O ano que se inicia verá o confronto direto entre dois conceitos para o audiovisual: um deles, do Ministério das Comunicações, quer manter os atuais princípios de distribuição de recursos na transição para uma plataforma digitalizada; o outro, do Ministério da Cultura, aposta no modelo de agências reguladoras para ampliar o acesso aos meios. Por Maurício Hashizume, da Agência Carta Maior, 7/1/2005

BRASÍLIA. Entre tantas previsões para 2005, pelo menos uma pode ser dada como certa: o ano que se inicia entrará para a história do setor de comunicação social, considerado fundamental para o futuro de qualquer país. Em 2004, discussões sobre o papel do Estado no tratamento das questões relacionadas à área, em especial pela histeria da chamada grande imprensa no tocante às propostas de criação do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) e da Agência Nacional de Cinema e do Audiovisual (Ancinav), povoaram as rodas de conversa. Mas o ponto nevrálgico da polêmica continua sendo negligenciado. 

Enviado ao Congresso Nacional pelo Poder Executivo, o controverso projeto de lei do CFJ – que previa a instalação de um órgão de amplitude nacional para disciplinar a atividade dos profissionais da área de Jornalismo – não resistiu ao bombardeio de críticas e desmoronou na mão dos parlamentares. 

A pedra colocada sobre o CFJ, entretanto, não possui ligação direta, ao contrário do que muita gente bem intencionada tem defendido, com a escolha-chave para a construção de um país diferente que está no núcleo da idéia da Ancinav. Quando o ano de 2005 chegar ao fim, poderemos comemorar avanços ou lamentar o triunfo de resistências históricas que determinam um sistema marcado pela longevidade do oligopólio da mídia que concentra dinheiro, poder de influência e privilégios.

A necessidade de regulação do setor do audiovisual (leia também “Ataques à Ancinav ignoram necessidade estratégica de regulação do audiovisual”) é premente, mas não consegue ocupar a centralidade do debate sobre a Ancinav. Lê-se nos jornais que governo busca “(…) o poder pelo poder, com a finalidade de constranger, fiscalizar, controlar o fluxo ’insuportável’ da realidade que emana da sociedade”, em um movimento cujo objetivo principal seria o “velho desejo totalitário” de “colocar a TV Globo de joelhos”. Os extratos anteriores foram retirados de artigo recente assinado pelo cineasta e funcionário da empresa da família Marinho, Arnaldo Jabor. 

Um balanço feito pelo professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB) Venício Lima, autor do livro “Mídia: Teoria e Política”, em outro artigo recém-publicado na página na internet do Observatório de Imprensa, ajuda a dar uma interpretação diferenciada do que há muito tempo deixou de ser um “desejo para ser uma realidade “totalitária”. 

Alguns tópicos levantados pelo professor valem ser destacados.

Primeiro: “A radiodifusão comunitária continua fortemente combatida pela radiodifusão tradicional e submetida à legislação restritiva de 1998. Rádios continuam sendo fechadas e equipamentos apreendidos pela Polícia Federal em todo o país”. 

Segundo: “O projeto de lei que regula o dispositivo constitucional sobre a regionalização da produção cultural, artística e jornalística (item III do Artigo 222), depois de aprovado na Câmara dos Deputados, está parado no Senado Federal”, lembra o professor, pela articulação de “uma forte resistência dos empresários do setor”. 

Terceiro: “No apagar das luzes do ano legislativo, o Congresso Nacional elegeu – com um atraso de seis meses – os novos membros do Conselho de Comunicação Social (CCS). Apesar de ser apenas um órgão consultivo, com a nova composição há o risco de o CCS se transformar em mais um instrumento de defesa da grande mídia. Um exemplo: o antigo representante das emissoras de televisão foi reeleito, só que agora transfigurado em representante da sociedade civil. Ficaram de fora, dentre outras, as representações das emissoras públicas, da radiodifusão comunitária, dos estudantes e dos professores/pesquisadores de comunicação”. 

Outra funcionária da Globo, a jornalista Miriam Leitão, que escreve sobre economia no jornal do maior grupo de mídia do país, também definiu a Ancinav, em uma de suas colunas de passagem de ano, como uma “(…) proposta de criar uma agência para regular, fiscalizar e punir o exercício do audiovisual na televisão e no cinema”. Na Agência, segue a influente colunista, “(…) cinco diretores decidirão por maioria simples, ou seja, três votos, questões controversas como a de controlar os meios de comunicação para que: ’defendam os valores éticos da pessoa e da família; observem a diversidade de fontes de informação e a liberdade de expressão; e tenham responsabilidade editorial e de programação’”. E ela continua: “São questões subjetivas que só podem ser decididas pelos três poderes da República: jamais por três indicados do Planalto”. 

