de quem tanto eu quanto Dênis fomos grandes amigos e com quem muito aprendemos. René Armand Dreifuss foi o mais sagaz pesquisador das formas de organização empresariais no Brasil (e seus livros são ainda uma referência obrigatória – 1964: A conquista do Estado e O jogo da direita). René permanece uma lição de pesquisa social com base em jornais e de ousadia para a explicação da sociedade brasileira. Leiam esses livros! Temos muito o que aprender com René Dreifuss.

Como todos sabem, não sou especialista em mídia nem em imprensa. Aliás, parodiando Lucia Neves, pesquisadora e grande amiga, a quem vou citar repetidas vezes hoje, a cada dia sou menos especialista em qualquer coisa… Se há uma coisa que aprendi e que talvez seja o mais importante a partilhar nesse momento, é a exigência de “ver”, de ler o mundo, de compreendê-lo e explicá-lo. É uma exigência que parece simples como o ovo de Colombo porém, quanto mais simples, mais difícil de fazer, mais rigoroso o trabalho que demanda.

Marx, Engels, Lênin, Rosa, Trotsky, Gramsci, Lukacs e muitos outros pensadores nos impelem a isso. Não nos fornecem respostas, ajustadas num “saber fazer” ou num know how imediato e pronto para aplicação a domicílio, feito injeção. Partem de uma questão fundamental: enquanto houver exploração, não haverá socialização plena da vida. A socialização é a maneira humana de viver e de fazer. Se há expropriação e exploração, essa socialização é limitada e truncada.

Partindo dessa premissa, pensar Mídia, Estado e Governo exige analisá-los sob o formato do projeto econômico, político, social, cultural e ideológico do qual são portadores e tradutores.

No Curso Anual do Núcleo Piratininga de Comunicação de 2005, procurei apontar o eixo de algumas questões cruciais na atualidade e que dizem respeito direta e indiretamente à comunicação e ao que chamamos corriqueiramente de “intelectuais”. Esta categoria, aliás, precisa sempre ser retomada à luz do desafio que nos coloca o marxismo: explicar o mundo tal como ele é, não perdendo de vista o eixo central – a exploração do sobretrabalho e a existência correlata de classes sociais, assim como das lutas reais entre elas.

Intelectuais não são apenas os que escrevem – são sobretudo os que definem o que os escrevinhadores devem escrever. Já no livro A Ideologia Alemã, escrito por Marx e Engels em meados do século XIX (que aliás só foi publicado bem depois, tendo sido deixado à “crítica roedora dos ratos” pelos autores), compreendemos que intelectuais não são os que se reservam o mundo do pensamento, mas aqueles que atuam socialmente sob duas formas: na concentração da produção do conhecimento e na apropriação daquele socialmente produzido. De maneira similar às modalidades da exploração de classes, asseguram a concentração da atualização dos conhecimentos anteriores, assim como a reserva dos novos conhecimentos, tornando-os disponíveis para os setores dominantes. Parecem existir numa torre de marfim, na elaboração de um puro conhecimento e esquecem-se que suas ilhas de excelência devem ser ligadas por um cordão umbilical que as mantêm vivas, irrigadas e, sobretudo, ilhas. Em segundo lugar, como pretendem continuar “excelentes” e se consideram singularidades geniais, precisam justificar o mundo tal como ele é, uma vez que tal exercício conforta e legitima sua própria existência[1].

Com Gramsci, as formulações de Marx e Engels ganharam novas determinações, enfatizando exatamente a função social que cumprem os intelectuais, como organizadores do conjunto das classes, como conectores entre os formuladores e as grandes massas. Embora extrair citações seja insuficiente para apresentar o pensamento gramsciano, que exige um trabalho de leitura sistemática, vale lembrar dois pequenos excertos de seu texto mais conhecido sobre os intelectuais, com o intuito de estimular a ida ao texto:

“Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político: o empresário capitalista cria consigo o técnico da indústri

a, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito, etc.” (GRAMSCI: 16)

“Estas funções [sociais dos intelectuais] são precisamente organizativas e conectivas. Os intelectuais são os “prepostos” do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político” (idem: 20-1).

