Por Érica Santana, da Agência Brasil, julho de 2005
 

Democratizar a informação e criar um canal que reflita a diversidade e realidade das Américas. Esses são principais objetivos da Telesur, canal via satélite que, a partir deste domingo (24/7), passa a funcionar experimentalmente 24 horas por dia.

De acordo com o jornalista brasileiro Beto Almeida, diretor multinacional da Telesur, o canal resgatará e revelará histórias e tradições da América Latina. A emissora será transmitida em espanhol e em português e contará com o apoio de oito correspondentes permanentes em Brasília (Brasil), Bogotá (Colômbia), Buenos Aires (Argentina), Caracas (Venezuela), Cidade do México (México), Havana (Cuba), Montevidéu (Uruguai), La Paz (Bolívia) e Washington (Estados Unidos). Além de uma rede de colaboradores em todos o continente. 

Leia a entrevista exclusiva que ele concedeu à Agência Brasil, diretamente de Caracas (Venezuela).
 

ABr: Quais são suas expectativas em relação ao lançamento da Telesur, já que esse canal tem uma visão alternativa à grande mídia? 

Beto Almeida: A Telesur é uma alternativa aos milhões de latino-americanos que queriam ver uma informação diferente, que não seja submetida às televisões comerciais que tem seus critérios determinados pelos interesses dos seus grandes anunciantes. Nós vamos fazer uma televisão em favor da integração dos povos latino-americanos. Vamos fazer uma TV em favor da cultura, sem baixaria, sem culto à violência, resgatando a memória e a história dos povos latino-americanos e conseguir, através disso, provar que é possível fazer da televisão uma ferramenta inteligente elevando a educação, a cultura, divulgando todos os vídeos do cinema americano que hoje não encontram espaço de exibição e que vão encontrar na Telesur uma grande janela de exibição: documentários da Argentina, da Colômbia, do Brasil, do México que estão engavetados que não têm onde ser exibidos.

ABr: Como isso ocorrerá?

Beto Almeida: O cinema latino-americano, em função do controle de 85% do audiovisual norte-americano sobre o mundo, não tem onde ser exibido, não encontra espaço de exibição. Na Telesur haverá esse espaço. Nossa expectativa é muito boa porque não há uma televisão dessa natureza, que trabalhe em favor da integração. Isso está na Constituição dos vários países latino-americanos. Por exemplo, na Constituição brasileira está a integração latino-americana como uma das metas da nação brasileira. Isso precisa de uma integração também no plano da cultura e da informação. É isso que a Telesur vem tentar defender e cumprir. A Telesur surge para pagar a dívida informativa que se construiu e avolumou contra os povos dessa região.

ABr: É um olhar mais profundo em direção a América Latina?

Beto Almeida: Nós queremos olhar a América Latina com nossos próprios olhos, porque hoje existe uma predominância do olhar do norte. Mas eles nos olham com os interesses deles. Eles não nos olham tentando resgatar a nossa auto-estima, pelo contrário. Nós queremos que esse olhar seja um olhar de identidade e respeito à nossa história. À trajetória de luta dos povos pela libertação econômica, pela emancipação cultural. É um olhar sobre nós mesmos, inclusive, projetando esse olhar para o mundo, para que o mundo tenha uma outra possibilidade de nos enxergar. Para ver que a América Latina tem potencialidades; tem direito de escolher seu próprio caminho, tem direito de organizar sua própria sociedade. Precisa da união dos vários povos para superar seus problemas de miséria, dependência tecnológica e cultural. A Telesur vem para colocar em tela de forma aberta e gratuita. Nós somos uma TV pública que não tem nada a ver com os interesses de mercado ou de lucro.

ABr: A Telesur será um canal bilíngüe. Como será trabalhada essa questão da língua e da cultura?

Beto Almeida: O general Abreu e Lima, pernambucano que lutou ao lado de Bolívar é um herói na Venezuela e é desconhecido no Brasil. Ele voltou para o país depois de ter participado da Revolução Praieira. Ele voltou ao Brasil no momento que Bolívar havia morrido. Ele escreveu muito, defendeu idéias muito importantes quando voltou ao Brasil. Mas quem conhece a história de Abreu e Lima no Brasil? Nós vamos contar essa história. Nós vamos contar para os bolivianos quem foi Tiradentes. Vamos contar para os colombianos que foi Zumbi dos Palmares. Isso já mostra um outro olhar, uma outra narrativa e uma outra linguagem. Mas isso precisa começar pelo respeito aos idiomas. Por isso nós vamos fazer uma programação bilíngüe. Espanhol e português para começar e depois podemos optar pelo inglês. Mas no começo, espanhol e português, fazendo dublagem ou legendagem, quando for o caso de vídeos e documentários.
 

