[Por Jéssica Santos/NPC] A educadora popular, pesquisadora e fundadora do Mães de Maio, Débora Silva foi a entrevistada do Quintas Resistentes do dia 13 de agosto. O movimento é formado por mulheres que, assim como Débora, perderam seus filhos para a violência do Estado e lutam por justiça, reparação e respeito aos direitos humanos. “O movimento Mães de Maio nasceu de um dos piores massacres que ocorreu na história contemporânea do Brasil e na chamada ‘democracia’, no qual foi vitimado meu filho”, conta Débora.
Edson Rogério Silva dos Santos, filho de Débora, teve sua vida interrompida aos 29 anos em maio de 2006, quando no estado de São Paulo ocorreram uma série de assassinatos que ficaram conhecido como os “Crimes de Maio”. “Falamos em 599 pessoas porque o último relatório vem com esse contexto de quase 600 meninos que foram assassinados em São Paulo por uma retaliação do Estado em cima da população pobre, favelada, negra. A maioria dos crimes não foram solucionados”, destaca Débora, acrescentando: “Eles foram orquestrados por todo o sistema, que vai desde quem apertou o dedo até quem cravou a caneta pedindo os arquivamentos. É um conjunto de violações.”
Débora detalhou, de forma emocionada, os últimos momentos que passou na presença do filho antes do assassinato. Ela conta que Rogério foi abastecer a moto em um posto de gasolina quando foi abordado de forma violenta por policiais. Um amigo de Rogério se aproximou da cena a ponto de ouvir um dos policiais dizer:
— “Neguinho, morreu! Você é ladrão!”
Para Débora, essa foi a sentença de morte de seu filho, que, logo após ser liberado pela polícia, foi seguido e executado. Na manhã seguinte, Débora soube da morte do filho ao ouvir uma rádio local, anunciando os nomes de jovens que haviam perdido a vida. “Eu prestei atenção para saber se eu conhecia alguém e o terceiro da lista era o meu filho. Aquilo ali foi uma faca cravada no meu peito… e continua sendo até os dias de hoje! Eu tento ser forte, mas é uma história surreal. Perder um filho e escutar sobre a morte dele pelo rádio”, lembra.
Após o ocorrido, a dor e a tristeza eram tão profundas que Débora precisou ser internada em um hospital depois do enterro do filho. Ainda no hospital, teve uma visão que transformou seu sofrimento em motivação para prosseguir e lutar. “Pensei até que estava delirando porque era uma depressão muito profunda em que eu estava… Estava muito fraca e a imagem do meu filho apareceu. Eu só tive certeza disso quando ele me arrancou da cama e pediu para eu ir à luta”. Ela conta que a partir desse episódio fez uma reflexão que mudou os rumos da sua vida. “Ele me entregou uma missão. Eu não me sinto uma ativista, uma militante; eu me sinto uma pessoa que enfrenta este Estado, que vai continuar enfrentando enquanto ele existir”, afirma.
Ditadura ontem e hoje
O movimento Mães de Maio recebeu em 2013 a Medalha Chico Mendes, que simboliza o reconhecimento e homenagem aos que lutam em defesa do direito à vida e à liberdade. Na ocasião, Débora levantou questionamentos sobre as limitações em se falar em democracia quando a polícia militarizada continua matando nas favelas. “A gente questionou onde estava essa democracia. A ditadura é muito presente dentro das favelas e nas periferias. A gente sabe a geografia de tudo o que aconteceu no Rio de Janeiro e o que acontece nos dias de hoje, somos a prova viva. Como a gente pode acreditar no fim da ditadura, vendo que a máquina de moer gente está por aí? Como Estado brasileiro diz que respeita a democracia e fatia a Constituinte?
Para Débora, a ditadura nunca acabou. Para ela, não podemos dizer que vivemos em um estado democrático de direito quando a vida do seu filho e de mais de 600 pessoas foi violada, quando há encarceramento em massa, desaparecimentos e tantas outras violações de direitos em favelas e periferias. “O massacre de maio deveria ter sido um levante, mas aconteceu. Por isso que eu vejo João Pedro morrendo, Aghata morrendo, Amarildo sumindo, como desapareceu o meu irmão há 40 anos atrás, na época da ditadura. Eu sou irmã de um desaparecido no tempo do Esquadrão da Morte em São Paulo. Eles só mudam o rótulo, o nome, o sistema continuou”, afirma.
Para Débora, também precisamos ser “antirracistas para ganhar essa guerra”. Ela conta que se reconheceu negra ao perder o filho. Na luta por justiça, foi ficando cada vez mais evidente o quanto é ser excluído. Segundo Débora, o sequestro de nossa identidade foi tão violento que é até difícil se ver enquanto pessoa negra. “Quando você se reconhece, tem elementos suficientes para debater com aquilo que está sendo negado para você, passa a conhecer o que é racismo”, explica, complementando: “Não adianta falar que não é racista, tem que ser antiracista e abraçar a causa, mesmo se você tem uma pele clara”.
Grito de liberdade
O Movimento Mães de Maio já lançou algumas publicações que, além de documentar e denunciar, mantêm viva a memória e a luta das mães por justiça. É o caso do livro “Do luto à luta – Mães de maio” (Baixe o PDF aqui), que conta a história do movimento, das mães, trazendo também textos de artistas e convidados. “É como um grito de liberdade, fizemos como declarações de dentro da alma. Pegamos trechos de falas das mães e montamos o livro com textos de alguns artistas. Foi um livro que incomodou”, conta. Já o “Memorial dos nossos filhos vivos – as vítimas invisíveis da democracia”, organizado por Débora, reúne histórias que vão além da tragédia e luto das mães. A publicação traz depoimentos que resgatam as memórias que as famílias têm de seus filhos, com depoimentos contando a vida deles desde a infância. “Pretendemos fazer os volumes 2 e 3 do Memorial, falando sobre os filhos desaparecidos e com a Rede Global de Mães e Familiares”, anuncia.