Por Euro Mascarenhas Filho
Diferente do clima de festa e espetáculo televisivo que acompanhou a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro, o que existe hoje é o silêncio dos veículos de comunicação hegemônicos, que ajudaram a legitimar um projeto cujo fim foi melancólico. Pensar o atual estágio fluminense é olhar para um Rio pós-UPP, que não conseguiu resolver seus problemas de segurança, como foi vendido, e ainda viu o avanço das milícias nos últimos anos.
Em seu livro, “Notícias da Pacificação”, o autor Pedro Barreto Pereira nos dá mostras de como o autoproclamado jornalismo profissional enquanto “guardião da democracia” é algo ilusório, sendo que ele mesmo milita para o avanço de políticas repressivas sobre as vidas de pessoas pobres e faveladas. O mais interessante é que Barreto tem como objeto de trabalho o jornal “O Globo”, que é visto como um periódico com discurso sóbrio e técnico, ou pelo menos tenta passar esta imagem. Portanto não se trata de um veículo do tipo “espreme o papel que sai sangue”, ou os já conhecidos telejornais sensacionalistas. Trata-se de um jornal que sempre se comunicou mais com as classes altas e evoca para si uma tecnicalidade no fazer jornalístico.
A Copa do Mundo de Futebol Masculino de 2014 e as Olímpiadas de 2016 trouxeram promessas de legado esportivo e social, a UPP fazia parte deste pacote de promessas. Barreto demonstra que o noticiário do “O Globo” ignorou as consequências nocivas da implantação deste projeto para as vidas das comunidades que o receberam, ou considerou como sacrifícios necessários que os moradores tinham de pagar em nome da “pacificação”.
O uso político do medo
A pesquisa de Barreto parte de uma investigação sobre como o chamado “medo branco” foi utilizado pela burguesia brasileira como instrumento de dominação, e também se tornou um elemento definidor de nossa identidade e imaginário social. Segundo o autor, duas revoluções causaram alvoroço às mais altas castas do país, a Revolução Haitiana entre 1791 e 1804 e a Revolta dos Malês em Salvador (BA) em 1835. No primeiro caso, temos uma ex-colônia de escravizados negros derrotando as tropas de Napoleão, o que fez alastrar um medo nas nações europeias e suas colônias de que o mesmo pudesse acontecer com elas. Por isso, o segundo caso que aconteceu no Brasil trouxe consigo uma espécie de trauma, quando na capital baiana centenas de negros em condição de escravidão ocuparam as ruas e enfrentaram as tropas do império. Um dado importante é que os Malês seguiam a tradição muçulmana, eram alfabetizados, e segundo as fontes consultadas por Barreto, possuíam meios sofisticados de comunicação.
Outro processo que irá ocorrer ao longo da história, em consonância com a gênese do medo, é a construção da oposição entre duas formas de representação social: o bandido e a vítima, que com o passar dos anos foi sendo atualizada no Brasil; “malandro x trabalhador”; conforme as fases de desenvolvimento do capitalismo no país se davam. Barreto coloca que tal oposição ocorre pela necessidade de afirmar a ideologia burguesa e a dignificação da vida pelo trabalho.
Para legitimar essa ideologia duas estratégias foram adotadas, a primeira pela via jurídica que criminalizou indivíduos, geralmente negros, a partir de critérios genéricos. Já a segunda via foi a discursiva, no caso, a importância que teve as crônicas e matérias dos jornais do Rio de Janeiro ao nacionalizar estereótipos sobre miséria, pobreza e bandidagem associados a determinados grupos sociais.
Políticas de policiamento comunitário
Barreto também reconstrói as políticas de policiamento comunitário que foram implementadas no Rio de Janeiro, tendo como ponto de partida o período de redemocratização do país. A pesquisa analisa desde a gestão Brizola até o período de criação das UPPs, com Sérgio Cabral.
Uma questão que o livro deixa escapar é a definição do conceito de polícia comunitária, que automaticamente também remete a necessidade de definir o conceito de comunidade para os agentes que aplicam tais políticas públicas. Levando em consideração que existe uma diversidade de programas que utilizam essa ideia, seria importante uma discussão entorno disto, pois é no vácuo de uma melhor compreensão de “polícia comunitária” que governos fazem o que bem desejar, com anuência da imprensa que não questiona as bases dessas políticas.