Queremos compreender o papel atual da mídia e sua relação com o Estado. Não é suficiente, para tanto, nos debruçarmos sobre os jornalões, ainda que isso seja necessário. Os jornalões são o primeiro front da linha de ataque (e defesa) do capital, mas não são a única e nem a mais importante em cada momento da luta. Segundo o próprio Gramsci, os jornais constituem-se em “partidos” e podemos estender a definição de jornal, que constituíam a trincheira avançada na época de Gramsci, para a grande mídia, incluindo as redes de TV, jornais, revistas, etc. A grande mídia conserva a função social de manter a organização do conjunto da classe (organização da e para a classe dominante, assim como assegurar a subalternização dos demais). Porém os intelectuais organizadores, aqueles que definem as pautas que os jornalistas deverão redigir sem se dar conta de estarem sendo pautados, nem sempre são tão imediatamente visíveis.

A relação entre a mídia, o Estado e as formas de dominação exige nos interrogarmos sobre que tipo de intelectuais estão sendo formados para cumprir essas funções “organizativas e conectivas” Quem são os prepostos dos grupos dominantes para o exercício dessas funções conectivas e subalternas, na atualidade? São funções cotidianas e que passam quase despercebidas, pois atravessam diversas instâncias sociais e parecem instaurar-se como “naturais”. Serão os jornalistas, nos dias de hoje, que cumprem tal papel? Ainda que sigam tendo importante papel como difusores e legitimadores, há um novo fulcro de produção de novos intelectuais na atualidade para a dominação, que implica inclusive numa modificação do papel da mídia no Brasil contemporâneo.

Isso não significa dizer que a mídia não mantenha um papel privilegiado na naturalização do mundo, mas jornalistas no formato clássico vêm sendo “esterilizados” há anos, inclusive em função de inúmeras contradições que seguem vivas e agudas no processo de trabalho na imprensa. Para limitar os riscos de uma atuação mais autônoma de tais profissionais, a mídia empresarial inventou diferentes expedientes. A que atuação mais autônoma me refiro? Por exemplo, seguem sendo formados jornalistas que teimam em acreditar na existência de um mundo real e objetivo e que se aferram aos princípios apregoados do jornalismo, para os quais a imprensa deve dizer a verdade, de forma neutra. Esse pressuposto é limitado – pois sabemos que não há possibilidade de explicação neutra numa sociedade de classes – mas lastreia a própria dominação da grande imprensa. No entanto, regularmente os próprios argumentos de legitimação da mídia voltam-se contra ela, através de profissionais que acreditam naquilo em que deveriam acreditar… apenas quando fosse conveniente.

Outras formas de esterilização foram sendo introduzidas, de maneira a reduzir os riscos das contradições internas à própria ideologia dominante. Construir inúmeros órgãos de imprensa, segmentados e direcionados para diversos tipos de assunto, de público e de verdade (verdades a serem enunciadas com números de palavras pré-determinados), o que impede, na prática, que a “neutralidade jornalística”, aquele fetiche no qual acreditam os jornalistas, possa se exercer, sem desaparecer. O veículo não é neutro – e isso é explícito: o veículo X volta-se para público C, com texto máximo de y linhas, direcionados para informação pré-definida; o veículo W destina-se a público A, unicamente para cobrir cultura, ou moda, ou crochet, ou ciência, ou lazer, ou turismo, ou gays, ou lésbicas, ou empresários, ou endinheirados, ou aspirantes a endinheirados, ou cinema, etc., etc.

A novidade mais recente, nesse terreno, é a utilização da sedução intelectual cosmopolita. Refiro-me ao lançamento de revistas voltadas para o puro entretenimento de alta cultura (como se isso existisse). A cultura é apresentada como algo que deve ser leve, digestivo, sugerindo um trocadilho infame com a… Seleções – Reader’s Digest, com formato de luxo. Uma cultura que não deve cansar nem exigir esforço, não trazer problemas, ainda que possa mostrar catástrofes. O melhor exemplo é a revista piauí. Feita para pautar a intelectualidade de Zona Sul e bairros chics do país, nutrindo conversas casuais em aeroportos internacionais.

O próprio nascimento dessa revista mostra que o abuso de manipulações e de caricaturas ideológicas, rançosas e rancorosamente anti-populares, pode desmascarar socialmente o papel da imprensa, exigindo formatos menos raivosos. João Moreira Salles, seu diretor, diz que piauí não tem uma linha editorial, apenas quer contar boas histórias. Também não tem “posicionamento político” ou “censura”:

“O ideal é que os textos sejam interessantes, bem escritos e divertidos. Aí cabem desde o stalinista até o sujeito da propriedade. Ninguém será excluído por sua posição ideológica”, disse Salles a Sylvia
Colombo, da Folha de São Paulo”. (
09/10/2006)

Decerto, esse desmascaramento nos parece excessivamente breve, porém vem ocorrendo no Brasil. A dominação se nutre da brutalidade e da violência simbólica, mas também se exerce de formas mais sutis.

