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Um ensaio em construção
Por Luís Antônio Giron

“Um livro clássico de nascença.” Esta frase do crítico Antonio Candido foi estampada na capa da nona edição do livro “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), editada pela José Olympio em 197 6. A frase peca pela imprecisão. Foi extraída do prefácio de Candido à quinta e “definitiva” edição do livro, lançada em 1969, uma versão com ideias inteiramente diferentes – se não opostas – daquelas da primeira edição, de 1936. Tanto assim que há quem diga que Antonio Candido se tornou coautor da obra – e canonizou-a em definitivo. Ou, como afirma o historiador João Kennedy Eugênio, da Universidade Federal do Piauí, “a leitura de Candido pode ser vista como uma espécie de invenção de Sérgio Buarque”.

Diferentemente de um livro “clássico de nascença”, entre as obras consideradas clássicas que inauguraram os estudos brasileiros na primeira metade do século XX, talvez “Raízes do Brasil” seja a mais inacabada e problemática. Quem sabe por isso mesmo tenha ganhado sobrevida nas discussões acadêmicas e chega aos 80 anos ainda a suscitar debates. Um dos pontos fundamentais do ensaio recai sobre sua importância e validade no Brasil do século XXI. Segundo ponto: até onde as diversas versões do livro não traem uma falta de convicção e uma certa leviandade por parte de seu autor?

Curiosamente, “Raízes do Brasil” não alcançou, ao ser lançado, a unanimidade de outras empreitadas similares de intelectuais brasileiros do período (leia quadro), apesar do sucesso de vendas. Sérgio Buarque de Holanda tentou construir a reputação do livro – e, por analogia, a sua – ao fio de três décadas de revisões em cinco edições, nas quais alterou progressivamente as premissas maiores da primeira versão.

Se na primeira edição manifestou desconfiança em relação à democracia liberal porque não se aclimataria à essência do personalismo do “povo” brasileiro – escreveu que “a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”, afirmação que depois extirpou -, na quinta edição de 1969 inverteu a posição. É necessário o corte das raízes arcaicas para impor o desenvolvimento histórico e a democracia liberal, aspecto ressaltado no prefácio de Candido. Assim, de alguma forma, a ambiguidade de argumentos ajudou a construir o carisma de “Raízes do Brasil”.

Como e por que Sérgio Buarque tratou de alterar – e remendar – o livro em vez de escrever outro são as perguntas que têm ocupado os especialistas no tema. Uma velha demanda dos estudiosos era por uma edição que evidenciasse as mudanças no texto e as reviravoltas ideológicas de seu autor. É o que realiza agora a Companhia das Letras, detentora dos direitos de publicação da obra desde 1995. Assim, a 28ª edição de “Raízes do Brasil” (Companhia das Letras, 526 páginas, R$ 94,90) se apresenta como crítica. Isso significa que segue critérios de rigor com as quais as demais edições não se preocuparam. Ela revela as emendas feitas pelo autor nas cinco edições por meio de notas de rodapé.

O volume compreende o ensaio introdutório “Uma Edição Crítica de Raízes do Brasil: o Historiador Lê a Si Mesmo”, assinado pelos organizadores da edição, os historiadores e escritores Pedro Meira Monteiro, professor da Universidade Princeton, e Lilia Moritz Schwarcz, também de Princeton e da Universidade de São Paulo. Traz ainda um posfácio com artigos de nove especialistas contra e a favor dos argumentos de “Raízes do Brasil”.

A edição – primeiro lançamento das comemorações de 30 anos da Companhia das Letras – traz ainda uma cronologia da obra e ilustrações, como as capas das edições principais e algumas páginas em fac-símile da edição de 1932, rabiscado e remontado pelo autor, como um palimpsesto, em que convivem borrões, rasuras e colagens. O estabelecimento e a reconstrução genética do texto foram elaborados por Mauricio Acuña e Marcelo Diego, orientandos de Lilia.