Independência editorial é alternativa à parcialidade da mídia, diz Beto Almeida
 

Neste segundo trecho da entrevista, o diretor multinacional da Telesur, o jornalista Beto Almeida, afirma que a nova televisão será um meio de evitar a “sonegação de informação”. E deixa bem claro que a imparcialidade não será um valor a ser perseguido pela emissora. “Nós somos independentes porque não temos vinculação com agentes interessados no lucro”, afirma. Leia a entrevista.

ABr: Que linha editorial a Telesur adotará? 

Beto Almeida: Não existe imparcialidade. As grandes mídias não são imparciais. Elas são favoráveis à defesa de programas econômicos neoliberais, defendem a continuidade da desnacionalização da economia, de planos econômicos que levaram a América Latina a viver essa situação de miséria. Isso não é imparcialidade. Nós tampouco somos imparciais. Somos independentes porque não temos vinculação com agentes interessados no lucro. Nós defendemos aquilo que está preconizado nas constituições dos países: a integração latino-americana.

ABr: Então no que a nova TV se diferencia do que fazem os outros veículos?

Beto Almeida: Esse jornalismo tem uma diferença. Por exemplo, hoje não se sabe que há duas semanas a Venezuela foi declarada, pela Unesco, território livre de analfabetismo. Essa notícia não teve de

staque nas grandes mídias. Por que será? Não é por imparcialidade. Esse silêncio, essa sonegação de informação tem interesse em demonstrar que o que está acontecendo na Venezuela não deve servir de exemplo para outros povos. Da mesma forma que ninguém quer mostrar que a solução encontrada pela Argentina para a renegociação da sua dívida externa, que disse que só honraria 70% das suas dívidas. A grande mídia não atuou de forma imparcial. Ela disse que aquilo seria uma catástrofe. Um absurdo. Que a Argentina estava caminhando para o desastre. E não aconteceu nada disso. Ela foi muito bem-sucedida nessa renegociação da dívida. A economia da Argentina está se recuperando. Houve aumento de salários, das pensões dos aposentados. A indústria está tendo uma reanimação muito importante. As grandes mídias não quiseram e não querem dar destaque a essa recuperação porque na Argentina está se aplicando um programa diferente do que a grande mídia gostaria que fosse aplicado. Ele não tem nenhuma imparcialidade. Eles têm total parcialidade. 

Nós vamos mostrar as histórias. O que está acontecendo. Vamos entrevistar pessoas que não têm espaço na grande mídia. Quando, por exemplo, saiu na mídia brasileira essa história sobre que foi Abreu e Lima? Nunca. Nós vamos contar essa história. Nós vamos mostrar quem foi Zumbi dos Palmares. Vamos dizer que os nossos heróis sonharam com a liberdade econômica há muitos séculos atrás. Quando Tiradentes já sonhava com a independência econômica. Esse sonho ainda permanece na necessidade para a população brasileira.

ABr: A Telesur tem sua base em três pilares: informar, formar e recrear. Como isso será aplicado na prática? 

Beto Almeida: Vamos tomar o caso da informação, por exemplo. A grande mídia no Brasil recebeu uma verba publicitária tão grande para fazer a propaganda dos transgênicos que ela nunca pôde informar realmente o que acontece com a opção ou imposição das sementes transgênicas. O Brasil consegue vender a soja não transgênica, a soja limpa, que é produzida no Paraná, onde é proibida a plantação de soja transgênica com um preço muito melhor no mercado internacional que a soja geneticamente modificada. Uma vantagem comparativa que a multinacional Monsanto, que pagou grandes somas de publicidade para a grande mídia, não quer ver publicada. Ela quer ter o controle da produção agrícola brasileira através das sementes. Para transmitir essa informação é necessário ter independência. Nós vamos informar fatos que estão sendo sonegados.

ABr: E a questão da formação?

Beto Almeida: Vamos formar porque nós vamos dizer quem foi Bolívar, que foi Abreu e Lima, quem foi Zapata, quem foi Tupac Amaru, quem foi Martin Hierro. Todas as histórias e lendas da América Latina que são sufocadas para que as nossas crianças vejam apenas as histórias e lendas dos Estados Unidos e de outros países. Nós temos histórias de lendas e cultura de sobra que estão sendo destruídas e nós vamos tentar resgatar isso. Esse é um trabalho de formação.

ABr: E a recreação?