Sabemos que Veja e um cortejo de similares, disputando seu espaço, como Isto é e Carta Capital, disputam a primazia da informação rigidamente ideologizada. Veja se destaca como difusora da mentalidade gerencial de segundo escalão e não se destina à informação dos setores dominantes de ponta, com seu ranço ideológico escancarado (SILVA: 2005). No entanto, todos sabem que Veja mente.

Nas últimas eleições presidenciais, conhecidos colunistas dos grandes jornais convocavam seminários nacionais para debater sobre a perda do papel da mídia na política brasileira. Eles estavam desiludidos com a imprensa, pois haviam cumprido seu papel – dizer raivosamente que não se devia votar em Lula, transformando-o no mal personificado, inclusive recuperando as argumentações de esquerda, que criticavam as limitações dos programas sociais. Sentiam-se dizendo algo que ninguém discordava e, no entanto, os eleitores votaram no Lula… contra a mídia! Merval Pereira e Miriam Leitão, os escrevinhadores treinados em dizer espontaneamente o que o patronato quer que digam, que se consideram os gênios absolutamente livres da intelectualidade midiática, logo após as eleições passaram alguns dias a se lamuriar na rádio CBN, angustiados e descorçoados, sem entender o que havia ocorrido. Depois, silenciaram.

Ou melhor, voltaram a falar o que sempre falam e um grande silêncio sobre suas inquietudes existenciais foi decretado. Enquanto esbravejavam sua fala anti-popular para grandes públicos (direcionada contra Lula apenas na aparência – e na cabeça deles – mas de fato voltada para desqualificar qualquer emergência de uma política com escopo popular), cumpriam um certo papel e acreditavam nele. Acreditavam que era contra Lula que falavam, quando de fato arengavam num palanque legitimador de um ato eleitoral cuja principal função deveria ser a de desqualificar a grande política, ou as escolhas sociais sobre o âmago da vida social. Se esgoelavam para eliminar qualquer traço popular ou reivindicativo que pudesse contaminar a política “democrática”. Enquanto isso, o jornal Valor Econômico, de propriedade do mesmo O Globo e da Folha de São Paulo, voltado diretamente para os segmentos empresariais, dizia há semanas que não havia a menor diferença entre Lula e Alckmin para os grandes empresários. Eles preferiam Alckmin, mas estariam também satisfeitos com Lula.

Nessa dispersão da grande mídia, nessa dúvida de alguns de seus expoentes sobre seu próprio papel, é preciso pensar novamente sobre a pergunta de Gramsci e voltar a procurar a resposta: quem unifica, e como, essa enorme variedade?

Há algumas excelentes pesquisas sobre o novo papel dos intelectuais no Brasil contemporâneo e que retomam as pegadas de Gramsci. A imprensa e a grande mídia não perderam seu papel, mas ecoam um novo som, que se difunde e produz seus intelectuais, que define estratégias, pautas e linhas de conduta. Não é apenas sobre o que a imprensa diz, na atualidade, que devemos nos interrogar, mas sobre quem são os novos intelectuais a exercer as funções fundamentais e que permitem uma nova pauta à imprensa, capaz de reduzir seu descrédito e de lhe dar novo fôlego, de cunho “democrático”.