Edições críticas costumam ser difíceis de enfrentar, mas esta se revela peculiar, porque oferece surpresas a cada página. É possível acompanhar o caminho do pensamento de um autor inquieto, descontente e crítico, em busca de uma versão perfeita de seu texto – e de si próprio. “É interessante que a gente possa ainda se surpreender com uma obra considerada canônica”, afirma Monteiro. “Porque de fato até agora não a conhecíamos em sua totalidade.”

O resultado do trabalho pode espantar o leitor, mas nem tanto os estudiosos. “Os especialistas sabiam da história do livro”, diz Lilia. “Mas só uma pesquisa genética do texto e uma edição crítica poderiam demonstrar que uma das obras fundamentais do Brasil não nasceu pronta. Passou por vários contextos intelectuais e históricos e viveu um processo de construção, no qual não faltou a crítica interna da obra pelo autor.”

Trata-se, segundo Lilia, de um “texto assombrado”, que passou por várias transformações durante os 33 anos em que foi reelaborado, com o qual seu autor parecia sempre desconfortável. “Sérgio demonstra que não gostou de ‘Raízes do Brasil’, que foi o seu primeiro livro publicado”, diz Monteiro. “O livro passa por alterações de rumo a ponto de as ideias serem colocadas de ponta cabeça. Isso revela uma singular inquietude do autor.”

A oscilação de sentidos pode ser explicada pela história das publicações e das mudanças por que o mundo passou por causa da Segunda Guerra. “Sérgio era um intelectual em formação”, afirma Lilia. “No início, era mais um literato ligado ao modernismo que um conhecedor dos métodos da historiografia. O livro foi mudando à medida que a compreensão de Sérgio Buarque sobre a história se tornava mais complexa.”

De fato, o panorama mental era diferente quando o livro foi lançado, em outubro de 1936, como volume inicial da Coleção Documentos do Brasil, dirigida por Gilberto Freyre (1900-1987) para a Livraria José Olympio Editora de São Paulo.

Sérgio Buarque acabara de chegar da Alemanha e trazia consigo a influência da teoria organicista, que estabelecia uma analogia entre os organismos vivos e os sociais, ambos seriam fundados no instinto e não na razão. Queria oferecer uma explicação da formação social brasileira como organismo naturalmente patriarcal e sentimental. Sérgio Buarque também desconfiava, naquela altura, da eficiência da democracia liberal, que, segundo ele, não combinava com o caráter personalista do povo brasileiro – e aqui a simpatia pelo passado indolente e pela ética emocional brasileira, em oposição à ética protestante do trabalho dos americanos e ingleses.

“Na primeira edição, ele parece flertar com o surrealismo e alimentar um desejo de que a bagunça brasileira persista, algo que ele vai negar posteriormente”, diz Monteiro.

“O livro foi mudando à medida que a compreensão de Sérgio Buarque sobre a história se tornava mais complexa”, diz Lilia Moritz Schwarcz

Conforme aponta Monteiro, a noção de “homem cordial”, exposta no capítulo 5 e inspirada na expressão de Ribeiro Couto (1898-1963) – cujo nome ele excluiu na segunda edição -, chamou atenção desde as primeiras leituras dos críticos e acabou sendo o motivo maior de Sérgio Buarque se sentir assombrado, até porque a “cordialidade” brasileira se converteu em panaceia universal para explicar o país.

Na primeira edição, a cordialidade definia o caráter nacional, e muitos escritores saudaram o livro com ufanismo. Foi o caso do poeta Cassiano Ricardo (1895-197 4), que, inspirado na ideia da cordialidade, formulou a Teoria Geral da Bondade, na qual o povo brasileiro seria protagonista. Cassiano Ricardo percebeu que o conceito se tornava mais negativo na segunda edição revista de “Raízes do Brasil”, lançada em janeiro em 1948. Em resposta ao poeta em carta de 1948, Sérgio Buarque afirmou que já definia na edição de 1936 a cordialidade como um comportamento avesso à civilização, mesmo que suas ideias tivessem mudado, até mesmo em relação ao “pobre defunto” homem cordial.

O fato é que o “homem cordial”, apesar de enterrado por seu criador, se tornou uma marca e um capital simbólico da nação. “Uma forma de nos apalparmos e nos reconhecermos na diferença que deixa de ser histórica e passa a ser essencial”, afirmam os autores do texto introdutório da edição crítica.