Beto Almeida: O trabalho de recreação é porque nós vamos tentar inventar uma outra narrativa televisiva. Por que a televisão tem que excluir a participação das crianças? Por que ela apenas considera a criança como consumidora? A criança só é interessante para a TV comercial quando ela é consumidora para comprar sapatos, bombons, refrigerante e alimentação que gera uma série de problemas de saúde. Nós não vamos fazer propaganda de remédios que não têm comprovação terapêutica, como faz a TV comercial. Nós não vamos induzir a população ao consumo excessivo ou à auto-medicação consumindo remédios que podem levar à intoxicação e a outros graves problemas. É um absurdo que se permita isso no Brasil. Por que? Porque as grandes redes, não apenas no Brasil, mas em muitos outros países a industria farmacêutica controla a publicidade das TVs comerciais.

A Telesur não vai fazer isso. Nós vamos tentar encontrar uma narrativa que primeiro não tenha que ter problemas com limites impostos pelos anunciantes. Nós não temos anunciantes. Nós vamos discutir tantas outras coisas que não são colocadas pela TV comercial, que nós temos a liberdade de fazer essa criação e recriação e também uma linguagem que pode ser muito mais divertida, leve e audaciosa. A Telesur vai ser, nesse sentido, um laboratório de experiências para recriar uma linguagem, uma narrativa televisiva que seja mais leve. Que tenha as cores da América Latina. O barulho da América Latina. O ruído da América Latina. A música latino-americana que hoje é dificilmente encontrada na própria televisão que hoje dá prioridade muito grande para a música norte-americana. Nós vamos ter uma estética latino-americana; de cores latino-americanas, ruídos, fala, lugares e personagens latino-americano.

“Telesur é uma emissora multinacional pública”, explica Beto Almeida

Neste terceiro trecho da entrevista, o diretor multinacional da Telesur, o jornalista Beto Almeida, explica como será o financiamento da emissora, que não terá anúncios publicitários em sua grade de programação. Leia abaixo:

ABr: O senhor disse que a Telesur não tem anunciantes. Como ela irá se manter? 

Beto Almeida: Ela será mantida pelos quatro países que patrocinam, que dão sustentação a Telesur. Esse é uma emissora multinacional pública. Ou seja, dos quatro países – Venezuela, Argentina, Uruguai e Cuba. Ela não tem anúncios e é sustentada com dinheiros dos povos. Recursos do orçamento que é criado pelo contribuinte dos quatro países. Esses países que tem seus governos sustentados pelos recursos dos contribuintes que pagam impostos e que dão sustentação financeira para a Telesur.

ABr: Quanto já foi investido até o momento para colocar a Telesur no ar?

Beto Almeida: Aproximadamente US$ 12,5 milhões; US$ 10 milhões de investimentos iniciais e mais US$ 2,5 milhões de orçamento que estão sendo aplicados na compra de produção audiovisual independente. Os produtores independentes devem se estimular porque por meio de co-produção nós iremos estimular a compra e a produção de vídeos que sejam produzidos na América Latina e acabar com esse bloqueio que é o domínio total do audiovisual norte-americano sobre esses países.

ABr: E quanto ao jornalismo da nova emissora?

Beto Almeida: O jornalismo terá um peso forte porque nós sabemos que isso é determinante. Se nós quisermos ser uma alternativa a CNN, por exemplo, quem

não gostar da CNN pode ligar na Telesur. Atualmente, não há alternativas. Tem que se ter um jornalismo que será alimentado por meio das oito sucursais que nós temos no Brasil, na Argentina, no Uruguai, na Bolívia, na Colômbia, no México, nos Estados Unidos, em Cuba e na Venezuela. Nós temos também o chamado que fizemos aos produtores independentes, que estão mandando muitos vídeos. Esses vídeos mostram fatos muito interessantes como os desaparecidos da Mercedes Benz na Argentina na época da ditadura, produzido por cineastas alemães e argentinos.

ABr: Na sua avaliação, quais os principais problemas que impedem uma transmissão honesta das informações?

Beto Almeida: O problema é o interesse econômico sobre a informação. A informação é um bem publico. Só uma empresa pública e a comunicação nas mãos do setor público é que pode dar mais pluralidade, mais diversidade e construir melhor essa meta. Desde que haja uma gestão democrática. Isso é uma condição. Se não houver uma gestão democrática isso pode não ser uma realidade. Veja o caso brasileiro, por exemplo. Não há queixas na campanha contra a baixaria na mídia, não há nenhuma queixa contra a TV pública do Brasil. As queixas são todas contra a TV privada e comercial. Porque a TV pública bem ou mal e mesmo com a falta de recursos e sucateada, tem uma programação muito mais descente, objetiva e muito mais ligada a Constituição. A TV comercial faz tudo ao contrário. Quem é que dificulta a livre informação? Ao meu ver são os grandes grupos econômicos.
 


Da Agência Brasil (www.radiobras.gov.br), julho de 2005

Endereço oficial da emissora: www.telesurtv.net