Vem ocorrendo uma refuncionalização do Estado pelos setores dominantes com a penetração de inúmeras formas organizativas de cunho empresarial no aparelhamento direto do Estado, acopladas ao predomínio da financeirização monopólica no interior das classes dominantes. São sociedade civil mas atuam ao lado do capital. Esse processo, que corresponde à expansão do que é usualmente denominado de neoliberalismo, aponta, a meu juízo, para transformações de grande monta tanto na correlação entre as classes sociais no plano internacional, quanto no plano nacional, brasileiro. A década de 1980 constituiu-se como um dos períodos mais intensos de lutas populares e disseminaram-se inúmeras organizações e entidades populares, que então convergiam para o PT. Ao longo da década de 1990, o foco das lutas sociais foi sendo pulverizado, deslocando-se sucessivamente de um pólo a outro, como se as fronteiras até então estabelecidas – cujo eixo central era ocupado pelos sindicatos – tivessem se multiplicado. Esse deslocamento corresponde a modalidades contemporâneas de exploração dos trabalhadores que, quebrando as formas de resistência que estes opunham à perda de direitos, rompeu alguns elos efetivos que sustentavam tanto as lutas operárias quanto formas difusas de resistência. Rompeu o elo da proximidade física dos trabalhadores, mantendo a socialização do processo de trabalho, com o espraiamento das atividades produtivas sobre localizações as mais diversas (locais, regionais, nacionais e internacionais). Rompeu o elo da similitude das profissões e da contratação, pulverizando sob disparatadas formas jurídicas o vínculo da exploração da mais-valia (FONTES, 2005). Essa “pulverização social” do trabalho corresponde, de forma quase literal, ao que os analistas econômicos chamam de “pulverização do capital”. Longe de representar uma democratização seja da propriedade, seja da relação de trabalho, consiste, ao contrário, num controle mais estrito e mais concentrado do grande capital (que procura se manter o maior tempo possível na forma monetária) sobre as diversas modalidades de produção e extração de mais-valia[2].

Esse cenário social de exploração do trabalho corresponde à implantação de uma nova “pedagogia da hegemonia”, exposto em trabalho de pesquisa realizado pelo Coletivo de Estudos sobre Política Educacional, coordenado por Lucia Neves. Essa pedagogia da hegemonia, realizada “pelo Estado, e também diretamente pela própria burguesia, [constituída] de ações diversas e complementares com vistas à obtenção do consenso da sociedade e de reeducação ético-política, individual e coletiva, dos cidadãos brasileiros”, objetiva alterar a precedente correlação de forças e organiza-se em três grandes grupos de ações:

1) “formação de valores para a nova sociabilidade e ao incentivo a uma participação voltada para a mobilização política pautada em soluções individuais;”

2) “repolitização dos aparelhos privados de hegemonia da classe trabalhadora, rebaixando o nível de consciência política atingido nos anos 1980, do nível ético-político para o econômico corporativo”;

3) “estímulo à criação de novos sujeitos políticos coletivos, dedicados á defesa de interesses extra-econômicos e à execução das políticas sociais governamentais.” (NEVES, 2005: 99, grifos meus, VF)

Na segunda feira passada tive a satisfação de participar da banca de doutorado de André Silva Martins, que aprofunda e consolida a reflexão do referido Coletivo. A tese – Burguesia e a nova sociabilidade: estratégias para educar o consenso no Brasil contemporâneo – foi aprovada com louvor. Essa tese demonstra, com enorme rigor e fartíssima documentação, a intrincada teia de produção dos novos intelectuais para a dominação burguesa. André resume o processo como a constituição de uma “direita para o social”, coligada a uma “esquerda para o capital”, tema já tratado anteriormente por Eurelino Coelho, em 2005. Trata-se de conservar as disputas políticas no terreno do capital, posto que tanto sua “direita” quanto sua “esquerda” debatem, defendem posições aparentemente “radicais”, mas… permanecem no mesmo campo da propriedade privada e do capital monetário contemporâneo. Constróem-se pólos opostos de maneira fictícia, de uma “democracia radical”, de um “centro radical”, ou de uma “cidadania radical”. O termo radical estabelece o ponto comum entre eles e remete, a rigor, à defesa radical do status quo. Neves e Martins vêm denominando o fenômeno como “neoliberalismo de terceira via”.

Desde 1988 o documento da FIESP Livre para crescer estabelecia um conjunto de procedimentos para, simultaneamente, delinear as políticas neoliberais para o contexto brasileiro, definir o perfil do Estado que permitiria a maior expansão a tais capitais e implementar uma nova forma de “fazer política” no Brasil, de cunho democrático. A participação do PNBE (Pensamento Nacional das Bases Empresariais) forneceu impulso adicional, quando os termos democracia, participação e representatividade passaram a freqüentar o vocabulários das instâncias dirigentes do grande capital, assim como a relevância atribuída às “bases” empresariais.