Nas segunda e terceira edições, de 1948 e 1956, Sérgio Buarque suprimiu do texto referências antiliberais, entre outras noções já fora de moda. Para historiadores como João Kennedy Eugênio e Leopoldo Waizbort, ele inventou um novo livro, para assim se reapresentar como radical.

“Quando o livro é reeditado em 1948, após o Estado Novo e a Segunda Guerra, como triunfo da ‘democracia’ norte-americana e o processo de ‘redemocratização’ no Brasil, os termos de 1936 ficariam muito comprometedores, razão pela qual o autor decidiu alterar ou mesmo suprimir muitas passagens do texto”, afirma Waizbort. “Mais que isso, é bem provável que os anos entre uma e outra edição o tenham levado a reformular suas ideias e tentar remendar o argumento.”

Segundo Waizbort, o processo tornaria o texto de “Raízes do Brasil” dúbio e duvidoso. Isso não surpreende o historiador Carlos Guilherme Motta, que denunciou a falta de rigor e a terminologia eclética de “explicadores do Brasil” como Sérgio Buarque.

Lilia rebate: “Passada a Segunda Guerra, com todas as atrocidades nazistas e morticínio em massa, seria impossível para um intelectual como Sérgio Buarque manter suas ideias de 12 anos atrás. Ele não poderia prever o sucesso da obra. Foi assim que procurou atualizar as ideias do livro, tornando-as mais próximas do que ele havia se tornado, mais democrata e sistemático.”

Como resumem Lilia e Monteiro: “Sérgio Buarque precisou rescrever o seu livro, ao menos parcialmente, para reinventar-se a si mesmo como autor, criando outro contexto. Um contexto diverso, que requeria outro livro, e um novo autor. “Não escreveu outro porque “Raízes do Brasil” era uma obras assombrada, encantada – e o que maior sucesso tinha alcançado entre as dezenas que escreveu. Era a sua plataforma política.

Em 1969, durante o regime militar, Sérgio Buarque acrescentou o último capítulo da aventura do intelectual em metamorfose, com a quinta edição, prefaciada por Antonio Candido. O verniz de canonização cristalizava a imagem de Sérgio Buarque como um escritor radical e democrata, que trazia à reflexão sobre o Brasil a história e a análise a partir do jogo de oposições e contraste baseada no sociólogo alemão Max Weber (1864- 1920). Dessa forma, o panorama mental do país já em 1936, segundo Candido, muito embora o “clássico de nascença” tenha surgido de fato somente 33 anos depois. Foi quando obra e autor se fundiram para sempre em um clássico não de nascença, mas de fim de jornada.

Qual, enfim, é o legado de “Raízes do Brasil”? Mais do que uma herança de aparente concessão à leviandade e ao improviso de conceitos ad hoc, como denunciam muitos historiadores de renome, Lilia ressalta a dinâmica de um pensador que assumiu a inquietação com método. “O trânsito de ideias de Sérgio Buarque, formuladas em rede, em diálogo com outros intelectuais, como seu amigo Antonio Candido, é que torna o livro hoje mais interessante do que nunca.”

De acordo com Pedro Meira Monteiro, apesar de tantas mudanças de rumo, ou devido a elas, “Raízes do Brasil” continua a explicar o país e seus “homens cordiais”: “Se a gente analisar o que acontece hoje no Brasil, o descalabro escatológico, o desmonte institucional, a invasão do público no privado e a falta de senso de espaço público, então a gente se dá conta de como o pensamento de Sérgio Buarque de Holanda permanece vivo”.

Na segunda, às 19h, haverá debate com os organizadores e autores da edição especial, Lilia Moritz Schwarcz (USP e Princeton) e Pedro Meira Monteiro (Princeton), e com os responsáveis pelo estabelecimento de texto e notas, Maurício Acuña (doutorando USP, Princeton) e Marcelo Diego (doutorando Princeton). No Teatro Eva Herz, da Livraria Cultura (av. Paulista, 2073, SP)