Por Viviane Gomes, Rets, agosto de 2004
 

João Roberto Ripper e Ricardo Funari são fotógrafos reconhecidos por seus trabalhos de documentação de temas sociais. Já registraram conflitos de trabalhadores rurais sem terra e a exploração da mão-de-obra infantil. Em junho eles iniciaram, no Observatório de Favelas, o desafio de atuarem como coordenadores e professores do projeto Escola de Fotógrafos Populares Imagens da Favela. A iniciativa, que está sendo realizada na Favela da Maré, subúrbio do Rio de Janeiro, é a primeira parte de um projeto que envolve a criação de um banco de imagens e uma agência de fotografia – homônimos da escola. Um dos objetivos do projeto é registrar o dia-a-dia de comunidades pobres através das lentes e dos olhares dos novos fotógrafos, moradores de favelas que conhecem de perto os diversos ângulos da exclusão social. 

Além do Observatório, também são parceiros da escola o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), Casa de Cultura da Maré, Associação de Moradores do Conjunto Nélson Mandela, Grupo Sócio-Cultural Raízes em Movimento (GSCRM), Associação de Moradores da Fazendinha, Grupo ECO, Casa de Cultura da Rocinha, Rocinha XXI, ONG Horizonte, PEGASO, Cooperativa de Vila Aliança, PROCEAS – Projeto Comunitário de Estudos e Ações Solidárias, Centro Cultural Cartola e Centro Cultural Candelária (CECUCA). 

Nesta entrevista à Rets, João Roberto Ripper e Ricardo Funari falam sobre fotografia, escola, assuntos debatidos em sala de aula, mercado de trabalho e ainda sobre o estigma que se pretende mudar de que os moradores de favelas são pessoas ignorantes e potencialmente criminosas. “A nossa sociedade é muito preconceituosa. Documentar pessoas que não são da classe média, que não são ricas, muitas vezes é caracterizado como estética da miséria. E a beleza é muito mais democrática do que o processo de formação de uma pessoa ou do que o processo arquitetônico e urbanístico de uma cidade”, reflete João. 
 

Rets – Vocês já fazem o registro fotográfico de temas como trabalho escravo, utilização de mão-de-obra infantil e conflitos pela terra. Neste projeto vocês estão ensinando técnicas fotográficas para buscar uma representação mais próxima à realidade de áreas periféricas. Como a fotografia pode contribuir para a representação desses espaços?

João Roberto Ripper – A maior contribuição que a fotografia pode dar e que é a busca principal deste projeto é mudar o conceito que se estigmatizou sobre favela e cidade. Tentar de alguma maneira mostrar que favela não é uma não-cidade. Buscamos um olhar que nos revele a vida que existe dentro da favela com sua multiplicidade, suas diferenças. A documentação das áreas populares vai tentar trazer a cidade normal, a cidade como um todo e a favela como parte dessa cidade. E é essa cidade que nós temos que aprender a respeitar, convivendo com as diferenças que se apresentam em diversos locais da cidade; zona norte, zona sul, favelas, periferias. Esse trabalho pretende mudar um conceito de que as comunidades pobres são comunidades carentes, lugares onde que moram pessoas pobrezinhas, ignorantes e potencialmente criminosas. É preciso mostrar o potencial de vida, de gente, de comércio, de trabalho, que as pessoas têm. E mostrar isso rompe com alguns conceitos. A nossa sociedade é muito preconceituosa. Documentar pessoas que não são da classe média, que não são ricas, muitas vezes, é caracterizado como estética da miséria. Quando a beleza é muito mais democrática do que o processo de formação de uma pessoa ou do que o processo arquitetônico e urbanístico de uma cidade. A beleza está em todas as áreas, inclusive em áreas muito pobres. Ainda mais porque a luta das pessoas que moram em comunidades populares para afirmar e manter valores é tão forte e tão bonita que dá à estética e à beleza uma dignidade impressionante. Este são os objetivos principais da gente, mas isso tem que passar por aprender, formar, estudar. 
 

Rets – De que forma a escola vai ajudar a mudar conceitos?