Se o PNBE expressava atritos existentes no interior da grande burguesia, paulatinamente foi sendo absorvido no interior da institucionalidade pré-existente e, sobretudo, passou a direcionar a criação de novas entidades filantrópicas e políticas lastreadas no empresariado. Trata-se, efetivamente, de uma nova forma de agir empresarial no Brasil. Desde 1982, se implantara o Prêmio ECO (Prêmio Empresa-Comunidade, coordenado pela Câmara Americana de Comércio de São Paulo). Dele participou diversas vezes a ABRINQ (associação que reunia alguns dos principais empresários do PNBE), que pregava o novo papel “cidadão” das empresas e do empresariado; dessa mesma Fundação Abrinq nasceria o Instituto Ethos de Responsabilidade Social Empresarial (1998), que atualmente integra o GIFE – Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Investimento Social Privado), criado em meados da década de 1990 (e que tinha como apoios as Fundações Ford e Kellogs). Em seu documento fundacional, apregoavam:

“O GIFE existe para congregar entidades e empresas que, livremente e com recursos próprios, investem tempo, talento e recursos materiais, promovendo e executando atividades sistemáticas de apoio ao desenvolvimento social da nação, pelo estímulo à cidadania participativa, objetivando operar dentro de altos padrões éticos” (apud MARTINS, 2007: 217)

Desde 1993 o setor bancário adotaria a publicação de “balanços sociais”, com o apoio da FEBRABAN que, em 2002, criou uma Comissão de Responsabilidade Social e Sustentabilidade (MARTINS: 238).

A criação da Força Sindical, em 1991 (o livro de Vito Giannotti sobre como se constrói uma central patronal é de leitura obrigatória), implicava no decidido apoio do empresariado a determinadas formas de organização dos trabalhadores e, por extensão, à definição de um papel estritamente corporativo ao movimento sindical. Com maior ou menor velocidade, a própria CUT adequou-se ao novo figurino, com seu recuo defensivo fantasiado de “sindicalismo cidadão”, através do qual traduzia no interior dos sindicatos as teses da “responsabilidade social empresarial”. A adesão ao FAT e, em seguida, a conversão de dirigentes sindicais do setor público em gestores de fundos financeiros, confirmam o percurso.

A reforma do Estado, além das privatizações e da perda de direitos, significou também – e sobretudo – uma nova institucionalidade, calcada sobre parcerias e na adoção, através das entidades patronais ou fundacionais, de enormes espaços educativos no país. Com o apoio do Banco Mundial, tratou-se de difundir uma extensa rede de entidades que apoiavam iniciativas “sociais”, disseminando-se a prática de projetos e de gestão privatizante da vida social.

A estrutura do Comunidade Solidária, criada no governo FHC manteve-se através da OSCIP (organização da sociedade civil de interesse público) Comunitas: parcerias para o desenvolvimento solidário, que preservou sua estrutura operacional, e de uma de suas mais significativas organizações, a RITS (Rede de Informações para o Terceiro Setor). No governo Lula da Silva, o processo expandiu-se, com a formulação do Programa Fome Zero, que agrega uma infinidade de entidades. Vale ressaltar que, na linha de ação “parcerias” desse programa, a FEBRABAN tem participação ativa e que a coordenação da mobilização empresarial ficou a cargo do Instituto Ethos. Este último, juntamente com o GIFE e o Comunitas, parecem constituir-se nos intelectuais orgânicos mais produtivos do capital monopólico financeirizado dominante no Brasil atual (MARTINS, 2005: 314-29).

A ONU, por intermédio do programa Pacto Global, em 2000, lançou um projeto de mundialização da responsabilidade social empresarial, com a implantação do Ano Internacional do Voluntariado, em 2001 (idem: 258-9). No Brasil, a iniciativa teve o apoio direto das organizações Globo, através, por exemplo, do projeto Amigos da Escola, capitaneado pela Fundação Roberto Marinho. Esta Fundação, aliás, reúne na atualidade uma série de acervos da memória da esquerda, inclusive parcela da documentação dos comunistas e, na atualidade, elabora acervo documental sobre movimento estudantil.

No papel de educadora para essa cidadania “empresarialmente referenciada”, não é possível esquecer o papel da já clássica “Veja em sala de aula”, cujo objetivo explícito é “transformar as reportagens de VEJA em aulas”[3], com edições vendidas a prefeituras para formar alunos e professores segundo os moldes de sociabilidade dessa “cidadania empresarial” que grassa no país.