No que diz respeito ao panorama que o livro faz sobre as medidas dos governos do Rio, o que se observa é uma descontinuidade de projetos, e ações que ora se norteiam por princípios mais humanitários, ora se orientam por um policiamento meramente ostensivo das regiões faveladas. Na gestão Brizola, por exemplo, nas duas oportunidades que teve para governar o estado do Rio de Janeiro, procurou aplicar um conceito de polícia como serviço, e não força. A figura do Coronel Nazareth Cerqueira como Secretário de Segurança foi central para a aplicação desta política, que buscava integrar as secretarias de Promoção Social e de Habitação e Trabalho.
Na gestão Garotinho, o que se tem é o funcionamento dos chamados Grupos de Policiamento em Áreas Especiais (GPAEs), que eram unidades de polícia instaladas em algumas favelas 24 horas. De acordo com Barreto, esta é a primeira vez no Brasil que ocorre uma experiência de policiamento permanente. Mas conforme o tempo passa a relação entre moradores e policiais começa a se desgastar. O sucateamento dos GPAEs também é uma outra realidade, até que em 2007, com a eleição de Sérgio Cabral, o programa é definitivamente abandonado para dar lugar às UPPs.
Importante ressaltar que o livro também não debate os famosos confrontos entre o ex-governador Brizola e a mídia, especificamente o grupo Globo. Mesmo diante de uma abordagem que negava a aplicação de ações armadas, e que se orientou pelos Direitos Humanos, a emissora atacou pesado Brizola e Cerqueira. Seria muito enriquecedor para um trabalho que trata a forma como a mídia legitima políticas de repressão policial nas favelas, analisar justamente o comportamento do jornal “O Globo” diante de um programa de segurança que vai em direção oposta.
De um modo geral, este trajeto de políticas de policiamento comunitário levantados pelo livro, mostra a falta de sensibilidade dos governos em relação ao histórico de violência das forças policiais sobre os territórios de favelas. Qualquer tentativa de “aproximação amigável” entre estes dois grupos deveria levar isso em conta. Há também uma noção recorrente e inquestionável de que as áreas de favelas são militarizáveis, como nenhuma outra região. A UPP, além da militarização da vida das favelas, traz consigo uma lógica de mercantilização destes espaços, sobretudo aqueles mais próximos de áreas consideradas nobres.
Jornalismo, pacificação e democracia
É comum a crença de que o jornalismo é o braço direito da democracia, que o seu exercício é fundamental para a liberdade. A julgar pelo que o livro “Notícias da Pacificação” nos mostra, este consenso fica bastante comprometido. Pois vemos de modo bem detalhado como a realidade de exceção democrática – na verdade é a regra – que estão submetidos os moradores de favelas, pode ser normalizada ou minimizada por um jornal. E que um veículo de imprensa não vê problema algum em colocar os abusos e mortes decorrentes da política de “pacificação”, como meros efeitos colaterais de uma medida necessária.
Barreto dividiu a sua pesquisa em duas partes, na primeira ele analisou um conjunto de matérias sobre UPP no período entre 2008 e 2011, contabilizando um total de 180 reportagens. A segunda parte compreendeu o período entre 2014 e 2016, e chegou no total de 376 matérias analisadas. No geral, a pesquisa investigou 556 reportagens.
O autor adaptou uma metodologia da socióloga norte-americana, Katherine Beckett, na qual ele utiliza um conjunto de pacotes interpretativos para classificar as matérias pesquisadas: Lei e Ordem na Favela, classifica aquelas matérias que reivindicam maior rigor na aplicação da lei, em especial o tráfico de drogas, considerado o maior causador da violência urbana do Rio de Janeiro; Extensão da Cidade Formal, nela, coloca-se a necessidade do modo de vida da favela ser enquadrado dentro do modelo “formal” de cidade, a vida dos moradores está ameaçada pelos traficantes armados e a única saída possível é a UPP. Alguns termos comuns a este pacote são “regularizar”, “legalizar” ou “acesso a serviços”; Liberdades Civis Sob Ataque, classifica as matérias que reconhecem a privação das liberdades dos moradores e denuncia as medidas de segurança mais duras (proibição de bailes funk); por último, Pobreza Causa Crime, busca designar as matérias que apontam as causas estruturais do crime, como o desemprego, baixa escolaridade, problemas sanitários, má habitação.
Em termos percentuais, o pacote interpretativo Lei e Ordem na Favela aparece em primeiro lugar com 61.5%. Em seguida, temos o pacote Extensão da Cidade Formal com 18,8%. Os pacotes Liberdades Civis Sob Ataque e Pobreza Causa Crime, aparecem em terceiro e quarto lugar respectivamente com 17,8% e 2,2%.