Para arrematar, Miriam Leitão reproduz dizeres do antropólogo Roberto da Matta: “Ela [Ancinav] é centralizadora e tudo o que é centralizador estimula o clientelismo. O mercado decide de forma impessoal; um órgão centralizador fortalece a busca das relações pessoais, uma fonte dos problemas que já tivemos no passado. Tenta defender o regionalismo e a cultura nacional da forma equivocada. É bobagem achar que é possível deter a velocidade de circulação da informação. Eu cresci exposto aos produtos culturais americanos, no cinema e na música, e passei a vida inteira escrevendo, pensando e entendendo o Brasil. O regional sempre sobrevive e hoje, após todos os avanços da integração do país, eu sei mais, estou mais exposto e sou mais simpático ao que é típico de cada região do Brasil do que nos anos 60. É muito perigoso tentar interferir em processos criativos, porque a sociedade tem uma dinâmica cultural mais complexa do que está expressa nos textos da Ancinav”. Na mesma coluna, a jornalista se utiliza de outra afirmação do próprio da Matta: “(…) o governo atual tem aprendido no poder como ser democrático”. 

O debate sobre a suposta pretensão totalitária do governo esconde a possibilidade real de definição de um novo marco legal que, além de contemplar a necessidade histórica de revisão das leis sob o prisma da convergência tecnológica, pode apontar para a consolidação de r

egras para estimular e favorecer o desenvolvimento do audiovisual, uma das indústrias mais promissoras neste início do século 21. A tentativa de colocar os valores democráticos em xeque busca escamotear a grande orquestração para que as alterações no sistema sejam as mais brandas possíveis, para não dizer inócuas. Nessa toada, itens relativos ao compromisso de veiculação por parte das tevês abertas de produção regional, tão criticados por intelectuais como Roberto da Matta, já foram retirados da última versão da proposta da Ancinav. 

Muito mais que isso, está em curso um outro movimento paralelo, dentro do próprio governo, que atende plenamente os anseios dos setores mais contrariados com a proposta da Ancinav. No documento “Perspectivas para 2005”, o Ministério das Comunicações (MiniCom) prevê a elaboração de uma nova e ampla legislação para “dar maior agilidade às atividades da radiodifusão, além da criação de mecanismos que permitam uma melhor fiscalização do conteúdo difundido pela comunicação eletrônica”.

Para tanto, o MiniCom já conseguiu aprovar no Orçamento da União para 2005 uma provisão de R$ 1,27 milhão para “Reformulação de Política de Comunicação Eletrônica”, descrita como “elaboração de um documento formal que represente uma proposta legislativa do Ministério das Comunicações para uma nova normatização da Comunicação Social Eletrônica no Brasil”. Esse dinheiro viabilizará a contratação de uma consultoria especializada para conduzir o processo de construção dessa nova proposta que englobará tanto o setor de radiodifusão quanto o de telecomunicações que está sendo aguardada para setembro de 2005. Não custa salientar que, assim como o esperado projeto da Ancinav, a anunciada proposta do MiniCom também terá de ser apreciada pelo Congresso Nacional.

O Orçamento de 2005 destina ainda mais R$ 43,8 milhões (que contou com acréscimo de R$ 41 milhões no Congresso) para “Outorgas de Serviços de Radiodifusão” e mais R$ 18 milhões em capacitação de mão-de-obra em geral. A previsão do MiniCom é distribuir mil concessões e treinar 300 técnicos no ano que vem. Ainda existem R$ 1,062 milhão para a “Formulação da Política de Radiodifusão Digital”, outros R$ 1,27 milhão para a “Reformulação da Política para o Setor de Telecomunicações”, e mais R$ 2,858 milhões a título de “Reformulação da Política de Desenvolvimento Tecnológico e Industrial das Telecomunicações”. 

Em 2005, o que está colocado, portanto, é o confronto direto entre dois conceitos de desenvolvimento para o futuro do audiovisual e, por conseqüência, da própria comunicação social no Brasil. Um deles, defendido pelo MiniCom, que, ao que tudo indica, manterá durante a transição para uma plataforma digitalizada o princípio do modelo atual de transferência de recursos públicos aos poderosos conglomerados privados da mídia. E outro, sustentado pelo MinC, que aposta no modelo de agências reguladoras para definir regras de funcionamento de uma economia do audiovisual diferente que possa ampliar o acesso aos meios de produção, distribuição e veiculação, e faça valer, por intermédio de uma competição mais justa (que não seja determinada apenas pelos ditames do mercado) e da garantia da pluralidade de atores, um coeficiente mínimo de interesse público.