Retornamos, assim, à imprensa, de onde aparentemente nos afastamos durante um certo momento. O intuito de trazer as formas de organização das classes dominantes e sua elaboração de uma extensa e extremamente capilar rede de entidades e de publicações de todos os tipos, assim como de produção de conhecimento, é algo que deve concentrar nossas atenções. Trata-se de uma modalidade de organização dos setores dominantes, que com base no processo produtivo, desdobra-se na formatação de um certo civismo. Civismo limitado a intervenções pontuais e segmentadas, elaborado e levado a termo por uma rede de entidades privadas e que, na atualidade, se desdobra em cursos de especialização e de cursos de MBA (Master Business of Administration) em gestão de projetos sociais e gestão social empresarial.

A grande imprensa monopolizada atua como naturalizadora desse processo, apresentando-o como o espaço democrático por excelência. Assim, ainda que o próprio jornal (ou TV, ou meio específico) se apresente como mais ou menos grosseiramente anti-popular, procura se legimitar através de uma rede muito mais extensa de intervenções. Nelas, uma direita e uma esquerda adequadas ao capital configuram os limites máximos do debate. Estamos diante de um efetivo conglomerado empresarial, integrado também pelas grandes empresas da mídia, cuja atuação não se limita ao formato jornalístico ou informativo. Age no âmbito escolar e nas formas organizativas dos setores populares, de maneira a formar cidadãos com “baixos teores”. Cidadãos distanciados da reflexão crítica, mantidos porém em perpétuo movimento, contanto que seja por causas fragmentadas. Trata-se de forjar uma sociabilidade e um civismo débeis, incapazes de alterar as condições sociais nas quais vivemos.

No entanto, as condições sociais reais seguem dramaticamente desiguais. Assim, ao lado desse enorme aparato empresarial de convencimento, mantém-se a tradicionalíssima truculência

dos setores dominantes brasileiros. Caveirão e projetos culturais apassivadores nas favelas parecem fazer parte do mesmo pacote da modernidade financeirizada.

Bibliografia

Bourdieu, P. Sociologia. SP, Ática, 1982 (Coleção Grandes Cientistas Sociais).

Coelho, Eurelino. Uma Esquerda Para O Capital. Crise do Marxismo e Mudanças nos Projetos Políticos dos Grupos Dirigentes do PT (1979-1998). Tese de doutoramento. Programa de Pós Graduação em História, UFF, 2005.

Dreifuss, R. A. – 1964: A conquista do Estado. Petrópolis, Vozes.

Dreifuss, R. A. O jogo da direita. Petrópolis, Vozes.

Fontes, V. “As expropriações contemporâneas e o papel da política”. In: Reflexões Im-pertinentes, Rio, Bom Texto, 2005.

Fontes, V. “Sociedade civil no Brasil contemporâneo: lutas sociais e luta teórica na década de 1980”. In: Neves, L.M.W. e Lima, J.C.F – Fundamentos da Educação escolar do Brasil contemporâneo. Rio, EPSJV/Fiocruz, 2006.

Giannotti, Vito. Força Sindical. A Central neoliberal, de Medeiros a Paulinho. Rio, Mauad, 2002.

Gramsci, A. Cadernos do Cárcere. Vol. 2. Rio, Civilização Brasileira.

Martins, André Silva – Burguesia e a nova sociabilidade: estratégias para educar o consenso no Brasil contemporâneo. Tese de Doutoramento, Programa de Pós-Graduação em Educação, UFF, 2007.

Marx, K. e Engels, F. – La ideologia alemana. 5ª ed., Montevideo/Barcelona, Ed. Pueblos Unidos/Grijalbo, 1974.

Neves, L. M. W. – “A sociedade civil como espaço estratégico de difusão da nova pedagogia da hegemonia”, In: Neves, L. M. W. N. (Org.) – A nova pedagogia da hegemonia. Estratégias do capital para educar o consenso. SP, Xamã, 2005.

Silva, Carla L. S. – Veja: o indispensável partido neoliberal. Tese de doutoramento. Programa de Pós-Graduação em História, Niterói, UFF, 2005.



[1] Sobre esse fenômeno, os textos de Pierre Bourdieu auxiliam em muito a compreensão. Ver, em especial, “O campo científico” (in: BOURDIEU, 1982).

[2] Ver, por exemplo, a matéria assinada por Luciana Rodrigues e Patrícia Eloy – Pulverizar para crescer. Sócios abrem mão de controle de companhias para reforçar caixa e expandir negócios. “..O Globo, 18/12/ 2006–– Caderno de Economia, p. 17.

[3] (http://veja.abril.com.br/idade/saladeaula/index.html, 27/03/2007.