Outra abordagem na metodologia utilizada por Barreto é a noção de “clivagens ideológicas”, ou seja, como “O Globo” representa as UPPs em suas matérias, podendo mostra-las como favoráveis ao cidadão da favela ou do asfalto. Podem ser representadas também como promotoras do Estado de Direito, política permanente, consolidada ou efêmera em vias de acabar.
Há também um levantamento sobre quais fontes foram mais ouvidas para a realização das matérias, ao todo 1.112 declarações publicadas. As fontes estatais são as mais frequentes. O ex-secretário de segurança, José Mariano Beltrame, é aquele que teve a fala mais contemplada. Entre as fontes não estatais estão moradores, especialistas, representantes de entidades não governamentais e jornalistas.
No que diz respeito às clivagens ideológicas, o jornal “O Globo” representou as UPPs, na maior parte do tempo, como promotoras do Estado de Direito e política de segurança permanente bem consolidada.
Barreto também faz uma diferenciação entre “incidência e incidente”, quando nas matérias há uma generalização do singular, e quando algo recorrente é tomado como acidental. Para exemplificar esta discussão, a cobertura de dois casos com bastante repercussão à época foram usadas, no caso, a morte do Capitão da PM, Uanderson Manoel da Silva, comandante da UPP Nova Brasília, em setembro de 2014. E outro caso foi o assassinato do menino Eduardo de Jesus, 10 anos, baleado na cabeça por policiais militares na comunidade do Areal, Complexo do Alemão, em abril de 2015.
A morte do capitão frente ao assassinato do menino ajuda a compreender a diferença de tratamento que o jornal “O Globo” deu a cada um. Enquanto no primeiro caso o veículo aproveita para atualizar o número de policiais mortos e abrir campanha por uma legislação mais severa, como a aprovação da lei que torna crime hediondo o assassinato de agentes de segurança, no segundo, vemos uma abordagem que busca amenizar a situação, um discurso que justifica as mortes causadas pelas ações da PM como um simples “efeito colateral” do projeto de “pacificação”. As declarações do então Governador do Rio, Luiz Fernando Pezão, ampliam o entendimento dessa dinâmica, quando na ocasião da morte de Uanderson, manifestou uma fala mais dura e fez coro para leis mais rígidas. Já em relação ao assassinato de Eduardo de Jesus, atenuou o envolvimento da PM, e ainda por cima, demonstrou preocupação com o psicológico do soldado Rafael Monteiro, responsável pelo disparo que vitimou o menino.
O mesmo jornal que usou a morte do Capitão Uanderson para reforçar o entendimento de que havia um extermínio sistemático de policiais, dando suas páginas mais nobres para isso, não ofereceu o mesmo espaço quando se confirmou que a bala que atingiu o oficial partiu de outro colega. Mesma coisa quando houve a conclusão de que o disparo que matou Eduardo de Jesus também partiu de um policial. Nunca houve a preocupação de apresentar dados estatísticos que comparassem as mortes de moradores em áreas de UPPs em relação a mortes de policiais em serviço, o objetivo sempre foi igualar ou, até mesmo, superdimensionar um dos lados.
Rio pós-UPP
Resta saber se o que os jornais tinham em mente ao defender a UPP, como uma política genuína de pacificação e avanço do Estado de Direito, referia-se ao Rio pós-UPP. Um estado que ainda mata crianças sistematicamente dentro de suas casas pelas mãos da polícia, que abriu caminho para o avanço das milícias nos parlamentos municipais, estadual e federal. Sem falar da intervenção militar em 2018, que coroou todo o apagar das luzes do projeto de pacificação.
“Notícias da Pacificação” nos dá uma boa prova de que o discurso de “jornalismo ser indispensável para a democracia” é um engodo. A própria imprensa tornou-se um agente de opressão e fiel defensora da cartilha liberal, que mercantiliza a vida e os espaços das pessoas pobres e faveladas, consideradas como descartáveis. A paz defendida pelo jornalismo empresarial significa guerra às vidas negras, aos trabalhadores. Neste sentido, o trabalho de Barreto apresenta um duplo receituário: dos governos e suas intermináveis políticas de extermínio racial e a mídia que se alia como assessoria de imprensa.
Se o jornalismo busca investigar os fatos para uma melhor compreensão da realidade, por que ele auxilia a manutenção de uma lógica de segurança pública que se repete de geração a geração, mas sem qualquer resultado positivo? Um enxugar de gelos que nunca acaba. O que temos é um jornalismo subserviente aos interesses dos que mandam no poder, além de sustentar uma visão muito excêntrica do que seja democracia e Estado de Direito.