Por Claudia Santiago

“Violenta é a sociedade de consumo que diz o tempo todo, compre, compre, compre, e não dá a todos o direito de comprar”, afirma Afonso Celso dando o tom do que viria depois. “Dar aula é um prazer muito grande”, declara. Para o professor, as dificuldades da sua profissão não são de responsabilidade dos alunos, mas sim “no completo descaso do poder público e da sociedade, como um todo, com a educação”.

Nas escolas particulares, “a educação é tratada como mercadoria”, diz ele. “O professor é encarado como um vendedor de diploma. A escola quer vender e o aluno quer comparar. Nós somos ques-tionados segundo a lógica do mercado e não por uma questão pedagógica. Há escolas que já falam do aluno como um cliente. As famílias por estarem pagando não admitem que o filho seja reprovado. O professor é visto como aquele que vai me dar prejuízo.” Mesmo assim, Afonso admite que entre as alegrias de se trabalhar numa escola particular está exatamente a participação de muitos pais na vida escolar dos filhos.

Nas escolas públicas a lógica é outra, mas tão perversa quanto a primeira. O aluno tem que passar rápido pela escola, não pode ficar reprovado e não importa se aprendeu ou não. Interessa que ele saia logo porque outros querem entrar e não há vagas para todo mundo. O resultado disso, segundo Afonso é que “o nível dos alunos não condiz com a série que se está dando aula. Cerca de 95% não poderiam estar na série que estão. Eles chegam a 8ª série sem saber ler direito e sem dominar as quatro operações da matemática, ou seja, com dificuldades para multiplicar e dividir”. Por esses motivos, Afonso Celso critica a decisão da Prefeitura do Rio de Janeiro de estender a aprovação automática que hoje vai da 1º a 3ª série para até a 5ª série. “Isto é criar um grupo de pessoas que não sabe nada”.

E por que tantos problemas? “Porque não há condições nem dentro da escola e nem na sociedade para que as coisas aconteçam de modo diferente’, explica. “O projeto pedagógico da prefeitura não é realizável nas atuais condições. Na teo-ria, é bom, mas o poder público não dá condições para que ele seja executado.” Cita um exemplo: “o projeto prevê aulas de reforço, que seria fundamental para os alunos, mas na prática isto não acontece”.

A outra perna do problema está, segundo Afonso, na sociedade. “São inúmeras as crianças e jovens com problemas auditivos, oftalmológicos e com necessidades de fonoaudiologia.

Não adianta dizer que tem o Fer-nandes Figueira (Instituto ligado à Fun-dação Osvaldo Cruz especializado em medicina infantil e do adolescente). Não tem quem os leve até lá. Os pais tra-balham muito e não têm tempo para nada. O índice de frequência a reuniões de pais, em uma escola particular, chega a 90%. Nas públicas, não chega a 10%. Os pais das escolas particulares recebem o comunicado por e-mail. Nas públicas, não ficam nem sabendo se o aluno não informa. Não têm telefone. Não têm endereço. A carta tem que ir para a Associação de Moradores”.

A identificação do professor com seus alunos das escolas públicas vem de berço. “É um grande prazer estar em contato com uma realidade que é muito diferente da minha atualmente, mas que corresponde ao que eu vivi na infância A realidade deles é muito cruel é difícil”.

Os dramas aparecem com toda a sua força nas reuniões de pais. “São histórias trágicas: o pai morreu ou está preso e a mãe pede a nossa ajuda. Eles não sabem o que fazer com os filhos. Estão total-mente impotentes e querem que a escola faça o que eles não conseguem fazer. Por outro lado, a escola não tem estrutura para suprir a ausência dos pais e suprir o que os pais solicitam”.

Afonso aponta a gravidez de me-ninas de até 13 anos e a falta de pers-pectiva desses jovens como pontos que precisam da atenção do Estado. “Eles não entendem a escola como ascensão social, mas apenas como um passaporte para não ser chamado de vagabundo”. A ausência de políticas culturais que contrabalancem o peso dos hábitos im-postos por poderes paralelos nas comunidades é outra questão séria, de acordo com o professor. “Não se pode achar natural a letra de algumas músicas difundidas em bailes funks. Uma menina de dois anos não pode crescer ouvindo só aquele tipo de manifestação”.

Afonso Celso sabe o que fala. Há oitos anos ministra aulas para moradores das comunidades do Chapéu Mangueira, Babilônia, Ladeira dos Tabajaras, Rocinha e Cantagalo. São os filhos das domés-ticas e dos porteiros. Raramente um alu-no é filho de professor. Filho de jornalista ele nunca viu por lá. “São dois mundos diferentes que convivem no mesmo espaço e produzem dois tipos de gente”, declara. E ele não esconde por que tipo de gente seu coração bate mais forte.

“Violência é ver a diferença entre uma escola particular e uma escola pública. É sentir o que estão fazendo com estes meninos. Eu não tenho nenhum pro-blema com meus alunos. Todos me tratam muito bem”.

 

Tiros raspando o teto da escola afastam professora de sala de aula

A pedagoga paraense Maria de Fátima (nome fictício) é professora do ensino fundamental há 33 anos. Durante 14 anos lecionou em um Ciep dentro de uma grande favela na zona norte da capital. Até que um dia, cansada e doente emocio-nalmente, pediu para trocar de es-cola. “Foi um alívio”, conta. “Não suportava mais ouvir aqueles tiros. Até hoje não posso ver policiais ou olhar para o caveirão que ainda me sinto mal. Não posso ouvir o barulho dos fogos que penso que são tiros”.

As marcas do sofrimento da mulher, que se emociona ao falar da alegria de ver uma criança alfabetizada, estão por todas as partes do seu corpo. No rosto, na forma assustada e reticente como concede a entrevista, no pedido para que seu nome não apareça e na caixa de calmantes que traz na bolsa.

“Nos últimos dois anos os tiroteios entre policiais e traficantes se tornaram constantes, às vezes diários. Era só ouvir os tiros e se deitar no chão. As mães chegavam, desesperadas para buscar as crianças. Não deu para ficar, eu goste muito dos alunos, dos colegas e das pessoas da comunidade”

A violência fruto do tráfico de drogas que tomou conta da cidade tem consequências trágicas para a vida das pessoas, principalmente para as que vivem em bairros considerados “áreas de risco”. Uma delas é que professores experientes e identificados com a comunidade, como é o caso da nossa entrevistada, se retiram. O castigo fica para os recém-concursados que nos primeiros cinco anos em atividade não podem escolher a escola onde vão lecionar.

Professor cobra a atenção das autoridades para o problema

Para o secretário de Imprensa e Divulgação da CUT-RJ, Eduardo Henrique Santos de Almeida, embora a falta de segurança para os profissionais de educação seja uma questão recorrente nas escolas, ela é ignorada pelos governos. O que temos é um jogo de empurra entre o governo municipal e estadual. Quando ocorre um fato de violência típica do tráfico de drogas, como confronto da polícia com os traficantes, as escolas ficam no meio. O Sindicato tenta atuar e ouve de um poder público que a responsabilidade é do outro. A Prefeitura ignora reivin

dicações dos profissionais como a readequação de horários nessas comunidades. O governo estadual responsável pelo posicionamento tem uma postura muito ruim porque ignora a comunidade escolar. A PM atua na linha do confronto e não da prevenção. Agora, o problema é muito complexo, é da toda a sociedade e chegou às escolas. A solução passa por resolver o problema da exclusão social. Mais policiamento não basta.

Histórias trágicas aparecem

nas reuniões de pais

A lógica das escolas públicas:

“sai logo, que atrás vem gente”