João Roberto Ripper – A gente tem o compromisso de formar fotógrafos, que podem seguir o caminho que eles quiserem, mas a proposta do curso é dar uma linha documental, jornalística. Documentar favelas não é simplesmente subir morros. Para nós, que somos jornalistas e documentaristas, essa discussão é ainda mais profunda porque documentar favelas não é subir morros atrás das polícia para procurar culpados. Vamos questionar, neste curso, se nós – comunicadores – somos, por excelência, responsáveis pela imagem dessa cidade partida e pela discriminação na cidade. 

Ricardo Funari – A gente quer um olhar de dentro para fora. O grande objetivo é que todas as pessoas possam daqui a um tempo ter acesso a esse olhar feito por uma pessoa que nasceu aqui dentro e não esse que a gente, a mídia, está sempre apresentando. Porque por mais que a gente tenha esse discurso, nós somos pessoas de fora. A gente não vive aqui todos os dias. A documentação que eles vão produzir, depois que estiverem prontos para atuar, vai ser diferente. Eles acordam, dormem, vivem aqui dentro. Isso não é uma semana ou um ou alguns meses, isso é a vida. Eu acho que eles vão retratar a coisa do viver mesmo, mas é difícil fotografar a sua casa, o local que você vê todos os dias. As coisas não te chamam mais atenção. A gente vai ter que superar isso e eu espero que daqui a um tempo eles façam um trabalho muito melhor do que o que nós, fotógrafos profissionais, faríamos. Eu estou ansioso para ver essa documentação, para saber o que vai sair disso.
 

Rets – E como vocês estão preparando os alunos para fazer o registro do cotidiano, para fotografar a comunidade onde vivem?

João Roberto Ripper – Eu vou te dar um exemplo de um dia de aula, e você vai ver que eles já sabem o que querem expressar, gritar. Eles trazem consigo uma bagagem imensa de opressão, mas também de vontade de aprender, de dizer coisas que vão facilitar muito o trabalho. Num dia de aula, projetamos imagens de fotojornalismo para discutirmos técnicas de fotografia e também para que eles debatessem sobre como são publicadas as notícias sobre as favelas.

Muito bem, uma das fotos era sobre o assalto ao ônibus 174, aquele episódio que até virou filme. Um dos alunos do curso – que é paraplégico e se desloca em média um quilômetro

ou mais por dia para participar do curso – pediu para falar. Ele disse que a pessoa que praticou o assalto morava na comunidade dele e contou um pouco da história do rapaz. Do outro lado da sala, uma menina que mora na Rocinha (o curso abrange várias comunidades) disse que a moça que morreu era vizinha dela. Então, na mesma sala, no mesmo dia, nós tivemos visões diferentes sobre o mesmo assunto. E por causa dessa discussão, uma senhora (o curso tem participantes de várias faixas etárias) pede para incluir na discussão a atuação da imprensa, que segundo ela matiriza o Tim Lopes. Ela questiona inclusive as matérias premiadas do nosso colega Tim Lopes, pelo fato de elas mostrarem o problema, mas não dizerem o porquê do problema.

Nesse mesmo dia, eles pedem uma reunião para discutir como é que nós, da organização do curso, estamos preparando a segurança deles, para quando eles forem para dentro da favela fotografar não serem achacados pela polícia. Em seguida, a diretoria do Observatório de Favelas nos avisa que um dos professores acabou de sofrer um seqüestro relâmpago creditado à polícia. Esse é o contexto de um dia de aula. Por aí você pode ver o que se quer dizer. Quando eles dominarem a técnica e conseguirem se aproximar do que querem, a gente vai ter muito para ver de um olhar diferente do nosso. 

Ricardo Funari – Quando a conversa é sobre como vamos entrar na favela para fotografar, se vamos por aqui ou por ali, qual é a atitude que podemos ter, a discussão fica até explosiva. As pessoas têm posturas diferentes sobre como lidar com o tráfico, mas elas sabem o perigo que é ser identicado com uma das facções criminosas do Rio de Janeiro. Com relação à polícia, a aversão e o medo são quase uma unanimidade entre todos os moradores de comunidades. 
 

Rets – E qual é será o espaço desse olhar, dessa representação?

João Roberto Ripper – Além do curso, o projeto apresenta um banco de imagens chamado Imagens do Povo, que está em formação, junto com a agência de fotografia chamada Imagens do Povo, que será uma agência profissional. 

