No dia 21 de abril de 2022, o programa Quintas Resistentes trouxe o escritor e professor Adair Rocha, titular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e da PUC-RIO, e atual diretor do departamento cultural da UERJ para conversar e explicar mais sobre “Movimento Popular no Rio de Janeiro”.
Após dois anos sem desfile das escolas de samba na Marquês de Sapucaí por conta da pandemia, a Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro decretou o carnaval fora de época, que aconteceu junto aos feriados de Tiradentes e São Jorge neste final de semana, de 21 a 24 de abril. Nesse contexto, Adair começou o programa falando sobre a questão do carnaval, sobretudo, por ser uma criação da periferia. A representação da festa na Marquês a torna a maior arte cênica do mundo produzida pelas favelas. Com o vírus, “que tem mais força que a guerra, que tem mais força do que todos os grandes ditos países que se consideram poderosos e tiveram todos que se submeter (ao vírus)”, a pandemia deixou claro e escancarado a “incompletude” do poder público nas favelas, ou seja, a ausência que se transforma em “normalidade”. Tanto do ponto de vista sanitário, quanto econômico.
A presença do carnaval é trazer para as ruas da cidade como um todo o que é a perspectiva da multicentralidade da cidade. No conceito de cidade multicêntrica, favela é cidade, e toda a cidade e não apenas uma parte. Para Adair, o estado está muito mais voltado para como vai fazer as arrecadações a partir do que se gera e não as necessidades desses territórios que “organizam” o carnaval. O poder público tem uma visão míope do que significa a potência desse povo: “A preocupação do poder público é com o momento que os hotéis precisam estar lotados e a moeda circulando.” “O carnaval acaba sendo uma forma de resistência”, conclui quando se refere às letras dos sambas-enredos que, por exemplo, denunciam as mazelas em que o povo vive e sobrevive.
Cidade multicêntrica
O professor falou sobre seu livro “Cidade Cerzida – a Costura da Cidadania no Morro Santa Marta”, que retrata o cotidiano dos moradores do Santa Marta, favela do Rio de Janeiro. Esse termo é explicado por ele mesmo, “cidade cerzida” como no dicionário: costurar com pontos muito pequenos, disfarçando-lhe o defeito; costurar, coser, remendar; e é justamente isso que ele quer expor, costurar o que estava rasgado, são os que os moradores, movimentos e organizações fazem. O professor ainda faz uma analogia ao debate do livro “Cidade partida”, de Zuenir Ventura, no qual o autor fez um estudo direto de como é a polícia e o tráfico. Assim, ao mesmo tempo que essa formação geográfica do Rio e as desigualdades em comum são expostas, vão de uma “cidade partida” a uma “cidade cerzida”.
O termo “cidade multicêntrica” dá significado às favelas como se fossem cidades dentro de uma cidade, uma dependendo da outra. Ou seja, a cidade partida e ao mesmo tempo a forma que a cidade está montada, a divisão da cidade como favela x asfalto. Essa contextualização é importante para compreendermos a forma com que a desigualdade social perversa se apresenta nesses territórios.
Em “Cidade cerzida”, Adair buscou não apenas dar voz para os moradores, mas sim escutar essa voz, entender, discutir e traduzir essa voz: “Eu procurei traduzir o mais diretamente possível essa voz que tá ali, a partir das mais diferentes questões. Questões que estão ali no morro, mas fazem parte do conjunto da cidade. Daí a expressão cada vez maior de que favela é cidade”.
A cidade é rasgada de uma forma singular e essa singularidade que o Rio apresenta é o que se pode chamar de “imagem invertida do espelho”. Sendo assim, para o Leblon você tem o Vidigal; Ipanema tem o Morro do Cantagalo; o Leme tem Chapéu Mangueira e Babilônia, e assim vai. E, diferente das outras capitais, onde as favelas e periferias vão se distanciando e vão ficando cada vez mais longe, aqui elas praticamente estão “uma dentro das outras”.
Um outro ponto de vista que ele apresenta é aquele que carrega uma conotação negativa de que quando se trata de favela, a associação é ligada à violência, criminalidade, tráfico de drogas. Vide que não existe, não existe complexo zona sul, por exemplo. O termo complexo, como Complexo do Alemão ou da Maré, traz algo pejorativo.
O jogo de poder está na comunicação e na cultura
Adair Rocha tratou ainda da questão da comunicação comunitária e os meios de comunicação, como TVs e rádios comunitárias e sua importância. Para ele, a comunicação e a cultura são questões que possibilitam definir, criticar e redirecionar a leitura. Um dos desafios da comunicação popular, já que qualquer possibilidade de discussão vira censura, é falar e traduzir a partir dessa visão de autonomia e do pensamento crítico dessas favelas e periferias.
Falou também sobre o poder público estar presente nesses espaços e a questão do assistencialismo. A importância da juventude atuar e da formação dos novos intelectuais orgânicos. Além da comunicação comunitária dentro da própria favela, a leitura e os desdobramentos dessa comunicação: “Onde tem cultura acontecendo, tem que ter comunicação”, afirma.
O professor falou também da importância de se fazer uma leitura da favela diferente do que os meios de comunicação transmitem no dia a dia e sobre o fato da comunicação comunitária traduzir demandas da favela e periferias. Só é possível entender a potencia da cidade, o que é morro e asfalto, quando entender o conjunto: “Enquanto não tratar da cultura e da comunicação a partir da significação da diversidade da cidade, você não está entendendo nada nem de favela nem de asfalto, não está entendendo nada da cidade.”
Dicas:
O filme lançado recentemente, “Medida provisória”, de Lázaro Ramos;
O curta “Fartura” de Yasmin Thayná.