Ricardo Funari – Esse banco de imagens tem um formato parecido com o Social Watch, que está hospedado na Rits. Pensamos em um banco de imagens e numa agência de fotografia especializados em temas sociais, que vai ser fomentada por trabalhos nossos, deles e também de outros fotógrafos de comunidades – também com intuito de fazer dinheiro. É uma agência de fotografia que vai vender o direito de uso da imagem para as publicações, para as empresas e, ao mesmo tempo, tentar difundir esse olhar que a gente está trabalhando aqui. 

João Roberto Ripper – E, ao mesmo tempo, que tenha como diferencial uma proposta de inclusão dos excluídos socialmente, dos excluídos da comunicação, da informação. Todos os fotógrafos que participarem deste projeto vão assinar um termo dando ao Observatório de Favelas o arbítrio de doar esse matérial a todas as iniciativas que não possam adquirir as fotografias. Além disso, a gente pensa em crescer. Atualmente, o curso é dado em quatro horas diárias, por quatro meses. Mas é pouco.
 

Rets – Mas a ementa do curso é bem rica…

João Roberto Ripper – É bem rica – há matérias como teoria e prática fotográfica, direito autoral, informática; edição, escaneamento e arquivamento digital e ainda inglês… Mas o tempo é pouco, por isso pensamos em fazer um curso de um ano.

Ricardo Funari – De segunda a quinta, fotografia; na sexta, inglês para orientar quanto aos livros, sites, programas e documentos que só são encontrados em inglês. Além disso, o idioma vai ajudá-los nas aulas de informática, que damos para que eles saibam como tratar uma imagem, montar e gerenciar um banco de imagens também. 

João Roberto Ripper – A idéia é que eles saibam tratar suas fotos e que tenham uma iniciação numa atividade da qual o mercado fotográfico é carente. A idéia é formar pessoas que saibam trabalhar com gerenciamento de banco de imagens.

Ricardo Funari – Muitas agências estão procurando profissionais com esse perfil. Gente para alimentar banco de imagens e que saiba como gerenciá-los. Então, nós também estamos preparando estas pessoas para esse mercado de trabalho. 
 

Rets – Então o projeto também tem a preocupação de formar para o mercado de trabalho?

João Roberto Ripper – Queremos formar pessoas que possam contribuir com a documentação e a utilização das suas imagens nos veículos dessas comunidades. E que mais tarde, elas possam ser incluídas na categoria de jornalistas e obter seu registro profissional. E, além do registro, que contribuam para que a categoria entenda o que é documentar favelas. Mas nós não queremos colocar uma camisa de força nas pessoas – quero dizer: só porque você é trabalhador rural, você deve fincar uma estaca na terra e fazer sempre a mesma atividade. O curso tem uma linha documental, mas há também uma preocupação para que os alunos produzam, tenham idéias, criem outros cursos. 

A área social não peca pela competitividade entre um projeto e outro. Ela se fortalece com a soma e a troca de experiências bem-sucedidas em cada projeto. No final do curso, o objetivo da gente é fazer uma grande mesa-redonda com integrantes de vários projetos de documentação em áreas populares e de favelas para poder trocar informações sobre o que teve de bom, o que teve de ruim, para que haja um crescimento não só dos nossos projetos, mas de outros que existem no Rio de Janeiro. É a soma desses projetos que vai trazer um olhar diferenciado.
 

Rets – O curso começou em 2 de junho. Quais são as necessidades que vocês já podem apontar?

João Roberto Ripper – Começa a se discutir a necessidade desse curso ser desdobrado. E servir de apoio de forma diferenciada a experiências em outras comunidades que não dentro da Casa de Cultura da Maré. 
 

Rets – Mesmo abrangendo pessoas de 16 comunidades?

João Roberto Ripper – Sim. É que há necessidade de que essas 16 comunidades possam desdobrar em suas localidades outros projetos. Não precisam ser os nossos, mas que eles possam incentivar isso nas suas comunidades. 
 

Rets – Formar multiplicadores é um intuito do curso?

João Roberto Ripper – É também. Mas não necessariamente agregados ou presos a este projeto. O fundamental é que eles levem esse conhecimento para suas comunidades, que multipliquem esse conhecimento. Há também o embrião de uma idéia que é a formação de uma incubadora de fotógrafos populares. Ainda é cedo para colocarmos essa idéia como projeto, mas na verdade pensamos numa incubadora para que a pessoa possa crescer e produzir seu trabalho numa estrutura física para que ele possa continuar a se desenvolver de uma forma mais ampla. 

Ricardo Funari – Um curso que dura quatro meses é muito pouco para que a pessoa possa caminhar com as próprias pernas. A criação desse banco de imagens já vai ajudar. A gente está fazendo o curso. Depois, vamos produzir e vamos começar a forncecer o material para o banco de imagens e esperamos que as pessoas tenham um retorno financeiro com isso. A idéia de uma estrutura física é para que as pessoas compartilhem equipamentos de estúdio, computador e scanner para se desenvolverem na fotografia. Se esses materiais são caros para a gente, filhos da classe média, imagine para eles. 
 

Rets – A fotografia é uma atividade cara. Cursos, equipamentos, filme, revelação e papel são muito caros. Quais são os principais obstáculos para os alunos do curso, neste sentido?

Ricardo Funari – A questão do catálogo Imagens do Povo já está em andamento. Isso não é uma história. Não é só uma idéia que está no papel. Ele já está sendo executado. É uma coisa concreta, que dará continuidade para que os alunos possam exercitar o que estão aprendendo, com retorno financeiro. A idéia da incubadora está em discussão e seria fantástico se, assim como viabilizamos o curso, conseguíssemos viabilizar também a incubadora de alguma forma. Mas o custo é realmente alto. É caríssimo. Os alunos podem dividir alguns equipamentos, mas não tudo. Você pode dividir equipamentos de luz, mas é complicado dividir a máquina e a lente. E mesmo o que pode ser dividido é caro. 
 

Rets – E então o que eles vão fazer para realizar a etapa final do curso, que é a parte prática? São 22 pessoas. Como será feita a distribuição dos equipamentos para que cada um revele o seu olhar sobre a comunidade?

João Roberto Ripper – A gente planeja que na segunda parte do curso o grupo monte coletivamente uma visão das favelas. Essa visão de favelas tem como matriz o Complexo da Maré, escolhido por uma questão de facilidade de locomoção e transporte de equipamentos. A gente vai dividir o grupo e, enquanto uma parte vai seguir uma pauta – estabelecida por eles – para fotografar, a outra vai escanear, editar, tratar e indexar as fotos que foram tiradas no dia anterior. E assim a gente vai começar a ter dois meses inteiros de dinâmica: fotografar, editar, escanear, tratar a foto para dar um acabamento final, identificar a imagem, indexar e colocar no banco de imagens. E aí todos os dias serão assim: ou se está produzindo ou se está fotografando. E com isso a gente faz com que todos fiquem com câmeras na mão. 

Ricardo Funari – E também é bom acrescentar que no final desse processo coletivo de fotografar a Maré vai haver uma exposição virtual. Nós vamos criar um site, dentro do Observatório de Favelas, para que o público tenha acesso a essa produção. 
 

Rets – Vocês falam em formar documentaristas. Os que isso significa para vocês? 

João Roberto Ripper – Significa trazer para o foco a vida da qual você assiste e participa. Acho que o documentarista rompe com a hipócrita imparcialidade jornalística e assume um documentário do qual ele pode ver, participar, documentar e, portanto, ser um agente transformador. O documentarista não é só o cara que contribui com a história com uma documentação de algo vivido que fica para ser contado, mas principalmente ele quer mostrar o que precisa ser mudado em algo que acontece agora. Acho que é nesse sentido que nós queremos formar documentaristas militantes, pessoas que sintam a problemática e que queiram utilizar a fotografia como instrumento de transformação da realidade. Queremos formar pessoas que acreditem que documentar é muito mais do que registrar uma história: é transformar histórias. São pessoas que sabem que podem documentar e guardar uma história para que essa documentação possa contribuir para mudar realidade. Enfim, são pessoas que querem romper com a hipocrisia da imparcialidade e assumir completamente qual é o lado que querem mostrar. 

Mensagens para a autora da entrevista: viviane@rits.org.br 

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